O governo precisa de abordar o problema da
insurgência em Cabo Delgado como um problema político, mas também como um
problema intrinsicamente institucional que não se resolve com simplificações absurdas,
mas sim com inteligência num duplo sentido: inteligência como a condição de não
ter medo de pensar e inteligência no sentido de saber lidar com informação. O
problema político continua a escapar à nossa liderança, infelizmente. O
silêncio do chefe de Estado em relação ao ataque de segunda-feira é prova
disso. Ele essencialmente decidiu que as pessoas que o elegeram e por cuja
segurança ele jurou exercer o poder não merecem a sua atenção num momento como
este. É grave. E o silêncio cúmplice dos que o rodeiam só piora as
coisas.
As lucubrações do físico nuclear assim como as do
Gustavo Mavie, que diz, por um lado, que não sei do que falo porque não vivo no
País (mas, surpreendentemente, algumas pessoas que vivem no País concordam com
a leitura que faço) e, por outro, que é normal perder uma batalha (e vai dizer
isto até ao dia em que entrarem na Ponta Vermelha...) são sintomáticas da
ausência de inteligência no primeiro sentido. É assim a nova Frelimo. Abdicou
do pensamento crítico e investe o seu tempo ou em teorias de conspiração ou na
discussão fútil com quem aponta problemas. Ao invés de ela fazer uma
introspecção perde o seu tempo a tentar mostrar que o crítico se enganou como
se isso fosse resolver qualquer problema que seja. Hoje, diz-se por aí, os
insurgentes estão em Quissanga, “normal” como diz o porta-voz inoficial, em
mais uma demonstração de que a população de Cabo Delgado parece ter sido
abandonada à sua sorte.
Por causa dessa obsessão com futilidades, a Nova
Frelimo não tem tempo para empregar a inteligência que o País precisa de
aplicar para lidar com os seus problemas. Curiosamente, as teorias de
conspiração são fomentadas pela natureza formidável dos problemas. O problema
neste momento não são os veteranos, nem sou eu. O problema é como garantir que
as FDS façam o seu trabalho. Ora, como qualquer outra instituição complexa,
elas são vulneráveis ao comportamento desviante dos seus membros. Uma situação
de conflito armado cria oportunidades que são aproveitadas pelas pessoas sem escrúpulos.
Fiquei boquiaberto quando nas minhas leituras de memórias de membros do
exército e serviços de inteligência da África do Sul fui descobrir altos
esquemas de corrupção na base dos quais muitas patentes sul africanas brancas
enriqueceram.
Não entendo nada de questões militares, por isso não
vou enveredar por esse caminho. Contudo, uma liderança séria e comprometida com
o País já teria reagido de forma visível. Teria indicado pessoas de qualidade
que o País tem – sim, refiro-me a muita gente com experiência de governaçao ou
gestão de empreendimentos, juízes e outros – para estudarem a estrutura das
nossas FDS e identificar maneiras de suprirem os seus problemas logísticos e de
disciplina. Pode ser “normal” perder uma batalha, mas não é “normal” que isso
aconteça sem reacção das FDS muito menos que não rolem cabeças depois disso
acontecer. Não sei se o Presidente dá ouvidos a estes assessores inoficiais. Se
o faz, é grave. Se não o faz devia se demarcar claramente deles porque de cada
vez que abrem a boca revelam a perplexidade das pessoas que pensam defender.
Há notícias segundo as quais os insurgentes teriam
sido aplaudidos pela população. Isto não precisa necessariamente de significar
apoio popular. A população está indefesa e vulnerável. Ela sempre vai fazer o
mais racional, nomeadamente aliar-se ao mais forte, portanto, aquele que faz o
“normal”. Só que quando é assim há algo profundamente importante que se perde.
As pessoas perdem a sua relação emocional com o País e reagem instintivamente
como, aliás, muitas o fizeram durante a guerra terrorista da Renamo. A aparente
indiferença do governo perante o sofrimento das pessoas está a contribuir para
a sua alienação. A impunidade dos membros das FDS que não tratam as pessoas com
o devido respeito ressalta para o próprio governo, pois é ele que tem que
mostrar às pessoas que a sua dignidade é sagrada e inviolável.
Ter boas FDS, no nosso contexto, não significa ter
uma instituição sem gente corrupta ou indisciplinada. Significa ter um
comandante em chefe que responde com prontidão a essas coisas e procura meios
de impedir que esses problemas comprometam os objectivos gerais das FDS de
garantir a segurança no País. O Presidente não foi obrigado a ocupar o posto
que ocupa. Fê-lo voluntariamente porque achou que reunia condições para
enfrentar os desafios que o cargo comporta. Isso é sinal de coragem que falta a
muitos de nós (a mim, por exemplo, embora no meu caso seja a consciência de que
esse cargo está muito aquém das minhas capacidades). Nesse sentido, até o
admiro.
Mas ele tem que reconhecer que Cabo Delgado é um
teste não só à sua coragem, mas também à sua competência. A melhor demonstração
de coragem que ele pode fazer é não dar ouvidos a gente sem noção. A segunda é
dirigir-se à nação e dizer o que está a acontecer, o que ele está a fazer para
evitar o pior e o que nós, todos nós, podemos fazer para o ajudar. A terceira é
considerar seriamente a hipótese de declarar um estado de emergência em Cabo
Delgado e mobilizar as pessoas certas para lá. A quarta é apetrechar melhor os
nossos serviços de inteligência com académicos – não veteranos da Luta – para
que esses serviços se ocupem mesmo de coisas ligadas à “inteligência” e deixem
de procurar falso inimigos nas redes sociais, sociedade civil e nos meios de
comunicação de massas.
Liderança é coragem e inteligência. Todos aqueles
que nos rebentaram os tímpanos com gritos de “confio em ti!” devem fazer um
exame de consciência e se indagarem se dá mesmo para confiar perante o que se
passa em Cabo Delgado. Parte do problema da liderança são esses que apoiam cega
e acriticamente. Apoiar alguém – e eu apoio Nyusi e a Frelimo – não é apenas
adular e proteger da crítica. Nem com Guebuza fiz isso. É exigir que ele
continue a merecer a nossa confiança. E neste momento, infelizmente, ele está a
minar essa confiança. Ele e a Comissão Política.
(Por Elísio Macamo in facebook)
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