quinta-feira, julho 06, 2017

Factores da paz não podem ser ignorados!

Resultado de imagem para luís bernardo honwanaHoras antes de lançar “a Velha Casa de Madeira e Zinco”, esta quarta-feira, o escritor Luís Bernardo Honwana concedia uma entrevista exclusiva. Porque o autor do célebre “Nós Matamos o Cão Tinhoso” sempre se recusou a dar entrevistas à imprensa, fizemos do lançamento do seu segundo livro o pretexto para trazê-lo ao debate sobre os temas actuais da vida política nacional. Mas foi antes de esgotarmos as perguntas quando o antigo jornalista se insurgiu para vincar que não aceitou a entrevista ao nosso Jornal para falar de política, porque não é político nem entra no jogo político. Contudo, o antigo director de gabinete do presidente Samora Machel e ministro da Cultura, já tinha deixado ficar alguns recados. Já tinha dito, por exemplo, que o actual modelo de desenvolvimento do país não funciona porque, ao invés de um desenvolvimento harmonioso, cria exclusão, desigualdades e pobreza absoluta. “Há um sistema que faz com que as oportunidades apenas sejam acessíveis a uma parte da população. Ora, isso não é justo” afirmara Luís Bernardo Honwana, tendo sublinhado que é obrigação do Estado, mesmo quando de orientação capitalista como o nosso, estender as oportunidades a todos. O actual director executivo da Fundação para a Conservação da Biodiversidade (BIOFUND) não tem a mínima dúvida de que uma das motivações da recorrente erupção de violência no país tem que ver, justamente, com o que chama de distribuição incorrecta e inaceitável de oportunidades e de bens. Numa altura em que decorrem negociações para o fim do conflito, Honwana, preso em 1964, pela tenebrosa PIDE sob acusação de envolvimento na luta de libertação nacional, avisa que, qualquer processo sério de construção da paz, se ignorar esses factores (como a distribuição da riqueza), a guerra irá reiniciar a qualquer momento. Ainda sobre a tensão político-militar, diz que não nos podemos dar ao luxo de continuar num processo de destruição e adiamento daquilo que as pessoas merecem. Siga a entrevista baseada, fundamentalmente, no texto que faz o pano de fundo da “Velha Casa de Madeira e Zinco”, obra cujas incidências traremos em próximas edições.
Ao invés de ficção, como foi no “Nós Matamos o Cão Tinhoso”, na “Velha Casa de Madeira e Zinco” apresenta textos de análises e reflexões. O que lhe motivou a escrever sobre o que decidiu apelidar como sociedade de madeira e zinco?
Porque se trata duma dimensão não reconhecida do processo moçambicano: aquela parte da sociedade que vivia, não na cidade, mas nas proximidades dela, ou seja, na periferia. De facto, o paradigma de cidade colonial que foi Lourenço Marques definiu dois tipos de urbanização: a urbanização sob a égide colonial ou a urbanização oficial e a outra, ao lado da primeira, e que teve características próprias, cuja historicidade e papel não foram, suficientemente, reconhecidos. 
Imagem relacionadaDaí voltar-me para esta sociedade de madeira e zinco, de que me reivindico produto, para fazer o reconhecimento porque, afinal de contas, o processo moçambicano passa, essencialmente, pela casa de madeira e zinco. Na verdade, todas as ideias à volta do nacionalismo, a frente cultural, tudo isso tem na madeira e zinco o seu paradigma e ambiente de eleição. Falo de reconhecimento porque não houve este reconhecimento ou porque há uma atitude deliberada de negação deste facto que é mais do que evidente. O facto de esta realidade ter sido negada cria alguma diminuição daquilo que poderia ser a compreensão do nosso processo. Por exemplo, (Eduardo) Mondlane tem as suas raízes, como todos nós, no campo, mas onde ele adquire a consciência da opressão, onde descobre a possibilidade de, em conjunto com os seus contemporâneos, poder ser parte desta marcha que, finalmente, conduziu, é nos subúrbios da grande cidade. E passa-se o mesmo processo com as figuras relevantes do nosso processo. 
Imagem relacionadaNaturalmente que há excepções, mas o grosso das grandes figuras do nosso processo político, da nossa história recente, tem a ver, justamente, com os subúrbios da grande cidade.
E quem nega esse reconhecimento?
É estranho que eu diga, mas somos nós próprios, a sociedade moçambicana, o processo moçambicano, que não estamos preparados para aceitar isso.
Do livro fica uma ideia de que, em Moçambique, há uma tendência de se tratar a cultura como algo não sério. É a cultura que não é séria ou é o país que não é sério para com a cultura?
A questão é não aprofundarmos as coisas, suficientemente, porque o nosso processo político é, eminentemente, cultural.
A dado passo refere no livro que estamos longe do que no início da independência se imaginava que viria a ser a capital de Moçambique. Que Maputo se imaginava à hora da independência?
Era uma cidade de cimento para onde as pessoas se transfeririam e a periferia desapareceria porque era uma realidade não desejável. Mas a periferia persistiu porque não cabemos na cidade de cimento. Mas o facto de a cidade de cimento ter passado a ser ocupada pelas pessoas que viviam na cidade de caniço não mudou a relação entre estas duas cidades e a incapacidade de tratarmo-la bem levou a uma degrada- ção da cidade de cimento e, neste momento, não há grande diferen- ça entre uma e outra em termos de manutenção. Mas o facto de as duas cidades terem os mesmos problemas, como a insalubridade, não nos deve alegrar.
Resultado de imagem para luís bernardo honwanaFaz sentido que, 42 anos depois da independência, continuemos assim?
 Não faz sentido, embora compreenda as razões que fazem com que a situação seja esta que estamos a viver. Efectivamente, não houve ainda grande oportunidade de realizarmos as promessas da independência, mercê de factores externos, mas também mercê da nossa incapacidade de fazermos o melhor uso das oportunidades que temos à nossa volta, como os recursos do país e sobretudo os recursos humanos que o país tem. Não foi possível realizarmos isto. Claro que houve a situação de guerra, mas 42 anos são o suficiente para que todos os factores negativos pudessem ter um peso menor do que efectivamente tem no nosso processo. Poderíamos ter feito muito mais do que aquilo que foi feito, apesar das enormes dificuldades. De facto, as dificuldades foram tremendas, mas agora já não são as dificuldades que justifi- cam a situação em que nós estamos. Já é a nossa incapacidade.
E vê algum esforço no sentido de a cidade se reconciliar com a sua própria história?
Não vejo, é por isso que apelo para que se faça esforço nesse sentido.
No livro fala de ruralização de Maputo. O que é?
O espaço urbano de Maputo está ganhando características rurais. Portanto, há um processo de ruralização. A utilização do espaço, o relacionamento entre as pessoas, não são características urbanas, mas sim rurais. Por exemplo, questões como a higiene, o funcionamento das pessoas, não é isto que estamos a ver na cidade. Mesmo no campo não se vê ninguém a urinar na rua em frente das pessoas. As autoridades falam de falta de recursos financeiros para uma intervenção urbana de raiz, como a integração das duas partes, como defende.
Talvez haja, mas nós vemos recursos financeiros utilizados para construções e outros projectos urbanos que nos fazem pôr em causa se há, efectivamente, falta de recursos financeiros ou se há falta de vontade política ou então a identi- ficação do problema nesses termos como se descreve no texto.
Escreve, na obra, que é necessário rever o próprio modelo de desenvolvimento do país, porque as desigualdades e a exclusão, pela dimensão que atingem, só podem ser consideradas como sendo de natureza sistémica. Acha que o actual modelo de desenvolvimento do país está esgotado?
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Não digo que esteja esgotado, digo que é insuficiente, tem lacunas e é mau. Temos de encontrar outro modelo que não produza as desigualdades, que não produza a miséria. Um modelo que seja capaz de criar um desenvolvimento mais harmónico. A pobreza é produto deste modelo. A pobreza é produzida por este modelo de desenvolvimento. E a pobreza extrema, as desigualdades extremas, são inerentes a este modelo. Portanto, este modelo não é o que nos convém, não é o que deveríamos continuar a utilizar, se queremos um desenvolvimento mais harmónico. É isso que estou dizendo. Portanto, é sistémico no sentido de que não é uma coisa que aconteça por acaso. Não é acidental, faz parte e é resultado da maneira como este modelo funciona.
Quando fala de desigualdades, exclusão e pobreza extrema resultantes deste modelo, sobressalta a ideia de haver, neste país, pessoas ricas que ficam cada vez mais ricas e pessoas pobres que se tornam cada vez mais pobres. Ou não é por aí? Mas não é isso que acontece?
Há pessoas ricas, mas não é a riqueza em si, não se trata de voto de pobreza. Trata-se de encontrar uma possibilidade de esta riqueza não ter de implicar o sinal contrário, do tipo se há riqueza extrema tem de haver pobreza extrema. Só que não engendramos um processo de previdência social capaz de fazer uma distribuição melhor da riqueza que se produz.
Resultado de imagem para a Velha Casa de Madeira e ZincoQuando observa para os perfis, quem são os ricos e quem são os pobres deste país?
Aquilo que estamos a discutir são as oportunidades. O acesso a essas oportunidades não é equitativo. Há um sistema que faz com que as oportunidades apenas sejam acessíveis a uma parte da população. Ora, isso não é justo, isto não é uma sociedade justa. É necessário que existam oportunidades para todos. Os Estados, normalmente, assumem como uma das suas obrigações, a extensão das oportunidades ao maior número possível de cidadãos, através de várias formas. Mesmo quando se trata de Estados de orientação capitalista como o nosso, onde as pessoas e as empresas perseguem o lucro, o Estado tem a obrigação de encontrar formas, como através de taxas e de outros processos, para conduzir uma parte da riqueza que se produz para constituir oportunidade para outras partes não privilegiadas da sociedade.
Está a dizer que vivemos num Estado injusto?
É injusto por causa disso. O Estado não está sendo capaz de estender estas oportunidades ao maior número de cidadãos. Antes pelo contrário são confinadas a uma minoria cada vez mais confinada.
Que minoria é essa?
Minoria é uma verificação estatística. Querem que identifique isso em termos de quê?
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Estatuto social, por exemplo? (Risos…)
Não vejo a coisa tanto em termos de estatuto social. No fundo estamos a falar em gente que, se recuarmos há 20 ou 30 anos, era a tal gente dos subúrbios, gente destituída, etc. Então, com a criação do Estado moçambicano, eventualmente, uma parte destas pessoas teve acesso às vias de exercício de actividades que são rendosas.
Porquê entende que a incidência desse modelo de desenvolvimento na tensão político-militar não pode ser ignorada?
Porque uma das motivações desta erupção recorrente de violência no nosso país tem que ver com desigualdades, tem a ver com a distribuição incorrecta e inaceitável de oportunidades e de bens. Por um lado, grupos totalmente destituídos e, por outro, grupos que são protegidos e que têm acesso a vias de riqueza.
No livro, junta-se à voz daqueles que todos os dias gritam pela paz, dado o que chama de total sem -razão da guerra e a sua inaceitabilidade como forma de dirimir pendências políticas no processo de funcionamento de um país. Acha que estamos a viver uma “guerra civil intermitente”, para usar a sua expressão, que era evitável?
A guerra que nós estamos a viver não foi inventada por moçambicanos, mas as razões que fazem com que esta guerra não acabe têm a ver com a forma como os moçambicanos vivem. Há factores de que aqueles que se opõem ao partido no poder se aproveitem. Esses factores existem e são objectivos e, então, no processo de construção da paz, não podemos ignorá-los. Qualquer processo sério de construção da paz, se ignora esses factores, a guerra pode reiniciar a qualquer momento porque aquilo que a justifica – embora eu defenda que nada justifica que se mate uma pessoa para demonstrar zanga – está intacto. É necessário observar as razões objectivas em que ancora este sentimento profundo de injustiça que leva a que certas pessoas achem dever recorrer a armas para fazer valer os seus direitos. Mas por outro lado, estamos a viver, pelo menos em termos informais, numa democracia e, como tal, há instrumentos nas mãos das pessoas e das forças políticas para fazerem valer os seus direitos. 
Mas esses instrumentos não estão sendo, suficientemente, explorados e recorrer-se à força das armas não é justificável e não faz sentido. Por isso, esta guerra é imoral, não haja ambiguidade em relação a isso.
Resultado de imagem para a Velha Casa de Madeira e ZincoMais adiante faz alusão, na “Velha Casa de Madeira e Zinco”, ao facto de serem demasiados os recursos que o conflito absorve em termos financeiros e em termos de disponibilidade dos diferentes órgãos do Estado para dar a devida atenção aos problemas do desenvolvimento. Assinala também que é incomportável o custo em vidas humanas, destruição de bens, perda de oportunidades de investimento e perturbação no funcionamento de todos os sectores de actividade. Porquê então nos damos ao luxo de demorar num que, como diz na obra, é um poderoso obstáculo ao desenvolvimento do país?

É justamente isso que eu digo. Os recursos que isto custa são demasiados e o país não se pode dar a este luxo. Nós não nos podemos dar ao luxo de continuar num processo de destruição, num processo de adiamento daquilo que as pessoas merecem e exigem. Não, não podemos continuar nisso. Guerra, não. A quem interessa a guerra a fim ao cabo? (SAVANA)

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