Há uma nova
actualização a fazer no mapa da evolução humana. A sul do rio Zambeze, no Norte
do Botswana, deve ser colocado um sinal que, a partir de agora, indica a
“pátria” ancestral de todos os humanos que (sobre)vivem no planeta. A indicação
geográfica do lugar preciso de origem dos humanos anatomicamente modernos (Homo
sapiens sapiens) é uma das principais conclusões de um estudo publicado esta segunda-feira
na revista Nature. O estudo conjuga e sobrepõe dados da genética,
arqueologia, clima e muitas outras disciplinas desvendando onde, quando e como
começaram as primeiras migrações.
“Já sabíamos há
muito tempo que os humanos modernos vieram de África. Mas não se sabia de onde
exactamente”, começa por referir Vanessa M. Hayes, geneticista do Instituto de
Investigação Médica Garvan de Sydney, na Austrália, e de várias instituições
académicas na África do Sul, logo no início da conferência de imprensa
organizada pela Nature sobre o estudo. A seguir, pouco a pouco, a
cientista e outros dois autores da investigação vão desvendando a sua incrível
versão da história das origens dos humanos modernos. O comunicado de imprensa
do instituto anuncia que estamos perante uma janela para os primeiros 100 mil
anos de história dos humanos modernos, que se serviu do ADN como cápsula do
tempo.
Esta versão tem
dados mais precisos do que qualquer outra contada até agora, apontado para um
lugar específico e sugerindo datas e rotas das primeiras migrações dos humanos
modernos. Tudo a partir da análise daquela que é considerada como a mais antiga
linhagem materna, pertencente ao haplogrupo de ADN mitocondrial L0. Os
investigadores usaram dados de várias disciplinas, cruzando a distribuição
geográfica de mais de mil mitogenomas (genomas mitocondriais, ou seja, o ADN de
origem materna) de africanos vivos do Sul de África.
“Este projecto é
sobre as pessoas que andam por aí nos dias de hoje”, sublinhou a investigadora,
adiantando que muitas das descobertas de fósseis que nos remetem para outros
locais e outros tempos dizem respeito a espécies humanas que acabaram por
desaparecer da face da terra, sem deixar marcas preservadas no nosso ADN. Aqui,
apresenta-se a maior amostra da mais ancestral linhagem materna (do haplogrupo
L0, com 198 novos mitogenomas e um total de 1217 mitogenomas) de africanos do
Sul de África contemporâneos. “O ADN mitocondrial age como uma cápsula do tempo
das nossas mães ancestrais, acumulando mudanças lentamente ao longo de
gerações. A comparação do código completo do ADN, ou mitogenoma, de diferentes
indivíduos fornece informações sobre as relações entre eles”, explica Vanessa
Hayes, que liderou este estudo.
A estas informações
genéticas juntaram-se outras, entre as quais modelos climáticos que ajudaram a
reconstituir o que se aconteceu naquele lugar há muito tempo, revelando a existência
de um imenso lago onde hoje encontramos um pântano e a abertura de “corredores
verdes” que indicaram o caminho de saída da região aos nossos antepassados. O grande X no mapa
deve então ser colocado a sul da região da bacia do rio Zambeze, que inclui toda
a extensão do norte do Botswana até à Namíbia, a oeste, e ao Zimbabwe, a leste.
Uma espécie de paraíso
Então,
salvaguardando a omissão de alguns detalhes mais técnicos sobre este trabalho,
a história que Vanessa Hayes conta recua há 200 mil anos e a acção passa-se num
enorme lago (quase duas vezes maior do que é hoje o Lago Vitória) no Sul de
África. Mais precisamente na região dos actuais pântanos de Makgadikgadi. O
imenso lago acabou mais tarde por quebrar-se em lagos mais pequenos que foram
evaporando. Hoje sobra uma terra seca com desertos e salinas. Foi aqui que a
geneticista encontrou aquela que defende ser a população de origem dos humanos
modernos. A nossa “terra-natal”.
Segundo o estudo, os
humanos modernos estabeleceram-se nessa região quando era verdejante e
exuberante, à volta do enorme lago. A descrição leva-nos para uma espécie de
paraíso. E ali os caçadores-recolectores permaneceram durante 70 mil anos.
Vanessa Hayes explica que não encontrou nos dados genéticos sinais de
divergências neste período. “O que quer dizer que durante essa altura estes
humanos permaneceram nesta região.”
Mas foi então que o
clima mudou, abrindo corredores verdes à volta que permitiam a aventura das
migrações. E a população começou a dispersar-se, defende Axel Timmermann, do
Centro de Física Climática da Coreia do Sul.
A primeira linhagem
a separar-se, prossegue a geneticista, terá abandonado o local há 130 mil anos
e seguiu na direcção a Nordeste do rio Zambeze. Mais tarde, há 110 mil anos,
outra divergência nos dados genéticos denuncia mais uma migração rumo a
sudoeste. Segundo esta versão da história, foi a partir daqui – a partir destas
migrações por estes primeiros corredores verdes a sair de uma região onde
existiu um imenso lago no norte do Botswana que hoje é um deserto – que começou
a longa e viagem dos humanos modernos para fora de África e, depois, para o
resto do planeta.
Esta é, frisamos, a
história que a linhagem materna mais antiga nos conta sobre os humanos
modernos. Não será, no entanto, “o princípio de tudo”, admite Vanessa Hayes,
que constata que o estudo refere que aqui encontramos a pátria ou terra-natal
(homeland, na expressão em inglês) dos humanos modernos, mas não
necessariamente o “berço”. “Sabemos que aqui estava a população fundadora”,
esclareceu, deixando em aberto a história sobre os indivíduos que ali se
juntaram. Apesar de as migrações da população que ia dispersando pelos
corredores verdes, alguns ficaram. E alguns permaneceram ali até hoje. Vanessa
Hayes conta que as descobertas relatadas no artigo que assina na Nature
não surpreenderam as pessoas que vivem ali agora. Acompanhado o artigo, Vanessa
Hayes aparece numa fotografia com outras pessoas a formar um círculo na terra
seca. A legenda diz que ali vemos a investigadora “a aprender a fazer fogo com
os caçadores Ju’hoansi na terra-natal agora seca do grande Calaári da Namíbia”.
Há dez anos que a geneticista visita e estuda o lugar. “As pessoas que vivem
ali disseram-me que o que queriam deste projecto é que a sua história fosse
contada. A mesma que foram contando de geração em geração. Disseram-me ‘nós
sabemos que sempre aqui estivemos.’”
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