Duas semanas antes do 25 de Junho, data que, para
além do 45º aniversário da independência, marca 58 anos da fundação da então
Frente de Libertação Nacional (Frelimo), Luís de Brito, um dos mais
proeminentes académicos do país, colocava na prateleira o seu mais recente
livro. Um livro que transcende o politicamente correcto. “A Frelimo, o Marxismo
e a Construção do Estado Nacional 1962-1983” não é apenas uma análise histórica
necessária para compreender o processo moçambicano. É, sobretudo, uma leitura alternativa
que rompe com a versão oficial da história da Frelimo e de Moçambique. Uma
leitura que, ao mesmo tempo que dá a entender o passado de outra
forma, também ajuda a explicar o rumo que tomaram
os posteriors desenvolvimentos políticos, sociais e económicos no país. Na
obra, Luís de Brito começa por desconstruir as narrativas de autores que chama
de “marxistas, engajados e solidários da Frelimo” que, nas suas palavras,
caíram nas “armadilhas do discurso oficial”, limitando-se a formulações que
seguem e reproduzem textos oficiais. Autores que assumiram, acriticamente, as
construções e a ideologia do discurso oficial, os mitos sobre os quais esse
discurso assentava e, assim, participando do trabalho de legitimação próprio de
qualquer discurso de poder.
Para Luís de Brito, a evolução política da
Frelimo desde 1984, ano da assinatura do acordo de Nkomati com a África do Sul,
das primeiras tentativas de negociar com a Renamo o fim da guerra em Moçambique
e dos primeiros contactos do governo moçambicano com o Fundo Monetário Internacional
e o Banco Mundial, criou um certo embaraço aos numerosos investigadores que
vinham analisando e teorizando a “transição socialista” em Moçambique. “De
facto, como explicar a falência da «experiência socialista» moçambicana, a
aplicação de um «programa de ajustamento estrutural» a partir de 1987, o
abandono do «marxismoleninismo » no 5º Congresso da Frelimo (1989) e a
elaboração de uma nova Constituição (1990) prevendo o estabelecimento de um Sistema
político multipartidário?”, questiona, algo retórico.
É que, para ele, as
explicações dos autores sobre as dificuldades que a organização teve de
enfrentar desde a independência, invocando, por um lado, factores externos como
a situação internacional desfavorável e mais, particularmente, a acção de desestabilização
económica, política e militar promovida pelo regime sulafricano e, por outro
lado, factores internos como os “erros” da Frelimo, particularmente, em termos
de política rural, mas também o surgimento de uma camada burocrática usando a
sua posição dentro do aparelho estatal para bloquear a acção da liderança revolucionária
do partido, não são suficientes para dar uma interpretação consistente da
realidade do processo moçambicano.
“A simpatia que sentiam pelos revolucionários moçambicanos
que tinham lutado contra o colonialism português e seus aliados ocidentais, e
que depois se engajaram na «construção do socialismo» numa região da África
onde as potências brancas da Rodésia e da África do Sul eram dominantes – uma
luta que merecia ser apoiada – não só os impedia de ter um olhar crítico sobre
o processo moçambicano, como não os ajudava a desenvolver uma atitude de
vigilância científica suficiente para evitar as armadilhas do discurso
oficial”, refere De Brito, em alusão aos autores que, segundo ele, a maioria
trabalhou em Moçambique como cooperantes após a independência.
Depois de um primeiro capítulo sobre a estrutura
económica e social do Moçambique colonial, que mostra a herança bastante frágil
herdada pelo movimento de libertação, que também explica a crise económica
causada pelo processo de descolonização e, em grande medida, o fracasso da política
económica da Frelimo, o autor debruça-se sobre a constituição da Frelimo que,
de acordo com a versão oficial, é o resultado da fusão de três organizações, a
25 de Junho de 1962, em Dar es Salaam, na Tanzânia. Mas para Luís de Brito,
doutorado em Antropologia e Sociologia do Político, não é linear que a Frelimo tenha
resultado da unificação da União Democrática Nacional de Moçambique (UDENAMO), da
União Nacional Africana de Moçambique (MANU) e da União Nacional de Moçambique
Independente (UNAMI). “É difícil argumentar que a Frelimo tenha sido realmente
fruto da unificação de várias organizações”, rebate.
“É-o apenas formalmente”, sentenceia o
académico. No ano em que se celebra o centenário do nascimento daquele que é
considerado como o arquitecto da unidade nacional, De Brito mostra como a
trajectória estudantil de Eduardo Mondlane, desde a África do Sul, Lisboa até
aos Estados Unidos da América - percurso durante o qual conheceu outros
estudantes das colónias - a sua diplomacia; o estatuto de funcionário das
Nações Unidas; as suas relações com os círculos religiosos protestantes; o
prestígio que tinha no seio dos “assimilados do sul”; o apoio que tinha da
CONCP [Confederação das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas], faziam
dele com todas as condições para se tornar o protagonista do processo de
formação da Frelimo. No livro, sob a chancela do Instituto de Estudos Sociais e
Económicos (IESE), o autor explica, igualmente, que Eduardo Mondlane tinha a
confiança de Julius Nyerere, o president da TANU com quem podia contar para
pressionar os líderes das outras organizações no sentido de construírem uma
frente comum. “Esta «frente» não foi concebida em termos da aliança de várias
organizações autónomas, mas pressupunha, pelo contrário, a dissolução das
formações que integrassem a frente. Apesar da resistência a essa ideia por parte
dos líderes dessas formações, o apoio firme de Julius Nyerere ao projecto de
unificação permitiu que este fosse bem-sucedido”, refere.
Conta que, nos meses que se seguiram ao primeiro
Congresso da Frelimo, que procedeu à eleição da direcção do movimento, houve
também conflitos entre Mondlane e os outros líderes, que não aceitavam de bom
grado a dissolução das suas organizações, pois isso retirava-lhes a autonomia e
reduzia o seu poder. “Mas Mondlane tinha a vantagem de receber o apoio total de
Nyerere e eles foram forçados a deixar a Frelimo: alguns deixaram-no por
iniciativa própria, outros foram expulsos”, observa.
Uria Simango, que chegou a vicepresidente da
Frelimo, e Adelino Gwambe, o dirigente da UDENAMO que estava em conflito com Marcelino
dos Santos, são apenas alguns exemplos de tantos que se viram forçados a deixar
a Frelimo. “A saída dos opositores fortaleceu a posição do grupo leal a
Mondlane”, afirma Luís de Brito. Para o académico, o argumento de que a Frelimo
resultou da unificação de várias organizações é, na realidade, um elemento do
processo de legitimação específico do discurso politico da Frelimo.
“É mesmo o seu elemento fundamental – «a unidade
é a condição da vitória». De facto, ao apresentar-se como o produto da fusão
das três organizações que a precederam, a Frelimo apropria-se ao mesmo tempo da
sua representatividade «parcial»”, diz. Mas ao fazê-lo, não se trata de uma simples
adição. “Como essas organizações recrutavam e desenvolviam a sua acção, cada
uma entre as comunidades de diferentes regiões de Moçambique, a Frelimo
considera-se como estando no direito de reivindicar para si o papel de garante
da «unidade nacional» e de representante de todo o «povo moçambicano». Seria, portanto,
a depositária da legitimidade nacional, em oposição ao «regionalismo» dos
outros”, anota. Para Luís de Brito, o discurso da Frelimo apresentando-se como
sendo o resultado da fusão dos três movimentos que a precederam, tantas vezes repetido
acriticamente por analistas de Moçambique como uma realidade, dificulta a
compreensão das verdadeiras dinâmicas que estão na base da sua formação e
desenvolvimento.
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