Ao segundo romance - com o cenário em Moçambique -
considera que não "há temáticas para pessoas mais velhas e outras para
jovens". Questionar o pós-independência daquela antiga colónia portuguesa
é um dos seus objetivos.
Gente Acenando para Alguém Que Foge é um romance sobre o
filho que quer saber mais da vida do pai enquanto esteve na guerra em África.
Não deixa de dizer que o livro possui uma "forte carga
autobiográfica", mas muita da narrativa resulta da expedição de Paulo
Faria a Moçambique e da ficção que é criada a partir dessa experiência,
entrelaçando o que viu e ouviu com um mundo que não era seu mas que precisava
de compreender para dissipar as dúvidas que persistem em todos os que viveram
esta fase de um império em conflito. Um romance que saiu em véspera de
quarentena e ficou proibido de ser lido.
Este foi um romance que ficou
confinado nas livrarias poucos dias após ser publicado. O que sentiu com essa
"censura"?
Em bom rigor, a
literatura está, há muito tempo, confinada. A época em que os ficcionistas e
poetas eram figuras de proa da sociedade, capazes de influenciar, em certa
medida, os modos de pensar, capazes de criar uma realidade e um imaginário que
se sobrepusesse à vida de todos os dias, essa época acabou. Basta pensar no
estatuto que tiveram Hemingway, Camus, Mailer, Ginsberg e tantos outros. Quando
eu era pequeno, o meu pai ligava a televisão à hora do jantar e, durante meia
hora, em horário nobre, Vitorino Nemésio monologava. E (coisa impensável hoje)
não tentava fazer rir ninguém. Não tenho saudades nenhumas desse tempo, pelo
contrário, limito-me a verificar a mudança radical de paradigma. O confinamento
da literatura já cá estava, o confinamento da pandemia apenas veio pô-lo a nu.
Este é um segundo romance. É
verdade que é mais difícil do que o primeiro?
Só posso falar por
mim. O segundo romance foi mais difícil do que o primeiro, porque decidi
regressar aos mesmos temas e abrir as comportas que tinha mantido fechadas
dentro de mim. Foi difícil tomar essa decisão: ir mais longe do que no primeiro
romance, escaqueirar os bibelôs que ainda tinham ficado intactos nas
prateleiras. Sempre fui um miúdo muito contido, nunca joguei à bola dentro de
casa, não partia nada, não corria pelas divisões, não gritava. O segundo
romance foi um berro que se ouviu no prédio inteiro, espero. Mas não é fácil
gritar, pelo menos para mim.
Os leitores conhecem-no mais da
tradução. Foi pacífico emancipar-se dos livros dos outros e ter a sua própria
voz?
A tradução já é, à
sua maneira, uma forma de escrita. O tradutor pede de empréstimo as vozes de
outros escritores e apropria-se delas. Digamos que a tradução me ajudou a
ganhar coragem para escrever. Os escritores que traduzi - e tive a sorte de
traduzir alguns muito bons -, sem o saberem, ajudaram-me a tornar-me escritor.
Sentiu necessidade enquanto
tradutor de visitar a terra de origem de certos romances - ouvi-o dizer isso
sobre um de Don deLillo. Este Gente segue esses passos?
Sim, em certa
medida, mas agora de uma maneira íntima. Em vez da postura do turista literário
empenhado, que adotei quando viajei até às raízes de certos romances que
traduzi, com Gente acenando para alguém que foge fiz uma viagem às origens da
minha guerra íntima. Fui a Moçambique, para ver os lugares onde o meu pai fez a
guerra colonial e falar com as pessoas contra as quais ele combateu. E fui até
lá em busca de um garoto, o Artur, que, se estiver vivo, é um homem da minha
idade. Claro que não o encontrei. Ao sair de Portugal, talvez já soubesse que
não o ia encontrar. Ou seja, tenho de lá voltar. E, tal como fizera no primeiro
romance, o Estranha Guerra, falei com os camaradas de armas do meu pai, viajei
pelas memórias deles. E viajei pelas minhas, claro, desta vez até muito mais
longe. Sempre em guerra.
O título é "roubado" a
Fernando Assis Pacheco. Porque assentava como uma luva ou foi uma homenagem a
quem escreveu a primeira poesia sobre a Guerra Colonial?
O verso "Gente
acenando para alguém que foge" pareceu-me o título perfeito para um
romance que fala, principalmente, de desencontros. O desencontro colonial,
claro, entre colonizadores e colonizados, mas também o desencontro familiar,
que é um prolongamento - ou uma variação - daquele. Desde cedo, senti que as
vidas e as mentes dos que me eram mais próximos regiam-se, em grande medida,
pelo paradigma colonial, de apropriação do outro, ignorando as necessidades e
os sentimentos do outro, que não passavam de elementos decorativos. A reação do
colonizado, inevitavelmente, era a fuga. Fui criado assim, entre gente acenando
para alguém que foge.
Pode-se dizer que este romance
nasce da extrema vontade de contar uma história que lhe estava atravessada há
algum tempo ou a narrativa resulta apenas de escrever um livro?
A literatura que
resulta da vontade de contar histórias que nos ficaram "atravessadas",
normalmente, não presta. John Banville escreveu que pouco lhe interessa o que
as pessoas fazem; interessa-lhe, sim, o que elas são. A história que me ficou
"atravessada" é, em bom rigor, tudo o que vejo, tudo o que sinto,
tudo o que sou. Digamos que a minha simples presença neste mundo me está, em
certa medida, "atravessada", na medida em que não tenho, ainda, a
certeza de que se justifique, pelo menos enquanto escritor.
Há alguém que diz não ser capaz de
imaginar o rosto de outro. Como foi a tarefa de criar a dimensão das
personagens principais?
O romance tem uma
forte carga autobiográfica, como é evidente. As personagens correspondem, na
sua essência, às pessoas que povoam a minha vida. Porém, as coisas não se
passaram bem assim. Parto do que aconteceu para chegar a coisas que não
chegaram a ocorrer Pego em pessoas que existem e atribuo-lhes traços que não
possuem e motivações que talvez não tenham. A dado passo, a distância aumenta e
a personagem é já tão diferente da sua raiz que a própria pessoa não se
reconhece.
"Isso é um filme para pessoas
mais velhas", diz alguém. Este romance não pode ser também assim
catalogado?
Não me parece que
haja temáticas "para pessoas mais velhas" e outras para jovens.
Vivemos numa sociedade obcecada com a juventude, em que toda a gente quer ser
jovem, tanto na aparência física como nas ideias. Eu recordo a minha infância e
juventude como um longo tormento, uma sucessão daquilo a que se costuma chamar
"figuras de urso", de cada vez que me tentei parecer com os outros.
Faço minhas as palavras de Belmondo em O Acossado. Uma jovem tenta vender-lhe
um exemplar dos Cahiers du Cinéma, ele diz que não. Ela contrapõe: "Mas
não gosta dos jovens?" E ele: "Não, prefiro os velhos." Criou-se
entre nós um estereótipo de "jovem" a que todos querem corresponder,
mas que não passa disso mesmo: um estereótipo. O passado de um país, declinado
no passado dos indivíduos que o compõem, não é, de todo, um tema para
"pessoas mais velhas".
Muita da investigação transparece no próprio texto, até com a
citação das fontes. Essa ligação ao real não diminui o poder da ficção?
Eu não lhe chamaria "investigação". Aludo a livros que
li, autores de que gosto. Os meus romances são seres híbridos, com um pé na
ficção e outro na realidade. São como casas voadoras onde entra e sai muita
gente, onde há livros, onde se vê filmes. Não me parece que isso diminua o
poder da ficção.
As fotografias de guerra são um material precioso para o
protagonista avançar. É um artifício literário ou com suporte na realidade?
As fotografias do tempo da película, pré-digitais, têm qualquer coisa de mágico. Como cada rolo continha um número limitado de negativos, as pessoas escolhiam criteriosamente o que queriam fotografar. As fotografias, em certa medida, eram pequenos quadros, pequenas pinturas, em que as pessoas posavam. Quando o meu pai se divorciou da minha mãe e saiu de casa, deixou-nos a sua coleção de fotografias da Guerra Colonial. Brincávamos com elas, sem conhecermos um só dos homens que nelas figuravam, à parte o meu pai. Numa das fotografias, havia um menino negro vestido com um uniforme em miniatura. Descobri mais tarde que se chamava Vítor, chamei-lhe Artur nos meus romances. Estas fotografias criaram no meu espírito uma geografia imaginária, sem nenhuma relação com os lugares onde o meu pai andou e sem nenhuma relação com a Moçambique genuína. Estas fotografias criaram no meu espírito uma outra guerra colonial. A minha guerra colonial.
As fotografias do tempo da película, pré-digitais, têm qualquer coisa de mágico. Como cada rolo continha um número limitado de negativos, as pessoas escolhiam criteriosamente o que queriam fotografar. As fotografias, em certa medida, eram pequenos quadros, pequenas pinturas, em que as pessoas posavam. Quando o meu pai se divorciou da minha mãe e saiu de casa, deixou-nos a sua coleção de fotografias da Guerra Colonial. Brincávamos com elas, sem conhecermos um só dos homens que nelas figuravam, à parte o meu pai. Numa das fotografias, havia um menino negro vestido com um uniforme em miniatura. Descobri mais tarde que se chamava Vítor, chamei-lhe Artur nos meus romances. Estas fotografias criaram no meu espírito uma geografia imaginária, sem nenhuma relação com os lugares onde o meu pai andou e sem nenhuma relação com a Moçambique genuína. Estas fotografias criaram no meu espírito uma outra guerra colonial. A minha guerra colonial.
A literatura portuguesa sobre a Guerra Colonial é pouco
"profissional" comparada com a de outros países que viveram situações
semelhantes. Porque convivem mal os autores portugueses com esta parte da nossa
história?
Francamente, não concordo com a premissa da pergunta. Temos excelente prosa acerca da Guerra Colonial (António Lobo Antunes, João de Melo, Mário de Carvalho) e também poesia (Assis Pacheco, logo para começar). Quem conviveu mal com esta parte da nossa história fomos todos nós, a geração do 25 de Abril e a dos filhos do 25 de Abril, para quem as experiências da Guerra Colonial, do retorno e da resistência à ditadura foram remetidas para o rodapé da história. Como se o 25 de Abril tivesse virado a página de um dia para o outro e não valesse a pena pensar muito no que ficou para trás. Como se não valesse a pena discutir o que nos trouxe até aqui, dar voz a quem (no caso da Guerra Colonial) travou uma guerra que, de um dia para outro, passou de imperativo patriótico a uma coisa vergonhosa. O facto de pouco se falar de crimes de guerra portugueses no ultramar - e houve muitos, como em todas as guerras - é revelador do nosso recalcamento coletivo. Retomando a sua pergunta: a ser verdade que os autores portugueses convivem mal com esta parte da nossa história - o que não me parece líquido -, isso não é mais do que o corolário lógico do facto de os portugueses conviverem mal com esta parte da nossa história.
Francamente, não concordo com a premissa da pergunta. Temos excelente prosa acerca da Guerra Colonial (António Lobo Antunes, João de Melo, Mário de Carvalho) e também poesia (Assis Pacheco, logo para começar). Quem conviveu mal com esta parte da nossa história fomos todos nós, a geração do 25 de Abril e a dos filhos do 25 de Abril, para quem as experiências da Guerra Colonial, do retorno e da resistência à ditadura foram remetidas para o rodapé da história. Como se o 25 de Abril tivesse virado a página de um dia para o outro e não valesse a pena pensar muito no que ficou para trás. Como se não valesse a pena discutir o que nos trouxe até aqui, dar voz a quem (no caso da Guerra Colonial) travou uma guerra que, de um dia para outro, passou de imperativo patriótico a uma coisa vergonhosa. O facto de pouco se falar de crimes de guerra portugueses no ultramar - e houve muitos, como em todas as guerras - é revelador do nosso recalcamento coletivo. Retomando a sua pergunta: a ser verdade que os autores portugueses convivem mal com esta parte da nossa história - o que não me parece líquido -, isso não é mais do que o corolário lógico do facto de os portugueses conviverem mal com esta parte da nossa história.
Estes cenários anteriormente colonizados por Portugal dificultam
a não existência de um olhar neocolonialista. Como guiou os seus passos neste
regresso a Moçambique em tempos de um intenso politicamente correto?
O olhar neocolonialista acontece quando ficamos à superfície das coisas, quando não percebemos as causas e os efeitos. Não há colonialismo sem violência, e todo o colonialismo é/foi uma forma de violência, mais ou menos brutal, mais ou menos edulcorada. A falácia do português enquanto colonialista "bonzinho", por oposição aos belgas ou aos boers, não resiste à mais elementar análise da história das nossas colónias. A violência culminou nas inevitáveis guerras coloniais. Bastou que uma ínfima fração dos nativos das colónias se instruísse para perceberem a absoluta iniquidade da maneira como eram tratados. Inevitavelmente, à violência do colonialismo e à violência das guerras coloniais seguiu-se mais violência, a violência das guerras civis. Quanto a nós, aqui na chamada metrópole, como não fomos capazes de refletir seriamente acerca do nosso passado colonial, restou-nos passar, quase sem transição, de colonizadores a colonizados (cultural e economicamente, comportamo-nos como uma colónia anglo-saxónica). Dito isto, fui a Moçambique em busca dos meus fundamentos. A nossa experiência colonial explica aquilo que somos, explica aquilo que o meu pai foi, explica aquilo que eu sou. É em Moçambique que está a chave do meu ser. Tenho de lá voltar.
O olhar neocolonialista acontece quando ficamos à superfície das coisas, quando não percebemos as causas e os efeitos. Não há colonialismo sem violência, e todo o colonialismo é/foi uma forma de violência, mais ou menos brutal, mais ou menos edulcorada. A falácia do português enquanto colonialista "bonzinho", por oposição aos belgas ou aos boers, não resiste à mais elementar análise da história das nossas colónias. A violência culminou nas inevitáveis guerras coloniais. Bastou que uma ínfima fração dos nativos das colónias se instruísse para perceberem a absoluta iniquidade da maneira como eram tratados. Inevitavelmente, à violência do colonialismo e à violência das guerras coloniais seguiu-se mais violência, a violência das guerras civis. Quanto a nós, aqui na chamada metrópole, como não fomos capazes de refletir seriamente acerca do nosso passado colonial, restou-nos passar, quase sem transição, de colonizadores a colonizados (cultural e economicamente, comportamo-nos como uma colónia anglo-saxónica). Dito isto, fui a Moçambique em busca dos meus fundamentos. A nossa experiência colonial explica aquilo que somos, explica aquilo que o meu pai foi, explica aquilo que eu sou. É em Moçambique que está a chave do meu ser. Tenho de lá voltar.
Não entendo muito bem em que é que possa haver branqueamento. Nessa página e nas seguintes, há um diálogo do meu protagonista com um grupo de brancos - uns nascidos em Portugal, outros nascidos em África -, em Nampula, num hotel. Essa conversa ficcional baseia-se em conversas que tive em Moçambique com vários brancos. Nunca tinha ouvido pessoas darem largas a um racismo tão descarado, tão à flor da pele, tão brutal, o que, pensando bem, não me espanta. Os fundamentos desta maneira de pensar são os mesmos de há cinquenta ou cem anos: os negros não se sabem governar, sem os brancos África está condenada. O corolário lógico deste raciocínio é: "Eles ainda nos vão pedir para voltarmos." Torno a sublinhar o que disse antes: as explicações simplistas têm a pele coriácea e perpetuam-se. A única solução é trilhar o caminho que Rithy Panh aponta: "Quero compreender, explicar, recordar-me - precisamente por esta ordem."
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