Horas antes de lançar “a Velha
Casa de Madeira e Zinco”, esta quarta-feira, o escritor Luís Bernardo Honwana
concedia uma entrevista exclusiva. Porque o autor do célebre “Nós Matamos o Cão
Tinhoso” sempre se recusou a dar entrevistas à imprensa, fizemos do lançamento
do seu segundo livro o pretexto para trazê-lo ao debate sobre os temas actuais
da vida política nacional. Mas foi antes de esgotarmos as perguntas quando o
antigo jornalista se insurgiu para vincar que não aceitou a entrevista ao nosso
Jornal para falar de política, porque não é político nem entra no jogo
político. Contudo, o antigo director de gabinete do presidente Samora Machel e
ministro da Cultura, já tinha deixado ficar alguns recados. Já tinha dito, por
exemplo, que o actual modelo de desenvolvimento do país não funciona porque, ao
invés de um desenvolvimento harmonioso, cria exclusão, desigualdades e pobreza
absoluta. “Há um sistema que faz com que as oportunidades apenas sejam
acessíveis a uma parte da população. Ora, isso não é justo” afirmara Luís
Bernardo Honwana, tendo sublinhado que é obrigação do Estado, mesmo quando de
orientação capitalista como o nosso, estender as oportunidades a todos. O
actual director executivo da Fundação para a Conservação da Biodiversidade
(BIOFUND) não tem a mínima dúvida de que uma das motivações da recorrente
erupção de violência no país tem que ver, justamente, com o que chama de
distribuição incorrecta e inaceitável de oportunidades e de bens. Numa altura
em que decorrem negociações para o fim do conflito, Honwana, preso em 1964,
pela tenebrosa PIDE sob acusação de envolvimento na luta de libertação
nacional, avisa que, qualquer processo sério de construção da paz, se ignorar
esses factores (como a distribuição da riqueza), a guerra irá reiniciar a
qualquer momento. Ainda sobre a tensão político-militar, diz que não nos
podemos dar ao luxo de continuar num processo de destruição e adiamento daquilo
que as pessoas merecem. Siga a entrevista baseada, fundamentalmente, no texto
que faz o pano de fundo da “Velha Casa de Madeira e Zinco”, obra cujas
incidências traremos em próximas edições.
Ao
invés de ficção, como foi no “Nós Matamos o Cão Tinhoso”, na “Velha Casa de Madeira
e Zinco” apresenta textos de análises e reflexões. O que lhe motivou a escrever
sobre o que decidiu apelidar como sociedade de madeira e zinco?
Porque se trata duma dimensão
não reconhecida do processo moçambicano: aquela parte da sociedade que vivia,
não na cidade, mas nas proximidades dela, ou seja, na periferia. De facto, o
paradigma de cidade colonial que foi Lourenço Marques definiu dois tipos de
urbanização: a urbanização sob a égide colonial ou a urbanização oficial e a
outra, ao lado da primeira, e que teve características próprias, cuja
historicidade e papel não foram, suficientemente, reconhecidos.
Daí voltar-me
para esta sociedade de madeira e zinco, de que me reivindico produto, para fazer
o reconhecimento porque, afinal de contas, o processo moçambicano passa,
essencialmente, pela casa de madeira e zinco. Na verdade, todas as ideias à
volta do nacionalismo, a frente cultural, tudo isso tem na madeira e zinco o
seu paradigma e ambiente de eleição. Falo de reconhecimento porque não houve este
reconhecimento ou porque há uma atitude deliberada de negação deste facto que é
mais do que evidente. O facto de esta realidade ter sido negada cria alguma
diminuição daquilo que poderia ser a compreensão do nosso processo. Por
exemplo, (Eduardo) Mondlane tem as suas raízes, como todos nós, no campo, mas
onde ele adquire a consciência da opressão, onde descobre a possibilidade de,
em conjunto com os seus contemporâneos, poder ser parte desta marcha que,
finalmente, conduziu, é nos subúrbios da grande cidade. E passa-se o mesmo
processo com as figuras relevantes do nosso processo.
Naturalmente que há
excepções, mas o grosso das grandes figuras do nosso processo político, da
nossa história recente, tem a ver, justamente, com os subúrbios da grande
cidade.
E
quem nega esse reconhecimento?
É estranho que eu diga, mas
somos nós próprios, a sociedade moçambicana, o processo moçambicano, que não
estamos preparados para aceitar isso.
Do
livro fica uma ideia de que, em Moçambique, há uma tendência de se tratar a cultura
como algo não sério. É a cultura que não é séria ou é o país que não é sério
para com a cultura?
A questão é não aprofundarmos
as coisas, suficientemente, porque o nosso processo político é, eminentemente,
cultural.
A
dado passo refere no livro que estamos longe do que no início da independência
se imaginava que viria a ser a capital de Moçambique. Que Maputo se imaginava à
hora da independência?
Era uma cidade de cimento para
onde as pessoas se transfeririam e a periferia desapareceria porque era uma
realidade não desejável. Mas a periferia persistiu porque não cabemos na cidade
de cimento. Mas o facto de a cidade de cimento ter passado a ser ocupada pelas
pessoas que viviam na cidade de caniço não mudou a relação entre estas duas
cidades e a incapacidade de tratarmo-la bem levou a uma degrada- ção da cidade
de cimento e, neste momento, não há grande diferen- ça entre uma e outra em
termos de manutenção. Mas o facto de as duas cidades terem os mesmos problemas,
como a insalubridade, não nos deve alegrar.
Não faz sentido, embora compreenda as razões
que fazem com que a situação seja esta que estamos a viver. Efectivamente, não
houve ainda grande oportunidade de realizarmos as promessas da independência,
mercê de factores externos, mas também mercê da nossa incapacidade de fazermos
o melhor uso das oportunidades que temos à nossa volta, como os recursos do
país e sobretudo os recursos humanos que o país tem. Não foi possível
realizarmos isto. Claro que houve a situação de guerra, mas 42 anos são o
suficiente para que todos os factores negativos pudessem ter um peso menor do
que efectivamente tem no nosso processo. Poderíamos ter feito muito mais do que
aquilo que foi feito, apesar das enormes dificuldades. De facto, as
dificuldades foram tremendas, mas agora já não são as dificuldades que justifi-
cam a situação em que nós estamos. Já é a nossa incapacidade.
E
vê algum esforço no sentido de a cidade se reconciliar com a sua própria
história?
Não vejo, é por isso que apelo
para que se faça esforço nesse sentido.
No
livro fala de ruralização de Maputo. O que é?
O espaço urbano de Maputo está
ganhando características rurais. Portanto, há um processo de ruralização. A
utilização do espaço, o relacionamento entre as pessoas, não são
características urbanas, mas sim rurais. Por exemplo, questões como a higiene,
o funcionamento das pessoas, não é isto que estamos a ver na cidade. Mesmo no
campo não se vê ninguém a urinar na rua em frente das pessoas. As autoridades
falam de falta de recursos financeiros para uma intervenção urbana de raiz,
como a integração das duas partes, como defende.
Talvez haja, mas nós vemos
recursos financeiros utilizados para construções e outros projectos urbanos que
nos fazem pôr em causa se há, efectivamente, falta de recursos financeiros ou
se há falta de vontade política ou então a identi- ficação do problema nesses
termos como se descreve no texto.
Escreve,
na obra, que é necessário rever o próprio modelo de desenvolvimento do país,
porque as desigualdades e a exclusão, pela dimensão que atingem, só podem ser
consideradas como sendo de natureza sistémica. Acha que o actual modelo de
desenvolvimento do país está esgotado?
Não digo que esteja esgotado,
digo que é insuficiente, tem lacunas e é mau. Temos de encontrar outro modelo
que não produza as desigualdades, que não produza a miséria. Um modelo que seja
capaz de criar um desenvolvimento mais harmónico. A pobreza é produto deste
modelo. A pobreza é produzida por este modelo de desenvolvimento. E a pobreza
extrema, as desigualdades extremas, são inerentes a este modelo. Portanto, este
modelo não é o que nos convém, não é o que deveríamos continuar a utilizar, se
queremos um desenvolvimento mais harmónico. É isso que estou dizendo. Portanto,
é sistémico no sentido de que não é uma coisa que aconteça por acaso. Não é
acidental, faz parte e é resultado da maneira como este modelo funciona.
Quando
fala de desigualdades, exclusão e pobreza extrema resultantes deste modelo,
sobressalta a ideia de haver, neste país, pessoas ricas que ficam cada vez mais
ricas e pessoas pobres que se tornam cada vez mais pobres. Ou não é por aí? Mas
não é isso que acontece?
Há pessoas ricas, mas não é a
riqueza em si, não se trata de voto de pobreza. Trata-se de encontrar uma
possibilidade de esta riqueza não ter de implicar o sinal contrário, do tipo se
há riqueza extrema tem de haver pobreza extrema. Só que não engendramos um
processo de previdência social capaz de fazer uma distribuição melhor da
riqueza que se produz.
Aquilo que estamos a discutir
são as oportunidades. O acesso a essas oportunidades não é equitativo. Há um
sistema que faz com que as oportunidades apenas sejam acessíveis a uma parte da
população. Ora, isso não é justo, isto não é uma sociedade justa. É necessário
que existam oportunidades para todos. Os Estados, normalmente, assumem como uma
das suas obrigações, a extensão das oportunidades ao maior número possível de
cidadãos, através de várias formas. Mesmo quando se trata de Estados de
orientação capitalista como o nosso, onde as pessoas e as empresas perseguem o
lucro, o Estado tem a obrigação de encontrar formas, como através de taxas e de
outros processos, para conduzir uma parte da riqueza que se produz para
constituir oportunidade para outras partes não privilegiadas da sociedade.
Está
a dizer que vivemos num Estado injusto?
É injusto por causa disso. O
Estado não está sendo capaz de estender estas oportunidades ao maior número de
cidadãos. Antes pelo contrário são confinadas a uma minoria cada vez mais
confinada.
Que
minoria é essa?
Minoria é uma verificação
estatística. Querem que identifique isso em termos de quê?
Estatuto
social, por exemplo? (Risos…)
Não vejo a coisa tanto em
termos de estatuto social. No fundo estamos a falar em gente que, se recuarmos
há 20 ou 30 anos, era a tal gente dos subúrbios, gente destituída, etc. Então,
com a criação do Estado moçambicano, eventualmente, uma parte destas pessoas
teve acesso às vias de exercício de actividades que são rendosas.
Porquê
entende que a incidência desse modelo de desenvolvimento na tensão
político-militar não pode ser ignorada?
Porque uma das motivações
desta erupção recorrente de violência no nosso país tem que ver com
desigualdades, tem a ver com a distribuição incorrecta e inaceitável de
oportunidades e de bens. Por um lado, grupos totalmente destituídos e, por
outro, grupos que são protegidos e que têm acesso a vias de riqueza.
No livro, junta-se à voz
daqueles que todos os dias gritam pela paz, dado o que chama de total sem -razão da guerra e a sua inaceitabilidade como forma de dirimir pendências
políticas no processo de funcionamento de um país. Acha que estamos a viver uma
“guerra civil intermitente”, para usar a sua expressão, que era evitável?
A guerra que nós estamos a
viver não foi inventada por moçambicanos, mas as razões que fazem com que esta
guerra não acabe têm a ver com a forma como os moçambicanos vivem. Há factores
de que aqueles que se opõem ao partido no poder se aproveitem. Esses factores
existem e são objectivos e, então, no processo de construção da paz, não
podemos ignorá-los. Qualquer processo sério de construção da paz, se ignora
esses factores, a guerra pode reiniciar a qualquer momento porque aquilo que a
justifica – embora eu defenda que nada justifica que se mate uma pessoa para
demonstrar zanga – está intacto. É necessário observar as razões objectivas em
que ancora este sentimento profundo de injustiça que leva a que certas pessoas
achem dever recorrer a armas para fazer valer os seus direitos. Mas por outro
lado, estamos a viver, pelo menos em termos informais, numa democracia e, como
tal, há instrumentos nas mãos das pessoas e das forças políticas para fazerem
valer os seus direitos.
Mas esses instrumentos não estão sendo,
suficientemente, explorados e recorrer-se à força das armas não é justificável
e não faz sentido. Por isso, esta guerra é imoral, não haja ambiguidade em
relação a isso.
Mais
adiante faz alusão, na “Velha Casa de Madeira e Zinco”, ao facto de serem
demasiados os recursos que o conflito absorve em termos financeiros e em termos
de disponibilidade dos diferentes órgãos do Estado para dar a devida atenção
aos problemas do desenvolvimento. Assinala também que é incomportável o custo
em vidas humanas, destruição de bens, perda de oportunidades de investimento e
perturbação no funcionamento de todos os sectores de actividade. Porquê então
nos damos ao luxo de demorar num que, como diz na obra, é um poderoso obstáculo
ao desenvolvimento do país?
É justamente isso que eu digo.
Os recursos que isto custa são demasiados e o país não se pode dar a este luxo.
Nós não nos podemos dar ao luxo de continuar num processo de destruição, num
processo de adiamento daquilo que as pessoas merecem e exigem. Não, não podemos
continuar nisso. Guerra, não. A quem interessa a guerra a fim ao cabo? (SAVANA)
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