domingo, maio 01, 2011

Há menos capacidade para suportar a pobreza!

É dos mais activos académicos moçambicanos, em termos de produção científica. Economista de grande gabarito nacional, docente universitário, Professor Doutor em Ciências Agrárias, João Mosca. Foi com este reputado académico moçambicano que o Canal de Moçambique dialogou sobre diversos assuntos da vida do país, mas com principal enfoque na economia. Mosca responde a todas as questões que lhes são colocadas. Transcrevemos aqui a terceira e ultima parte da entrevista.

CM: Uma situação que parece paradoxal é que o país é “pobre”. As diversas avaliações internacionais, como o IDH das Nações Unidas, mostram que Moçambique está entre os dez países mais subdesenvolvidos do mundo, mas estando em Maputo é possível ver carros de elevados custos a circular: limusinas, Hummers, e temos palácios de luxo aqui… a que se deve essa disparidade? Que pressupostos da Economia Política podem explicar esta realidade?

JM: Isso deve-se ao facto de termos um padrão de acumulação e de distribuição super concentrado. Isto é, quem se beneficia dos recursos externos, quem se beneficia do pouco crescimento económico que existe, quem se beneficia das poucas iniciativas empresariais, é cada vez mais um grupo restrito de pessoas. Não existe um processo de crescimento económico inclusivo. Isto porquê? Porque os sectores que estão a promover o tal crescimento económico são poucos. E sob estes sectores, o grupo das pessoas que se beneficia é pouco, não só do lado do capitalista, do investidor, mas também da geração do emprego. Vai ver a Mozal, vai ver a Sasol, vai ver os projectos de exploração de carvão, são sectores pouco geradores de emprego comparativamente com o volume de investimento realizado. Isto indica que este modelo de crescimento económico produz uma grande acumulação de recursos, seja na sua produção, assim como na distribuição, logo uma grande parte da população não é abrangida por este processo de crescimento económico. O quê isso significa? Que há cada vez mais uma grande desigualdade de rendimento entre a população: os mais ricos são cada vez mais ricos e os mais pobres são cada vez mais pobres. Devo adiantar que já existem evidências claras e documentos mais sérios e conhecidos, em como a pobreza em Moçambique nos últimos anos não diminuiu e até tende a aumentar. Principalmente nas zonas rurais e não só, assim como nas zonas urbanas. Já existem estudos que confirmam absolutamente isso. Isso significa que a política de combate à pobreza ao fim de 4 a 5 anos não resultou! Mas porquê? Crescimento e riqueza concentrados, não existe distribuição de recursos, não existe processo de crescimento económico de recursos, logo as desigualdades sociais estão a aumentar, está a aumentar a pobreza.

JM: O economista David Lands escreve na sua obra “A Riqueza e a Pobreza das Nações” que, para garantir a segurança dos ricos, é preciso garantir o mínimo de bem-estar aos pobres”. Com esta situação que Dr. descreve aqui, aonde iremos chegar no tocante à estabilidade social do país?

Mosca: Há pessoas que já foram do Governo e que trabalham actualmente muito perto do poder que dizem que se entre o 5 de Fevereiro (de 2008) e 1 de Setembro (de 2010) foram dois anos e alguns meses, agora se calhar a previsibilidade de convulsões pode ir reduzindo. O que quer dizer com isso? Quer dizer que enquanto as desigualdades sociais, a situação da pobreza vão aumentando, as pessoas vão tendo cada vez mais conhecimento, vão tendo cada vez mais acesso à informação, vão tendo a certeza de que a riqueza está concentrada nas mãos de algumas pessoas. Então, juntando todos estes factores as pessoas ficam indignadas e quando há indignidade a revolta é normal. Portanto, não há nada que nos possa garantir que não haverá mais “1 de Setembro” e se calhar, como alguém já disse, num curto período de tempo do que aquilo que nos separou de 5 de Fevereiro. Mas há uma coisa importante. As pessoas têm cada vez menos capacidade de aguentar a pobreza. As pessoas sabem que são pobres e resignam-se por isso, mas cada vez menos aceitam essa resignação. E muito menos nas cidades, porque as pessoas vêem a riqueza, vêem os recursos, vêem as pessoas a exibir o luxo. Vêem a possibilidade de melhorarem as suas condições de vida, mas não lhes é dada essas oportunidades. Pelo contrário, são reprimidas, não há uma comunicação para lhes informar da situação, não existe uma relação Estado, governantes e governados.Portanto, as pessoas sentem-se indignadas. Têm a noção de que podem não ser pobres, querem não ser pobres, mas não podem. Então, as pessoas aderem (às revoltas). É diferente do homem aqui de Polana-Caniço que está em contacto permanente com a riqueza, tem uma capacidade de sustentar a sua pobreza muito diferente da pessoa que está em Gorongosa, que não sabe o que se passa em Maputo, não tem a noção do que se passa em Maputo. A sua capacidade de sustentar a riqueza é muito maior, para ele a pobreza é como se fosse uma “maldição de Deus”.

CM: As instituições internacionais continuam a drenar recursos em nome do povo, mas estes parece que só beneficiam a alguns… será importante manter a ajuda externa nos moldes em que vem?

JM: Primeiro, é importante dizer que nós não podemos, num espaço médio de tempo, e se calhar de bastantes anos, prescindirmos da ajuda externa. Seria uma catástrofe. Portanto, nós devemos aceitar que a ajuda externa é absolutamente necessária ao país.O que nós criticamos é como são canalizados os recursos externos. É correcto que os recursos externos sejam canalizados via Estado ou é correcto que a comunidade internacional financie directamente os projectos sem passar pelo Estado? Porque, mesmo que exista corrupção nesses projectos será uma corrupção mais distribuída. E a corrupção é mais concentrada se for realizada pelo Estado.

Portanto, o financiamento directo aos beneficiários, comunidades e aos empresários, é uma das melhores formas. Outra forma é haver pressões no sentido de se assegurar que a governação deve ser transparente e tem que haver medidas violentíssimas para acções de corrupção. E deve ser aprofundada a lei sobre o conflito de interesses. Existe esta lei, a que obriga os titulares dos altos órgãos do Estado a declarar o seu património, mas estas leis não são cumpridas, e quem cumpre individualmente, num caso foi criticado.Portanto, estas são partes muito importantes para que os recursos externos, que são importantes, sejam utilizados para o desenvolvimento da nação.

Por outro lado, é importante que os recursos externos sejam canalizados para sectores que gerem emprego e que produzam riqueza de uma forma socialmente mais ampliada possível.Eu estou de acordo com que se deve fazer uma diplomacia inteligente, no sentido de assegurar a continuação dos recursos, mas também estaria de acordo que os recursos fossem destinados cada vez mais aos beneficiários, mas também estaria de acordo que houvesse uma lei de conflitos de interesse, lei de obrigação de declaração do património.De qualquer maneira é muito importante ter uma estratégia de saída da ajuda externa. E esta estratégia permitiria que daqui a 15 anos a nossa dependência seja reduzida ao mínimo sustentável, e não ter um mecanismo, uma forma de governação assente na ajuda externa, que é aquilo que acontece neste momento.Estamos numa lógica de crescimento com base em recursos que são doados, aumento da dependência externa, porque há pessoas que ganham com isso.A elite africana, e também moçambicana, não está interessada com a endogeneização da economia interna, não está interessada em sair da dependência, precisamente porque há uma elite política que se beneficia com isso.

CM: Temos recursos naturais: carvão, gás. Agora foi anunciada a descoberta de petróleo, ouro, prata. Com este modelo de governação que temos, será que o Povo pode comemorar a descoberta destes recursos? Estes recursos são mais-valia para o desenvolvimento do país?

JM: As experiências que nós temos são de que em África, também nos países árabes, embora nestes cada vez menos, países com grandes quantidades de recursos naturais, são países com sérios problemas políticos, sociais e de instabilidade.Isso porque os recursos são retirados à nação, beneficiam grupos minoritários no país, as populações não se beneficiam disso, e portanto os países têm cada vez menos esses recursos porque são recursos não renováveis e gera-se problemas. Temos problema de Cabinda, temos problema de Biafra, temos problema de Sudão, assim temos situações em muitos outros países. Os recursos não são maus, mau é a forma como nós vamos utilizá-los. Por exemplo, a nossa energia é mais cara do que a energia da África do Sul, mas a energia é feita em Cahora Bassa. O que isso significa? Significa que as nossas próprias empresas que produzem esses recursos, também são pouco eficientes. A água não vem de fora, é local. Então há problema de eficiência em toda a cadeia de produção de energia para poder fazer a energia chegar barata para todos os consumidores. Então, é tudo uma questão de gestão macroeconómica. Por exemplo, porquê é que as grandes empresas não pagam imposto em nosso país? E se pagassem imposto? Existem estudos que indicam que se estas grandes empresas pagassem imposto, não precisaríamos da ajuda externa para o Orçamento do Estado. Precisaríamos de ajuda para outros objectivos, mas não para o Orçamento do Estado. Mas elas não pagam imposto.

CM: A tese do Governo é que “se fosse para pagar impostos, estas empresas não estariam cá”. Estão cá precisamente devido a esse incentivo de isenções fiscais, neste momento, mas depois de algum tempo terão que pagar impostos...

Mosca: Não. A Mozal pode ser uma caso particular porque importa a matéria-prima. Mas o caso de carvão, eles vêm buscar o carvão cá; o caso de gás, eles vêm buscar o gás cá, o caso das areias pesadas, idem, algodão, idem. Portanto, eles vem buscar recursos, porque é necessidade deles. Se eles não vêm cá buscar os recursos, podem ir buscar noutros sítios, mas nalgum momento eles terão que vir buscar porque Moçambique tem algumas reservas interessantes de gás, de carvão e tem um potencial produtivo de energia para a África do Sul que tem um défice violento de energia que nós devemos aproveitar.Portanto, nós temos recursos. Se eles querem recursos estão cá. O caso da Mozal é um pouco diferente, porque a Mozal importa a matéria-prima, não aproveita recursos locais, portanto o caso da isenção dos impostos pode fazer algum sentido para a empresa permanecer cá. Mas também há estudos que provam o contrário.Por exemplo, Castel-Branco diz que isso não é verdade. Portanto, é preciso ver até que ponto a taxação provocaria a saída das empresas do país.Os recursos naturais de um país devem beneficiar a sua população. Por exemplo, a Sasol exporta gás, mas ao longo do viaduto, de Inhambane até a fronteira, quantas comunidades se beneficiam com o gás? Com bocas de saída de gás para iluminar as comunidades de uma forma sustentável, de uma forma não poluente, e se calhar mais barata, quantas populações se beneficiam? Zero!

CM: Ainda sobre a forma como são explorados os nossos recursos naturais, nós importamos a matéria-prima. Exportamos o gás em viadutos, exportamos a madeira em troncos, não seria mais viável importar produtos acabados? Será que temos uma engenharia qualificada para controlar quanto gás sai do país por pipelines?

JM: Tudo isso são coisas que é preciso equacionar. Primeiro, é preciso ter pessoal formado e qualificado que trabalhe no sector. E não sei se nós estamos a formar pessoal com alta qualificação para isso. Os angolanos têm alta qualificação nos petróleos, eles não estão a brincar com o petróleo.Nós não temos domínio tecnológico de petróleo, do gás, do carvão, nós não temos pessoal moçambicano qualificado para isso.Também estou de acordo que poderíamos aproveitar os nossos recursos de uma forma sustentável, que poderíamos ter níveis de extracção dos nossos recursos a longo prazo para que as futuras gerações também se possam beneficiar.É o caso das florestas. Têm o seu ciclo de reprodução, mas tiramos lá os produtos indiscriminadamente. As pescas idem.O que se está a passar com os garimpeiros das pedras preciosas e de ouro em Manica são coisas absolutamente violentas para a natureza, para as pessoas e não sustentáveis. Mas as licenças das minas estão localizadas em certo grupo de pessoas.O que acontece nas pescas, nas florestas, é que você tem a licença, mas você não é pescador. Então vem um empresário, deve comprar licença a si. Você vende a licença e fica em casa a ver televisão porque você conhece alguém no aparelho do Estado que lhe deu a licença de pesca e portanto, assim vivemos! Desta forma não é possível desenvolver o país! Nós estamos a exportar agora depois de uma lei que saiu há dois, três anos, madeira com pequena transformação, mas nossas fábricas de serração estão fechadas. Nós tínhamos indústrias de contraplacados que exportavam em Moçambique, a partir da Beira, que hoje estão completamente em ruínas. Se viaja na estrada que sai da Beira para Manica, vê do lado esquerdo a fábrica em perfeita ruína! Nós estamos a exportar a matéria-prima!Portanto, nós não estamos a beneficiar o país, mas com certeza que há quem está a beneficiar.O chinês não vem cá e entra na floresta, sozinho! Ele começa na pessoa que vai lhe passar a licença, passa pela empresa que vai fazer corte e até nas pessoas que vão na floresta buscar a madeira, portanto isso é uma cadeia de interesses que beneficia um grupo muito restrito de pessoas.

CM: As manifestações de Setembro de 2010 obrigaram o Governo a adoptar uma séria de medidas de austeridade, dentre a redução de viagens aéreas de dirigentes em classe executiva. Pensa que era preciso que a população queimasse pneus para o Governo tomar este tipo de medidas?

JM: Era absolutamente desnecessário! É aquela coisa de que “dinheiro dado não custa gastar”. Dinheiro que você não produziu, consome e gasta rapidamente. Nos temos o sentido de consumo. As pessoas que têm dinheiro, o que fazem? Compram carro, casa, quinta na Matola. Quando vão de férias na quinta na Matola passam de supermercado e compram tomate. Mas tem lá a quinta com capim e não produzem tomate. Compram tomate para fazer festa na quinta. Galinha, ovo, cebola e etc. Portanto, nós temos espírito de consumo.A viagem na classe executiva é um espectáculo de poder, é um espectáculo de influência, é um espectáculo de pessoa importante. Nós gostamos muito de demonstrar aquilo que nós não somos, ou o que nós não temos. Acontece muitas vezes que o homem da organização internacional ou da embaixada vai no mesmo avião na classe económica e o nosso director vai na classe executiva, quando é o homem da classe económica que está a dar dinheiro ao director para ir na classe executiva! Portanto, significa que há um sentido de consumo muito forte, não o sentido da vida austera, da vida discreta. Há um consumismo, e muito mais quando é financiado por recursos não gerados pelas mesmas pessoas, quando é financiado por um dinheiro falso. Portanto, tudo isso deslegitima completamente a política e os políticos. Os políticos estão deslegitimados, não há credibilidade. Ninguém confia neles, por este tipo de atitudes.O problema é que o povo também, de certa maneira, é muito permissivo com isso. O povo vive naquela coisa de que o chefe é chefe, o patrão é patrão, ele está lá porque conseguiu, deixa o homem “desenrascar”, a vida é dele. Então, fica numa situação passiva e não existe a consciência e a capacidade reivindicativa e de exercício da cidadania de uma forma consciente, informada e correcta.Portanto, enquanto nós não conseguirmos que os nossos cidadãos tenham esta consciência de cidadania, reivindicativa, de manifestação, de uma forma correcta, é mais fácil que tudo isto aconteça.

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