segunda-feira, junho 21, 2021

Canonização dos mártires da fé

A diocese de Tete, centro de Moçambique, vai iniciar o processo de canonização de dois jesuítas, um português e um moçambicano, mortos na missão de Chapotera em 1985 por serem "testemunhas incómodas" da guerra civil, disse à Lusa o bispo de Tete.  “Eram testemunhas dos acontecimentos e, evidentemente, tendo ligações com a igreja em Moçambique, com pessoas que tinham acesso ao poder”, denunciaram “a violência, das duas partes”, disse Diamantino Antunes, acrescentando: “Por isso eram vozes incómodas”. Em confronto estavam a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), partido no poder desde a independência, e a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), oposição.

O padre Sílvio Moreira, português de 44 anos, e o padre João de Deus Gonçalves Kamtedz, moçambicano, 54 anos, foram assassinados a tiro e com baionetas a 30 de outubro de 1985 por um grupo armado que os tirou de casa, em Chapotera, na zona de Angónia.

Quase 36 anos depois, a igreja católica em Tete está numa fase preliminar do processo de canonização, acreditando que os dois missionários são “mártires”. Eles “eram contrários à guerra e sentiam o sofrimento do povo como sofrimento deles”, denunciando a tragédia da guerra baseados numa virtude cristã.

“Eu posso ter fé, mas se não tenho coragem a minha fé é vã”, referiu, acrescentando que os sacerdotes podiam “calar, fechar o olho e dizer que aqui não há condições para continuar”, mas não o fizeram.Baseado nos relatos documentais e orais recolhidos em Moçambique e em Portugal, o bispo  Diamantino Antunes sublinha as virtudes dos dois missionários que colocaram em risco a sua própria vida, que ajudaram a sepultar os mortos que encontravam espalhados, enquanto garantiam serviços de saúde, educação e outros. Também realizavam missas e casamentos, às vezes às escondidas para não atrair a atenção dos militares. “Eles decidiram: vamos ficar, custe o que custar. E naquela zona as pessoas ficaram enquanto os padres lá estavam. Mas depois da morte deles houve uma debandada generalizada para o Maláui”, explicou o bispo.

Imediatamente a seguir à independência de Moçambique, em 1975, a vizinha missão de Lifidzi foi ocupada pela Frelimo e os jesuítas aí residentes ficaram sem a grande igreja e as demais instalações da missão: internatos masculino e feminino, hospital, oficinas de carpintaria, serralharia e outras dependências. Mas Diamantino Antunes referiu que o impacto da morte dos dois missionários se refletiu mesmo depois dos acordos de paz, em 1992, quando a população resistiu a regressar de imediato à região, por ainda recear a insegurança. Na ocasião, continuou, como estratégia, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) teve de patrocinar a reconstrução das missões, concretamente de Lifidzi para permitir o regresso de padres e consequentemente da população. “Em 1992 eu já cá estava. Trabalhei no Niassa e não vi o ACNUR reabilitar as missões para a população do Niassa regressar”, como aconteceu em Angónia.

Os dois sacerdotes estavam em Chapotera há pouco mais de um ano, quando se deu o ataque, em 1985.Um comunicado de imprensa emitido na altura das mortes pela Companhia de Jesus indica que na noite de 30 de outubro um grupo armado levou os jesuítas para um lugar incerto. Alguns cristãos da aldeia deram pela sua ausência e julgaram-nos raptados pela Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), oposição, mas a 04 de novembro os corpos foram encontrados trucidados e escondidos numa mata a 200 metros da residência. Nessa mesma tarde os corpos foram levados e sepultados no cemitério da vila Ulongue.Segundo o bispo de Tete, todas as informações recolhidas levam a crer que o alvo principal do ataque seria o padre João de Deus, que estava a traduzir a bíblia para a língua local.

Mas quando os atacantes pegaram nele para o levar, o padre Sílvio terá dito: “Se vai o meu colega, eu também vou”.Ainda hoje há uma um movimento anual, espontâneo, de cristãos que realizam vigílias no lugar onde foram sepultados os missionários. A causa de canonização já teve o aval para avançar por parte da Companhia de Jesus e da Conferência Episcopal e aguarda outras consultas e pareceres, incluindo da Santa Sé. Um dos passos pretende verificar a inexistência de qualquer inconveniente ou impedimento devido ao contexto político: “Não queremos ajustar contas com ninguém, mas apenas – e o mais importante é isto – evidenciar o testemunho”. O bispo de Tete disse ter provas de que nenhum dos autores materiais está vivo e, mesmo que estivesse, “era muito importante o testemunho, não para julgamento”, mas clarificar a causa de canonização.

A abertura da fase diocesana da causa de canonização está marcada para 14 de agosto no seminário de Zobué, onde o padre Sílvio foi professor e onde o padre João de Deus deu assistência durante a guerra, sendo que a data vai coincidir com uma peregrinação organizada pela diocese. Na data será feito o juramento público da comissão diocesana que vai conduzir o processo.

  

Pacho,segurança nas nuvens

O COMANDANTE das Linhas Aéreas de Moçambique(LAM), Bento Pacho, encerrou domingo(20) 43 anos de carreira, enquanto piloto de aviação comercial. O último voo do comandante Pacho, o TM315, efectuado num Boeing 737-700, ligou Pemba, Cabo Delgado, norte do país, à cidade de Maputo.

 

No Aeroporto Internacional de Maputo, Bento Pacho foi recebido por jactos de água sobre a aeronave, lançados pelas Forças de Salvação Pública (Bombeiros), afectas aos Aeroportos de Moçambique, e saudado por diversas entidades, entre as quais opresidente do Conselho de Administração Instituto de Aviação Civil de Moçambique(IACM), comandante João de Abreu, que procedeu à recolha das insígnias de Navegante Técnico, terminologia pela qual são designados os pilotos. Este momento simbolizou o encerramento da carreira de Bento Pacho que contabiliza 28.340 horas de voo, 26.516 das quais feitas em aviões da LAM e as restantes na Força Aérea de Moçambique, onde iniciou a sua carreira, em 1976.

“O comandante Bento Pacho encerrou com júbilo a sua longa e briosa carreira, enquanto piloto comercial, justamente na data em que celebra o seu 65º aniversário”, escreveu a LAM na sua conta na rede social Facebook..

“A saída do comandante Pacho não nos inquieta, pois ele deixa um legado importante na companhia, na qual ensinou vários colegas ao longo dos43 anos dasua carreira”, disse João Carlos Pó Jorge, director-geral da LAM.

O responsável pela companhia aérea nacional de bandeira enalteceu também o facto de, durante a “sua longa jornada”na LAM, o comandante Pacho ter desenvolvido acções de responsabilidade social, beneficiando comunidades carenciadas do país e daregião. Bento Pacho disse que o momento representa uma mistura de alegria e tristeza, uma vez que deixa de fazer o que gosta, devido à idade. “Ainda tenho força para voar, mas continuarei a trabalhar noutros campos da aviação. Agradeço à nação moçambicana que me deu o privilégio de voar dentro dela, aos meus pais, instrutores nacionais e estrangeiros, à LAM e à minha família, que suportou ficar sozinha enquanto eu viajava”, frisou.

Durante a sua longa carreira de piloto-aviador, Bento Pacho sentou-se no cockpit de aviões Boeing 737-200, 737-300, 737-500, 737-700, Fokker 100( foto2), Embraer 190, nas quais chegou à categoria de comandante, para além do McDonnell Douglas DC10 (foto direita 3) em que foi co-piloto e engenheiro de voo.

Ministra da justiça suspende direcçao da cadeia

Uma alma linda partilhou comigo a entrevista em que a Ministra da Justiça anuncia a criação duma comissão de inquérito “independente” liderada pelo seu Ministério para em 10 dias apurar o que aconteceu em Ndhlavela. Percebi agora o que o Júlio Mutisse entende por voz linda. É ter sotaque próximo do tuga...

O conteúdo da entrevista consternou-me um bocado pela aparente desorientação da Ministra. Eis alguns pontos:

1. Uma coisa é a denúncia dum crime (feita pelo CIP). Essa denúncia exige que o SERNIC entre em acção para que depois os tribunais se ocupem disso. Outra coisa é o que esse alegado crime diz sobre a organização do sistema prisional e, dum modo geral, de justiça. Para isto faz sentido criar uma comissão de inquérito. Ao que tudo indica, a Ministra misturou as duas coisas. Não sei se isso faz sentido.

2. A comissão de inquérito por ela anunciada parece-me pesada, complexa e propensa a se ocupar consigo própria do que com o problema. Não sei porque no nosso país não temos o hábito (como, por exemplo, na vizinha África do Sul) de confiar estas comissões a juízes jubilados (temos os Carrilhos*, Trindades, Hunguanas, ex-procuradores gerais, etc.) que conhecem o nossos sistema de justiça de dentro para fora, gozam da confiança da classe jurídica, têm traquejo político sólido e têm idoneidade suficiente para montar uma boa equipa e investigar estas coisas na perspectiva de sugerir reformas ao sector. Não estou a ver essa comissão de inquérito anunciada pela Ministra a fazer um trabalho sólido em dez dias. Em 2017 o Comandante Geral da Polícia anunciou que ia acabar com a insurgência em três dias...

3. Durante a entrevista a Ministra deixou ficar a impressão de estar surpreendida com o que aconteceu. Achei isso estranho. Das duas uma: ou ela não tem sensibilidade para os problemas do sector e, por isso, não consegue imaginar que essas coisas sejam possíveis, ou então ela fez reformas importantes que não funcionaram (daí a surpresa). Se for a última hipótese, era importante que ela dissesse ao público que o Ministério havia tomado medidas que, ao que parece, não funcionaram e, por isso, ia criar uma comissão de inquérito para rever o próprio processo de tomada de decisões.

4. Já para o fim da sua alocução, a Ministra fez um apelo estranho. Pediu às reclusas e aos familiares para informarem sempre que algo anormal acontecer. Isto pareceu-me o cúmulo da desorientação (no meu comentário da TV esta noite abordo este problema da nossa cultura governativa). É claro que não deixou o seu número de telefone (espero que seja da Vodacom). Mas a sério. A questão é: que condições é que o Ministério criou para que as pessoas se protejam da arbitrariedade dos órgãos do Estado? Que mecanismos institucionais existem (fora duma caixa de sugestões ou reclamações) para que quem se encontra em posição vulnerável possa pedir socorro a quem de direito? Este é para mim um dos maiores problemas do nosso País. O cidadão não tem como ser ouvido, ou como se fazer ouvir. Está entregue. Tenho em mim que é obrigação número um dum governo criar condições para que isto seja possível.

5. A Ministra não deixa de estar de parabéns por ter reagido com tanta celeridade. Coisas destas, ainda que vergonhosas, sempre podem acontecer. Contudo, ouvi-la a enfatizar a necessidade de punir quem deve ser punido faz-me espécie. Sim, é necessário. Mas essa não me parece ser a principal preocupação duma governante (dos tribunais, sim, das vítimas também). A preocupação duma governante é de garantir que estejam criadas condições para que seja difícil que essas coisas aconteçam, mas que se acontecerem existam meios para que as vítimas se defendam, para que os órgãos competentes sejam alertados e para que se corrija o que na máquina não está a funcionar.

6. Para terminar, repito aqui um refrão que aprendi da observação da governação em Moz. Passo a chamá-lo de “DTC Gaza2040” porque é assim que imagino que essa província se adiantou no tempo. Governa-se melhor quando se tem o hábito de Definir bem os problemas, Tomar decisões correspondentes à definição do problema e, acima de tudo, Criar condições para que as medidas tomadas sejam de facto eficazes. DTC. É com este esquema à prova de tolos que analiso, praticamente, tudo o que tem a ver com governação. É na base dele que constato pontos críticos em muitas das coisas que os nossos governantes fazem, desde programas de fomento agrícola, passando por combate à Covid-19 até ao desastre de Cabo Delgado.

(por professor Elísio Macamo)

sexta-feira, junho 04, 2021

Mistura difusa a democracia com as tribos

O livro “Tchova Xitaduma” de Paulo Zucula aborda um tema de candente actualidade num capítulo intitulado “Democratizar a Tribo ou Tribalizar a Democracia”. Partilho em seguida um extracto desse capítulo.

(…)

“O estabelecimento de sistemas democráticos modernos em nações Africanas onde ainda existem tribos com instituições funcionais próprias, é um desafio na medida em que o modelo democrático moderno nasceu, cresceu e se reproduziu muito longe de África, restando a esta aplicá-lo tal e qual prescrito pelas nações que têm mais de meio século de prática. Ademais, em muitas mentes Africanas, a tribo ainda impera acima do conceito de nação. Os Países Africanos estão numa encruzilhada única em que estão a montar modelos democráticos importados por cima de conceito de nação ainda imberbe. Isto deveria servir para mostrar aos líderes de Países Africanos, (incluindo Moçambique) que é loucura tentar emular os sistemas democráticos que tem mais de 500 anos de existência, tentado ignorar, manipular ou desacreditar a existência de grupos étnicos e tribais com instituições próprias e funcionais.

Em Países como Moçambique o tradicional e moderno (quase sempre importado) encontram-se mas não cruzam em nenhum ponto identificado. Com muito poucas excepções, as nações africanas têm menos de 70 anos como Países e ainda com uma grande presença de dominação de tribos e etnias com as suas formas colectivas de tomada de decisões. Antes da colonização, nenhum dos Países Africanos era uma nação na forma que é hoje. É, provavelmente, por estes factores que o sistema democrático moderno se tenta impor destruindo ou negligenciando as formas tradicionais de exercício democrático. Os conflitos entre o tradicional e o moderno e as fissuras que se criam no funcionamento de uma e de outra criam espaços para que o poder oportunista se intrometa e jogue no meio desta mistura para se estabelecer e pregar os seus interesses, que em muitas ocasiões têm pouco ou nada a ver com os interesses da sociedade.

Pela história de Moçambique independente, pode-se deduzir que o Partido FRELIMO, que acelerou a libertação do jugo colonial, trazia com ele uma nova ideologia, novos princípios e valores e uma orientação política, que na primeira fase da euforia pela autodeterminação, tinha aceitação junto da maioria dos Moçambicanos. Estas características pretendiam no fundo estabelecer novos laços que ligassem todas as tribos para a emergência de uma mega-tribo de cariz ideológica e nacional. Quando alguém queria aderir formalmente a esta mega-tribo, tinha que aceitar as regras, os valores e os princípios que norteavam a FRELIMO. Infelizmente, a FRELIMO não aceitava a existência de outras tribos ideológicas, nem mesmo as tradicionais que eram e são milenares e pilares das comunidades nacionais. Era um esforço titânico de criar uma nação e uma ideologia únicos. A euforia passou, o mundo ocidental condenou e impediu a continuidade do socialismo, e a missão falhou. A viragem para o sistema de economia de mercado e para um sistema político baseado nos valores democráticos modernos e ditos universais esvaziou a FRELIMO dos seus princípios e regras, porque estes estavam conotados com os valores do chamado comunismo, que era o inimigo número um do sistema de economia de mercado.

O vazio criado não foi preenchido. Foi simplesmente substituído pela necessidade imperiosa de manutenção do poder dos Partidos via eleições. Os Partidos políticos que foram surgindo chegaram com uma orientação central de tirar o poder à FRELIMO na mesa do voto. A ideologia, os princípios e regras de cada um desses partidos ou não são expostos, ou são relegados para um segundo plano. Quando em campanhas eleitorais, além de cada Partido criticar o outro, os seus programas e as suas apostas e manifestos parecem copiados uns dos outros, o que dificulta distinguir um Partido do outro na sua essência ideológica. O alvo principal de cada um é governar. É a luta do poder pelo poder. Busca-se o poder político para chegar ao poder económico e vice-versa. Dentro dos Partidos, os seus militantes passaram também a concentrar a sua energia para subir na escada do poder, provocando lutas silenciosas entre os seus colegas militantes, erodindo cada vez mais a sua coerência interna. A democracia se resume às eleições e não na escolha colectiva das melhores opções de desenvolvimento.

Este cenário começa a ganhar contornos quase insanáveis porque o vício do poder parece espalhar-se, qual doença e contagiante, entre algumas organizações da sociedade civil, associações de negócios e outros. A confiança da população nos Partidos políticos e mesmo na sociedade civil começa a ganhar contornos que desacreditam o sistema democrático que está a ser implementado. Mas, por outro lado, porque o poder do voto nas eleições passou a ser um instrumento incontornável para aqueles que ambicionam ser chefes, estes precisam recorrer à população que acredita cada vez menos neles. Aqui nasce o “vale tudo”, incluindo recorrer à fabricação de problemas entre tribos e regiões, batotas eleitorais, compra de consciências, erosão dos valores de cidadania, etc.

A ausência de ideologia sólida, de princípios éticos e morais nos Partidos criou espaço para que a tribo de cariz de linhagens familiares e de clãs voltasse a buscar um lugar no centro do palco político e do poder, e nas atitudes de muitas pessoas com poder de influenciar a opinião pública.

Desde as últimas eleições autárquicas de 2018, em Moçambique, assiste-se a um tom crescente que, aberta ou veladamente, mistura de forma confusa e difusa a democracia com as tribos.

Um pouco antes das eleições gerais de 2014, se discutia mais ou menos abertamente entre as elites e militantes de alguns Partidos, se o próximo Presidente da República deveria ser conotado ou não com a sua região ou grupo étnico. Estava presente a confusão entre a região e a tribo de linhagem. Uns advogavam que o próximo Presidente deveria ser do Norte, ou do Centro (região), pois já tinha havido Presidentes da República oriundos da região Sul. Outros viam o critério de escolha de candidatos a Presidente pelo lado do clã ou tribo, defendendo que deveria ser Macua ou Makonde. Como já tinha havido dois Presidentes Shanganas e um Ronga, estes estavam objectivamente excluídos nos próximos sufrágios. Mas, curiosamente não se falava ou se falava muito pouco da possibilidade de Presidente Ajawa, Nhungue, Chuabo, Manhembani, Matswa e muitos outros. Na maioria dos debates e análises televisivos, bem como nas conversas nas redes sociais, a meritocracia, integridade e compromisso com a causa nacional eram vistos abaixo do critério tribal e regional. Nalguns círculos, o tom de se dar primazia à tribo, grupo étnico ou região, tomava um sentido agressivo em relação à necessidade de “fazer pagar” por exclusão, determinados grupos sociais, sobretudo aqueles que já tinham passado pelo poder.

Os analistas que procuram entender e fazer entender os processos e resultados dessas eleições autárquicas reflectem essa mixórdia que vai desde batotas nos pleitos eleitorais, uso e abuso da tribo para fins pouco saudáveis, até à confusão no conceito de descentralização. Essas análises, de forma subtil ou explícita especulam que grande parte do voto não foi voto partidário, mas sim tribal, étnico e regionalista. Diz-se que em algumas cidades que eram tradicionalmente de um certo Partido político, houve pessoas que saíram das suas regiões para essas cidades e aí exercer o seu direito de voto para o candidato da sua tribo, clã, grupo étnico ou região. Também se apregoa que os Partidos têm as suas raízes em determinadas regiões, fazendo pensar que os Partidos políticos têm raízes tribais. Ao nível económico sente-se a mesma força divisionista com base na tribo. Ouve-se e lê-se com insistência que a tribo ou grupo étnico que está no poder (entenda-se o clã dos líderes) reclama para si o direito às oportunidades de negócios, com exclusão premeditada de outras tribos. Cada região ou tribo “come” por vez no processo de alternância do poder. Analistas com certa credibilidade intelectual até questionam os processos de tribalização da democracia, advogando, por exemplo, que não se deveria ter passado o poder do Sul para o Norte do País, sem passar pela região do Centro. E tudo isto defendido como se fosse ciência e academia.

O que quer que se diga e que se entenda foge totalmente da asserção da consolidação do sistema democrático. De facto não há nada que objectivamente indique que a FRELIMO é da região sul, ou dos matshanganas pois na sua composição, mesmo ao nível da cúpula, é tribalmente heterogénea. O mesmo se pode dizer da RENAMO. É possível que dentro de cada Partido haja lutas que pareçam tribais, mas isso não passa de artimanha de luta pelo poder em detrimento da consolidação da democracia.

No meio disto tudo não existem evidências claras que mostrem que o povo Moçambicano seja tribalista. O pouco que existe registado parece indicar que houve mais assimilação entre as tribos e grupos étnicos/linguísticos do que escaramuças motivadas por diferenças. Grande parte dos grupos étnicos que povoam Moçambique faziam parte de um grupo maior denominado de Ngunis que incluía os Xhosas, Zulos, Ndebeles e Swatis. O grupo todo, sem querelas tribais dignas de realce parece ter vindo da Região dos Grandes Lagos para o Sul em movimento migratório e não de guerras de conquistas de outras tribos. No processo migratório foram se fixando em várias partes do Sul do continente Africano interagindo normalmente com as tribos locais. A chamada tribo dos Ndaus da região da província de Sofala parece ter origem na região de Mbire no Zimbabwe. Mbire era um pequeno reinado do grande Reino de Mwenemutapa, mas que se tornou independente com a desagregação do reino dos Mutapas. Essa desagregação parece ter surgido por querelas entre a família real e não uma guerra de tribos. Os Ndaus, mais motivados pela busca de comércio com os árabes, movimentaram-se mais para o sul chegando a atingir a zona de Chimoio, Búzi e Sofala. Face ao declínio do comércio com os árabes e lutas entre membros da família real, muitos Ndaus se movimentaram ainda mais para o sul chegando a Matchaze, Arquipélago de Bazaruto e até Inhambane, onde se teriam misturado com grupos étnicos do sul. Ainda hoje é comum encontrar casos em que os “nhamussoros” da zona de Gaza, falantes de shangana, quando encarnam um espírito do passado expressam-se em Ndau. Brazão Catopola defende com testemunhos populares que desde há muitas centenas de anos que existe amizade e solidariedade entre os Makondes e os Yahos. O “huvilo ” estabelece uma relação de amizade entre Makonde e Yao, Makonde e Nguni e Makonde e Mungu.

Estes exemplos de mais harmonia que disputas entre grupos tribais e étnicos de Moçambique são encontrados em todas as regiões do País. A maioria do povo moçambicano não parece ter estado nem estar mergulhada em guerras tribais. É talvez por isso que a região sul do País votou de forma esmagadora no actual Presidente da República, nascido em Cabo Delgado. O líder da RENAMO teve mais votos em Sofala do que em Nampula, sua província natal. Empiricamente, isto demonstra que o tribalismo que procura antagonizar grupos étnicos diferentes é fomentado mais pelas elites oportunistas do poder do que pela população. Mesmo quando se diz que a tribo tal já “comeu” e por isso agora é vez da tribo tal, não passa de uma artimanha, pois a maioria das pessoas de todas as tribos do País continua com fome e com sede, à espera de melhores oportunidades. De facto, se há alguém que “já comeu” e “está a comer” são as elites, independentemente da sua tribo, partido ou região.

O fomento de interesses tribais onde eles não existem vai esvaziar mais a democratização do País. A alteração dos processos para a eleição do Governador da Província com base na lista dos candidatos às Assembleias Provinciais (cabeça de lista de um Partido), vai reforçar nalgumas mentes a noção de escolha com base na tribo. Isto porque a configuração geográfica actual das províncias foi feita pelo sistema colonial com base em grupos étnicos, na teoria de “dividir para reinar”. Por isso o Governador Provincial e os membros da Assembleia Provincial vão ter que ser daquela Província e, portanto, maioritariamente do grupo tribal ou étnico dominante naquela Província. Se isto for explorado como tribalização corre-se o risco de se dividir o País em vez de atingir os nobres objectivos de descentralização. Dentro da mesma Província vai haver lutas titânicas de cariz tribal para se escolher o cabeça de lista de um Partido. A almejada consolidação da descentralização pode descambar em fragmentação geográfica com consequências imprevisíveis e incontroláveis. Ou ainda como diz o filósofo Severino Nguenha “o esquema que foi montado favorece o surgimento de grandes aparatos partidocráticos”. Ou seja, o formato pode levar a uma centralização do poder, subordinando todas as regiões e as suas tribos.

A questão de convivência de sistemas modernos de democracia com a organização social com base na tribo parece ter uma resposta óbvia e positiva, se considerarmos que a proto democracia e a democracia moderna não colidem. Pelo contrário, um pode ser o percursor do outro. É uma questão de enveredar pela consolidação da democratização da tribo, e rejeitar a tribalização da democracia.”

(…)

quarta-feira, junho 02, 2021

Queda de preços

A decisão foi reveladora de desconfiança na capacidade do governo em assegurar condições de desenvolvimento do projecto da Área 1. A resistência do regime perante pressões externas, no sentido de aceitar uma força regional militar para neutralização da ameaça, e a falta de entendimento entre os Estados-membros da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), vieram agravar a percepção de que não existe uma solução viável no curto prazo e aumentar externamente o “risco-país”. Penalizadora do crescimento económico, a suspensão do projecto Mozambique LNG pelo principal operador, Total, e a conclusão antecipada de diversos contratos por parte da multinacional francesa são factores de alto risco também para as finanças do Estado. O projecto de gás natural da Anadarko/ Ocidental, adquirido entretanto pela Total (Área 1), e da ExxonMobil/Eni (Área 4) na bacia do Rovuma foram, respectivamente, o primeiro e segundo maiores investimentos em Africa no período entre 2015-2020.

A queda do preço do petróleo em resultado da de pressão económica internacional resultante da pandemia da covid-19 veio obrigar as multinacionais do petróleo e gás a rever várias das suas opções estratégicas, privilegiando uma postura mais defensiva e cortando em vários investimentos previstos. As participações das “majors” na qualidade de nãooperadores representam perto de 1/3 do total das suas participações. As prioridades para venda dever-se-ão concentrar em posições de participação meramente financeiras, sem responsabilidade sobre a operação.  Também algumas das posições enquanto líderes dos consórcios poderão igualmente ser alienadas, visando reduzir a exposição, tendo em conta prioridades estratégicas e compromissos ambientais relacionados com emissores poluentes. Se, para potenciais investidores, este cenário se apresenta como oportunidade para rentabilizar o investimento, para os Estados africanos as perspectivas poderão atrasar projectos ou mesmo resultar em desinvestimento com forte incidência sobre as receitas fiscais e projectos considerados estruturantes. Entre os países onde os portfolios poderão ser vendidos ou que já se encontram no mercado, referidos por especialistasdo sector, constam:

Angola, com a equacionada venda pela Exxon Mobil da participação em 3 blocos (15,17 e 32) devido ao facto de terem atingido a maturidade e dos custos de exploração se revelarem demasiado elevados face a um quadro de queda dos preços internacionais do petróleo;

Moçambique, com a venda pela Exxon Mobil e Eni da totalidade ou de parte das respectivas participações no consórcio da Área 4; Guiné Equatorial, com a venda pela ExxonMobil de 71% do complexo do Zaire, considerado não essencial e em declínio de produção; Zaire está a produzir c. 1/5 do que produzia em 2006, no inı́cio da exploração; Gabão, com a venda pela Total de 100% da sua participação, hoje reduzida após a venda de uma percentage à Perenco e Assala Energy.

Um cenário deste tipo para Moçambique poderá representar atrasos acrescidos no desenvolvimento do projecto Rovuma LNG (offshore), pertencente à Área 4, através do qual o consórcio iria produzir gás natural a partir dos blocos situados em Mamba. Se as perspectivas de inicio das operações continuam, em primeiro lugar, dependents das conclusões do processo de redefinição dos custos do projecto, em análise pelo operador (Exxon Mobil), cresce agora a possibilidade de a participação ser colocada no mercado para venda. Actualmente, é muito pouco provável que a Decisão Final de Investimento (FID) possa ocorrer antes do final do próximo ano (AM 1299), situação que é agravada pela persistente insegurança em Cabo Delgado que desvaloriza os activos do consórcio, à semelhança do que acontece com a Área 1, liderada pela Total, cujo desenvolvimento do projecto em Afungi está suspenso até haver condições de segurança para retoma.

O consórcio Mozambique Rovuma Venture S.p.A. (MRV), detido pela Exxon Mobil, Eni e CNPC - operadores, que controlam 70% da concessãode exploração e produção - e a GALP, KOGAS e Empresa Nacional de Hidrocarbonetos (ENH, pública) que detêm 10% cada, fechou em 2017 o FID, relativo à construção de uma plataforma de extração lutuante (Coral Sul), cujo início de produção está previsto para 2022. O Rovuma LNG, que funcionará a partir de Mamba, deveria produzir 4-5 vezes o estimado para o Coral Sul. Um cenário de desinvestimento nos dois principais parceiros da área 4, embora considerado improvável no curto prazo segundo fontes do sector no país, constituiria um forte revés para o “hub” de gás natural, pelos atrasos, eventual revisão em baixa de dimensão/investimento e perda de valor em geral que poderia implicar. Para já, este cenário coloca Moçambique refém de opções estratégicas das multinacionais do gás, na prática que comprometem a respective continuidade a prazo. Os actores asiáticos, sobretudo chineses, são considerados potenciais interessados, o que a confirmar-se alteraria igualmente as parcerias externas moçambicanas, acentuando a sua dependência da China. (Africa Monitor/Zambeze)