O académico João Pereira
considera positivo o novo formato das negociações entre o governo e Renamo, que
reduziu o número de intervenientes no processo. Entende que um diálogo directo
permite a rápida identificação do problema para posterior resolução. Para o
director-executivo da Fundação do Mecanismo de Apoio à Sociedade Civil (MASC),
neste momento, o grande desafio das partes é a construção da confiança para que
haja avanços.
O ano começou
com declarações de tréguas, de princípio, prorrogáveis, e agora sem prazos.
Como olha para o processo das negociações? Acho que houve dois momentos
fundamentais nesse processo. O primeiro é a retirada do processo negocial da
esfera pública. As negociações deviam ir para os mecanismos exactos, que sempre
trouxeram resultados, se fizermos uma análise comparada com o que acontece no
resto do mundo. Acho positiva a retirada de grande parte das pessoas que
estavam envolvidas, pois assim se cria um ambiente favorável ao diálogo. O
anterior formato impedia que as duas lideranças tivessem informação exacta do
que cada uma das partes dizia ou com que não concordava. Quando há muitos
envolvidos, há muita contradição, dificuldades de processamento e análise para se
apontar os reais problemas com que a outra parte não está de acordo. Permitindo
um diálogo directo rapidamente se identifica o problema. Está de parabéns o
Presidente Filipe Nyusi por ter concluído que era preciso abandonar aquele
modelo alargado e, por outro lado, ao líder da Renamo por ter entendido que era
preferível fazer uma negociação directa. O segundo ponto é que se alcan- çou
aquilo por que grande parte das populações, principalmente, das áreas altamente
afectadas pelo conflito clamava. Conseguiu-se dar uma estabilidade às populações,
criou-se um ambiente favorável às populações e para a circulação de pessoas e
bens, o que até certo ponto estabilizou a economia do país.
Diz que há
um ambiente favorável ao diálogo, que pode contribuir para uma rápida solução,
mas o líder da Renamo lamenta a lentidão do processo e o PR pede paciência...
Isto mostra o quão
complexo é o processo de negociação de paz. No exacto momento, a questão de
fundo é o pacote sobre a descentralização, que, na lógica da Renamo, deve ser
submetido primeiro à Assembleia da República (AR) pelo governo, para que se
possa avançar com a desmilitarização e a retirada das suas forças das matas
para a integração na sociedade. O executivo também teme que possa avançar com a
proposta e a Renamo recue, e aqui toda a responsabilização daquilo que vier a
acontecer no futuro pode recair para o Presidente Nyusi. Estamos neste dilema
de quem avança primeiro. Este é um problema sério, que exige que seja eliminada
toda a desconfiança reinante no processo. As negociações devem ir de forma
paralela e, por outro lado, deve existir uma data de submissão à AR da proposta
de reforma da Constituição da República ou da proposta de descentralização e ao
mesmo tempo se avançar com todo o programa de desmilitariza- ção da Renamo.
Agora
Dhlakama reivindica que avançou na concessão de tréguas sem prazo e acusa Nyusi
de faltar com a palavra ao não retirar as posições militares à volta da
Gorongosa...
Isto é normal num
processo como este, porque a confiança, embora esteja a ser construída, ainda
não é total entre as partes. Há um passado recente em que a retirada de
Dhlakama acabou com a intervenção das Forças de Defesa e Segurança na cidade da
Beira e isso não se apaga de um dia para o outro. O governo vai dizer que tem
de retirar os militares, mas não vai tirar na totalidade, porque tem de vigiar
a Renamo para que não se reagrupe e rearme noutras posições estratégicas, o que
é difícil agora devido às restrições logísticas. No passado, contava com o
apoio dos países vizinhos, que, através de helicópteros, tiravam as tropas de
um lugar e colocavam- -nas noutro, bem abastecidas, mas agora não tem esse
apoio. A Renamo só pode acusar o governo de manter as tropas nos arredores como
uma forma de controlo. Enquanto não houver confiança suficiente na mesa de que
ambas as partes vão chegar ao acordo, vai ser difícil. Pode perecer uma
contradição ou fragilidade por parte do Presidente da República, mas não é
porque ele está a par de tudo o que está a acontecer. Ele foi ministro da
Defesa e sabe que em situação de guerra não há como deixar a base estratégica
de controlo das movimentações da contraparte, antes de se assinar um acordo.
Vai ser difícil a saída na totalidade das tropas governamentais ou vão ter de
operar na clandestinidade no sentido de continuar a controlar as movimentações
da guerrilha da Renamo.
Pretenderá
dizer que as restrições logísticas da Renamo podem ter sido um dos motivos que
levaram Dhlakama a negociar tréguas?
Há vários
factores que podem explicar as tréguas. Daquilo que vi no terreno, temos a
questão da seca, necessidade de abastecimento alimentar, porque a guerrilha
precisa de comer. Quando estás perante uma população que não tem mecanismos de
se alimentar a ela própria, fica difícil à mesma população dar de comer aos
guerrilheiros. Depois tens a insatisfação das comunidades, porque a base social
cria-se quando há insatisfação em relação aquilo que o governo está a fazer.
Agora aquelas populações preferem a paz em relação ao que o governo ou a Renamo
fazem e concluíram que nenhuma daquelas forças vai resolver os seus problemas
do dia-a-dia. As comunidades até se questionam porque a guerra é sempre aqui e
não noutros locais, porque já perderam muitos familiares, machambas entre
outros bens. A Renamo é uma guerrilha que não foi treinada para o meio urbano,
mas sim para o rural e ficaria difícil atacar outros pontos como zonas próximas
da capital sem logística muito forte. A guerra estava a ter impacto económico,
porque não havia movimento de carros, mas ainda não era suficiente para levar o
governo da Frelimo a negociar a paz.
Então o que
leva o governo a negociar?
A pressão popular,
regional e internacional e um jogo de interesses que existem a nível do gás,
petróleo, carvão e outros recursos de que o país dispõe. A questão da dívida
pública, a incapacidade do Estado de arrecadação de receitas para alimentar uma
guerra de grande envergadura ou de baixa intensidade que seria de longa
duração. Ambas as partes compreenderam bem que não era possível vencer por via
de um conflito armado, era preciso entrar na via negocial, porque as condições
materiais para a guerra não existiam.
Dizia que
não existe confiança suficiente para o governo deixar as bases da Renamo, agora
decidiu transformar Namadjiwa e Satungira em esquadra e quartel,
respectivamente, será que isto não vai comprometer o diálogo?
Se eu estivesse no lugar
do governo faria a mesma coisa, porque estamos perante uma luta de
sobrevivência e de natureza política e militar. Se o governo está em condições
de defender os seus interesses de natureza política, num campo onde há falta de
confiança mútua, só pode ocupar as áreas vitais que alimentam a guerrilha. O
governo viu que aqueles lugares são estratégicos e a solução é transformá-los
em quartéis e esquadras, o que se enquadra na política governamental. Ninguém
pode criticar o governo quando implanta esse tipo de infra-estruturas para
garantir a segurança do país.
A
construção da confiança cai ou não por terra?
Acho que não. O governo
e a Renamo deviam encontrar um ponto em que de uma vez por todas retirem todos
os obstáculos. Criavam uma comissão mista [agora existe de monitoria e
verificação composta por oito homens, quatro para cada lado] para verificar o
que está a acontecer no terreno, que deve trabalhar com outros sectores como
sociedade civil e órgãos de comunicação social nacionais e estrangeiros, que
desenvolvesse um mecanismo de monitoria do que se está a passar lá. Esse tipo
de mecanismos neutros, que permite a recolha de informação e apresentação à
comissão mista, seria muito útil neste momento do que transformar aquelas áreas
em áreas puramente militares ou ligadas à polícia.
Isto pode
ou não levar a Renamo a activar outras bases suas noutros pontos? A melhor via
é o diálogo. Se a Frelimo mostrar um sentido de arrogância e começar a ser
vista como o não facilitador do processo por transformar aquelas áreas em
esquadra e quartel, pode sofrer consequências severas nas eleições, por não ter
garantido uma paz duradoura ou um diálogo para a paz. É que nesse processo
existe a parte política, que é o diálogo, mas também a opinião pública e, neste
momento, com a crise da dívida pública, a Renamo leva vantagem. Ficando na
defensiva, ganham mais aceitação a nível da popula- ção.
O
presidente da República diz que está comprometido com a paz, sente esse
compromisso? Ele já deu
indicação de que está a avançar no processo. O que noto é que se calhar ele não
tinha noção da complexidade das coisas e, se tinha, pensava que era fácil a sua
resolução. Para ser fácil ele precisa do apoio não só da Renamo, para
identificar o problema, que está já minimamente identificado. Tem de saber que
há coisas que não podem ser feitas em menos de um mês, se falharam, por mais de
vinte anos. É preciso que o sector privado, comunidade internacional, Sociedade
Civil e meios de comunicação social ajudem não só na apreciação crítica, mas
também na solu- ção como fazer a integração dos homens da Renamo. Que tipo de
mecanismos podemos usar para fazer o enquadramento no sector da Defesa e
Segurança e integrá-los na sociedade.
Quando o
líder da Renamo admite que o acordo saia no final do ano é sinal de que
entendeu a complexidade do diálogo? Ele não é criança e sabe que não é de um dia para o outro
que se resolve. Toda a gente concorda com a questão da descentralização. Não há
ninguém da Frelimo que nega a descentralização, só que discordam de como fazer
e que nome atribuir. Se chamares federalismo, a Frelimo fica em pânico,
alegando que nos vai dividir. Há Estados centralizados que acabaram em caos e
há tantos outros federais que não acabaram em caos. EUA e Brasil são exemplos
de estados federados, enfrentam crises sucessivas que não degeneram em guerra
civil. Temos estados centralizados como Moçambique que há mais de 40 anos vivem
de guerras. Não é por causa da descentralização, é porque não existe mecanismo
apropriado que ajude a inclusão.
À
semelhança de Brazão Mazula e Carlos Machile defende que Moçambique seja um
Estado Federado?
Não. Eu defendo um
Estado que cria mecanismo que permitem a inclusão dos outros e nada de
exclusão. Pode-se atribuir o nome que quiserem desde que mantenha o princípio.
A Nigéria é um Estado Federado, mas ainda não acabou com o conflito. Pode criar
autonomia numa região, mas se os recursos estiverem na mão de um grupo a nível
central vai resolver problemas de assimetrias? Vai resolver problemas de
exclusão? O problema neste país não é o nome das coisas, é o mecanismo e a
cultura que permite a exclusão de uns e a vitória dos outros. O enriquecimento dos
mesmos grupos e o empobrecimento dos outros. O nosso problema tem que ver com a
atitude, a cultura política de como vês o adversário, como é que trazes o teu
adversário para fazer parte do mesmo jogo consigo. O projecto Moçambique
Capitais, que detinha o Banco Moza, tinha de inspirar os nossos políticos,
porque estão lá representados indivíduos da toda a esfera da sociedade (Renamo,
Frelimo, MDM, empresários, sociedade civil entre outros) é isso que defendo
quando falo de inclusão.
Dos
protagonistas do diálogo quem tem uma proposta que se aproxima a essa? Desta vez, o diálogo
decorre fora dos holofotes dos media e é tão restrito que nem a Renamo nem o
governo apresentam as propostas. Soubemos que o MDM submeteu uma proposta sobre
descentralização na AR, mas não é pública. O MDM ainda não apresentou ao povo o
que pretende com a descentralização, do que acompanho nas pequenas entrevistas
não explica como devem ser executadas as coisas. Não é só dizer que o
governador deve ser eleito, há que falar da política de compensação, porque
haverá províncias com maior capacidade de arrecadação de recursos e outras com
menor capacidade. Então como será feita a compensação financeira nessas
províncias, qual será a relação entre o governo central e provincial; governo provincial
e os municípios, quais as representações do Estado a nível do município e da
província que tipo de mecanismos serão implementados. Se esta reflexão não for
feita de forma profunda vamos acabar com conflito de hoje para criar outros no
futuro. Por mais que a Renamo queira que seja rápido tem de ser gradual, com um
sistema de monitoria e implementação de políticas futuras. O que é feito pelos
partidos políticos, apesar de não ser especialista nessa área, acho que devem
ser análises muito profundas, que possam ajudar a responder as minhas dúvidas.
Na área de descentraliza- ção, há que responder às questões de fundo, porque se
está alterar um sistema político. Este país é enorme para ser gerido a partir
de Maputo.
Acredita
num acordo até ao final deste ano? Sim. Mas vai ser uma “trégua”,
porque as condições que levaram o país à guerra ainda existem hoje e vão ser
postas em prática em 2019, depois das eleições. Não temos instituições
credíveis. A Comissão Nacional de Eleições (CNE) não é credível, as investigações
do afrobarómetro mostram a tendência de declínio dos índices de confiança da
população pela CNE. O Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE) e
o Ministério do Interior não são credíveis, os níveis de confiança são baixos.
Se hoje temos alguém do SISE a concorrer para ser director duma CNE provincial
já mostra o que o processo nos vai dar. Esta é uma trégua, pode não ter
característica de uma violência armada, mas é uma trégua.
Para dizer
que estamos longe de alcançar a paz efectiva? A paz efectiva deverá ser construída
por todos nós. Não é responsabilidade de Nyusi, Dhlakama e MDM apenas, é de
toda a sociedade moçambicana. Acredito que a Renamo vai passar por uma fase de
transformação e chegará o momento em que existirão condições para que continue
a participar no jogo democrático armada. A Renamo é um caso de estudo por ser
único partido a nível da região que participa no jogo democrático armado. Mas,
alguns dizem que o governo força a Renamo a armar-se, ou seja, ela reflecte o
tipo de governo que temos.(X)
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