Luís de Brito, um dos mais proeminentes
académicos do país, colocou na prateleira o seu mais recente livro. Um livro
que transcende o politicamente correcto. “A Frelimo, o Marxismo e a Construção
do Estado Nacional 1962-1983” não é apenas uma análise histórica necessária
para compreender o processo moçambicano.
“Lutas de poder” é também uma das passagens significativas do livro. Nele, o autor começa
por lembrar que, desde a criação da Frelimo até Abril de 1970, a liderança do
movimento foi abalada por uma sucessão de conflitos internos, durante os quais
os intelectuais de inspiração marxista, na sua maioria do sul, afastaram os
membros da liderança e vários outros quadros que se lhes opunham.
“Como isso foi possível, em que condições as divergências se resolveram a favor
dos intelectuais do sul, sendo que o campo de acção da Frelimo se limitava
quase, exclusivamente, às regiões do norte e uma parte do centro do país e que
os quadros afastados eram oriundos, precisamente, destas regiões?”, eis o ponto de partida do autor.
Para Luís de Brito, uma análise simples em termos
de “crise” e de “linha justa”, isto é, a argumentação sobre duas linhas
ideológicas que se confrontavam dentro da liderança suprema da Frelimo, uma
revolucionária e popular e outra oportunista, baseada no tribalismo, racismo e
ambição, portanto, contra-revolucionária, não permite compreender o resultado
do conflito em favor dos intelectuais de inspiração marxista. Pelo contrário, está
no centro do esforço de legitimação da hegemonia do grupo dirigente da Frelimo
e do seu projecto de “construção do socialismo”.
Da mesma forma que a
explicação em termos de conflito entre grupos com trajectórias sociais e
culturais opostas - assimilados, mestiços e brancos (funcionários e estudantes)
das cidades e especialmente do sul, contra pequenos comerciantes e elites
rurais, especialmente do norte - não reflecte, totalmente, as divisões,
realmente, existentes dentro da Frelimo, ainda que o autor reconheça que os
defensores da orientação marxista se opuseram aos representantes de uma camada
de pequenos comerciantes organizados em torno de Lázaro Nkavandame,- na foto da esquerda – na altura
um influente Makonde em Cabo Delgado - e entraram em contradição com os grandes
chefes tradicionais e outros notáveis, nomeadamente, no Niassa, mas também se opuseram
aos intelectuais e urbanos originários da região central do país, dos quais o
mais prestigiado era o próprio vice-presidente da Frelimo, Uria Simango - foto direita - . De
acordo com De Brito, a linha de ruptura entre o grupo “sulista” e os demais,
quer se trate do grupo de Nkavandame, dos urbanos do centro, ou dos chefes
tradicionais, situa-se na sua relação com o aparelho military que se foi
constituindo como uma força a partir de 1964.
“É através do exército que os
intelectuais do sul conseguem impor a sua orientação a todo o movimento”, precisa,
sublinhando que o exército estava no centro das estratégias de poder dentro da
Frelimo e o control do aparelho militar e a definição do papel do exército
dentro da organização eram as questões mais importantes no confronto entre as
diferentes facções da liderança política.
Assim, os intelectuais do sul formam um grupo
cujos dois principais representantes, Eduardo Mondlane e Marcelino dos Santos - foto esquerda - têm um prestígio considerável, tanto no meio nacionalista de Maputo, como a
nível internacional, ocupando desde a criação da Frelimo os postos de presidente e secretário para as Relações Exteriores, respectivamente.
À volta destes dois
homens foi-se formando, gradualmente, um grupo composto, principalmente, por
jovens estudantes ( Joaquim Chissano - foto na esquerda na frente de combate - , Mariano Matsinha,
Pascoal Mocumbi, Filipe Samuel Magaia, Armando Guebuza, Josina Muthemba - foto direita - , Jorge Rebelo - foto esquerda colorida - ,
Óscar Monteiro, Sérgio Vieira, que aderiram à Frelimo entre 1962 e 1965).
“Tendo
uma formação académica superior à média, estes jovens foram, rapidamente,
levados, através de um processo de cooptação, a ocupar cargos de
responsabilidade no aparelho da Frelimo, como secretários ou secretários
adjuntos dos diferentes departamentos. Assim, eles não só controlam o nível
executivo, mas formam, igualmente, o núcleo do comité central (…)”, afirma.
A cooptação dos jovens intelectuais do sul para
as posições «burocráticas» colocava-os, automaticamente, no topo da direcção
política do movimento. “A sua posição no Comité Central (CC), a coesão do grupo
e a sua formação de inspiração marxista explicam que as resoluções deste órgão tenham
sempre confirmado a orientação «político-militar» que propunham”, avança. Mas
tal não significa que as decisões tomadas pelo CC fossem, facilmente, implementadas
no terreno.
“De facto, não tinham grande capacidade para
assegurar a implementação das decisões no interior do país, pois não
controlavam a rede política interna”, revela. Teoricamente, esta rede estava
sob a autoridade do secretário do Departamento de Organização do Interior (DOI),
cargo para que foi nomeado em 1966, Mariano Matsinh - foto esquerda ~ a (ex-NESAM- Núcleo de
Estudantes Secundários Africanos de Moçambique). Mas, na realidade, a
organização no interior estava nas mãos de notáveis locais. “Em contrapartida,
os sulistas controlavam o aparelho militar, cuja formação tinham dirigido desde
o início”, narra.
Após a morte de Filipe
Magaia,~foto direita - secretário do Departamento de Defesa, isto é, chefe do exército,
em 1966, este posto foi atribuído a Samora Machel. Alguns viram nisso uma
conspiração dos sulistas, pois o sucessor lógico de Magaia teria sido o seu
adjunto, Casal Ribeiro, mas a este último – que não era do sul – foi atribuída
apenas a posição de comissário Político do exército,
ficando assim, hierarquicamente,
sujeito à autoridade de Samora Machel - foto esquerda - que, no ano seguinte, empreendeu
reorganização do exército, processo que permitiu que toda a cadeia de comando
ficasse submetida, até à base, ao controlo daqueles que tinham grande
dificuldade em fazer com que os líderes da rede política partilhassem o seu
projecto. Segundo o estudioso, o exército, reorganizado, se tornou a principal força
do movimento nas vésperas do 2º Congresso (1968) e constituiu o verdadeiro
fundamento do poder do grupo sulista. A orientação que os «político-militares »
queriam dar ao movimento provocou reacções. Inicialmente, a ofensiva foi
liderada por Nkavandame que, segundo De Brito,
tinha um poder real dentro da Frelimo, já que na sua qualidade de secretário da
província de Cabo Delgado (precisamente o teatro de guerra mais importante), dirigia
o aparelho politico interior e dispunha mesmo de uma força de milícia.
“Um bom número de chairmen estavam do seu
lado e defendiam a sua posição sobre o papel do exército, que, segundo ele, não
se devia envolver nas questões de ordem política”, faz notar o autor.
Ao mesmo tempo, Nkavandame, juntamente, com
outros membros do CC, fazia pressão para a realização urgente do 2º Congresso,
em território da Tanzânia e sem a participação dos militares. Mas o Congresso
de Julho de 1968 acabou por se realizar em Madjedje,
“zona libertada” do Niassa, com a participação de representantes militares e
civis de cada província.
Segundo a fonte, a violência que caracterizou este
período, como a morte de Mateus Muthemba e o assassinato de Paulo Kankhomba - foto direita - ,
vice-chefe de operações, mostra bem a importância do conflito: não só o CC
tinha, finalmente, decidido que o Congresso seria realizado nas “zonas
libertadas”, mas também tinha decidido que a delegação de cada província seria composta
por nove representantes militares e oito civis, o que deixava pouco campo para
ilusões quanto a um resultado favorável ao grupo sulista.
Lázaro Nkavandame e alguns dos seus chairmen decidiram
boicotar o Congresso e recusaram-se a participar. A situação ia de mal a pior.
Nkavandame viria, então, a ser implicado no assassinato de Kankhomba, com a Frelimo
a pedir aos responsáveis do governo da Tanzânia que os culpados lhe fossem
entregues para serem levados para o interior de Cabo Delgado, onde “o povo
faria justiça”.
Com o afastamento de opositores, estava, então,
aberto o caminho para a radicalização em curso no movimento até que os
“político-militares” asseguraram a sua supremacia. Com o assassinato do presidente Eduardo Mondlane, a 3 de
Fevereiro de 1969, Uria Simango, que, enquanto vice estava na linha de
sucessão, ficava em minoria numa troika dominada por Marcelino dos
Santos e Samora Machel ~Primeiro Presidente da Republica Popular de Moçambique 19175 ~ ..
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