sexta-feira, outubro 26, 2018

Viajando no futuro

As eleições municipais vieram e deram uma ideia do que pode vir a acontecer no próximo ano. A Frelimo parece estar em queda livre. É verdade que ganhou a maior parte dos municípios. Aqui vale, porém, o argumento do analista político João Pereira que usa o critério do investimento feito e o retorno conseguido para rejeitar essa ideia. A Frelimo fez uma campanha de luxo – cheguei a comentar na altura que tinha algo de indecente – e mesmo assim à excepção da Beira, onde teve um bom resultado, não registou nenhum progresso nos municípios onde tradicionalmente tem mau desempenho – Nampula e Quelimane – e onde ganhou contra todas as expectativas arrecadou vitórias sofridas (e contestadas). O senso comum conclui a partir destes factos que o povo está a punir a Frelimo pelo seu mau desempenho e a mostrar que o argumento de ausência de alternativas credíveis já não constitui grande barreira para o povo colocar o seu voto onde está a sua barriga. Embora plausível esta leitura não parece correcta. Só estudos aprofundados podem garantir maior segurança nas conclusões, claro, mas há elementos suficientes para duvidar dela. Um deles é o seguinte: Apesar de tudo, a Frelimo ganhou e esse feito é a todos os títulos extraordinário se tivermos em conta que há várias razões para as pessoas estarem descontentes e, acima de tudo, o tipo de problemas que existem em Moz ultrapassam, por enquanto, qualquer governo. O governo alemão, espanhol ou sueco não teriam necessariamente melhor solução para o que se passa agora no País, pelo menos ao nível económico.

Na minha opinião de leigo, política económica parece lotaria. É verdade que há coisas básicas que precisam de ser feitas, mas duvido muito que para uma economia como a nossa dependente de vários factores e actores faça muito sentido procurar explicar o fraco ou bom desempenho com base na política económica seguida. É certo que o País está em crise económica séria e isso reflecte-se no bolso das pessoas. As “classes médias”, sobretudo, que nos anos aparentemente gordos meteram na cabeça que tinham ganho estabilidade económica por conta do seu esforço individual estão hoje a ser chamadas à realidade e não gostam do que estão a ver. Foram beneficiárias dum Estado disfuncional. Precisam urgentemente dum bôde expiatório e nisso qualquer governo e qualquer razão servem. Frelimo, dívidas ocultas, corrupção, etc. Nunca se interessaram muito pelas condições estruturais dentro das quais o País evoluíu e, por isso, limitaram o seu sentido de cidadania a apenas exigir mais conforto duma economia incapaz de garantir isso por muito tempo e vulnerável a crises. Quando procuraram ser mais políticos abraçaram o discurso da indústria do desenvolvimento e vestiram a identidade de indignados profissionais reduzindo o País aos algoritmos confusos dos slógans dessa indústria, tipo boa governação, corrupção, transparência, etc. Neste sentido, a culpa da Frelimo em minha opinião não está em dirigir mal a economia – a minha impressão, por acaso, é que dum modo geral a equipa governamental, sobretudo o Primeiro Ministro, tem revelado competência em lidar com uma economia vulnerável e pouco saudável. A culpa da Frelimo está em não ter transformado as suas estruturas para estarem à altura dos desafios políticos que a condição do País coloca a todos nós.
Imagem relacionadaO problema da Frelimo é que na sua estrutura e funcionamento é um partido “estalinista”. Este tipo de partido serve para contextos políticos fechados como é o caso da China ou do Vietname. Mas onde o partido estalinista tem que competir com outras forças – como na Rússia, por exemplo, se não se transforma fica refém dos seus próprios vícios, muitos dos quais, diga-se em abono da verdade, são também os vícios duma permanência prolongada no poder. Quando é assim, o partido promove uma cultura complacente virada à gestão ciumenta de glórias passadas, fica extremamente hostil à crítica, vira bazar de interesses internos conflituantes e confunde o seu destino cada vez mais com o destino da nação. Confunde a defesa dos seus interesses com o patriotismo. Nada disso é feito por maldade. São processos estruturalmente determinados e os mecanismos sociais que os tornam possíveis podem ser detalhadamente descritos. E muito disto é feito com sinceridade. Não alinho, portanto, com aquelas correntes de opinião que olham para a desordem como parte duma estratégia global de acumulação.  A Frelimo tem muito orgulho da sua democracia interna, trunfo que usa contra os partidos da oposição. A verdade, porém, é que essa democracia é um travesti. É o resquício estalinista de conformidade com os regulamentos internos cuja celebração ao longo do tempo substituiu o debate interno de ideias. O último congresso foi um exemplo claro disso. O partido celebrou-se a si próprio, ao seu líder – por enquanto sem obra senão uma paz fictícia refém do estado de ânimo dos dirigentes da Renamo – e no fim emergiu com uma “visão” algo embaciada que tinha muito pouco a ver com a realidade do País e com os seus desafios. Quem é que não é pela “Unidade, Paz, Desenvolvimento”? Mas o que significa isso em termos concretos? O que significa “Unidade” num País plural? Que valores são convocados e que tipo de medidas é que a Frelimo quer implementar para promover esses valores e proteger a tal “Unidade”? O que significa “Paz” num País onde o recurso à violência contra o Estado é usado para obter concessões inglórias desse mesmo Estado? O que significa “Desenvolvimento” num País dependente do auxílio externo, mas detentor de grande potencial económico? Até hoje não vi nenhuma destas três coisas postas em prática duma maneira que evidenciasse algum projecto claro e consequente.
O caso mais gritante é o da paz cujo processo foi sempre pontuado por celebrações efusivas alternadas com acusações à falta de sinceridade da Renamo. Não há nada nesse processo que revele uma ideia clara de paz, nem do tipo de País que se quer que Moçambique seja. O governo foi de concessão em concessão sem praticamente receber nada em troca como, aliás, documentam as ameaças de retorno à violência ou abandono do processo por parte da Renamo. É deveras estranho que após um processo conduzido no segredo dos deuses, e celebrado como fruto da confiança, uma das partes não tenha nenhum problema em embaraçar o parceiro com este tipo de ameaças. Fica evidente que uma paz baseada na acomodação dum partido é uma paz pensada com o único intuito de salvaguardar o poder da própria Frelimo, não o bem estar do País. O tempo ainda vai cobrar a insensatez de não se ter alargado o processo a todas as forças vivas da sociedade, o principal trunfo ao dispôr do governo para negociar uma verdadeira paz. As armas calaram-se – respondendo a um “bluff” bem conseguido da Renamo que no fundo sabe que não tem capacidade para manter uma guerra de baixa intensidade por muito tempo – mas a Frelimo continua a não merecer a confiança da Renamo nem dos outros partidos de oposição e de organizações da sociedade civil. Felizmente, existem as reuniões da Comissão Política para saudar tudo isto.
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A maior consequência do tipo de partido que a Frelimo continuou a ser tem sido uma crescente acefalia. Lá onde devia estar um gestor de crise, portanto na direcção do partido, está o produto duma estrutura corrompida pelo seu próprio sucesso. Ascendeu ao poder uma pessoa politicamente inexperiente – mesmo em termos de serviço dentro do partido – que dificilmente disfarça o facto de que as qualidades que ele possui não são, infeliz e aprentemente, suficientes para lidar com os desafios que esse cargo traz consigo. Com um partido tomado de assalto por estruturas cuja principal missão é agora saudar o líder e celebrar os feitos do partido, a Frelimo não tem sabido resistir à sua própria esclerose. É esta incapacidade que cria espaço para a emergência de carreiristas (vulgo “oportunistas”) que funcionam como grupos de choque contra quem, internamente, levanta o bico e contra o fantasma da mão externa, o qual ajuda a explicar desaires eleitorais e dificuldades na comunicação com parceiros internacionais.

Não é de hoje. Começou ou intensificou-se no segundo mandato de Guebuza quando ele, curiosamente, tinha embarcado num interessante e necessário programa de revitalização do partido que durante algum tempo até deu conta do recado. O programa, contudo, ficou refém da estrutura estalinista do partido que não vive do debate aberto e franco de ideias, mas sim da submissão a ordens superiores e à obsessão com a coesão que no dia a dia se traduz em conformidade e hostilidade à imaginação e inovação. Daí também que os quadros não sejam necessariamente escolhidos na base da competência ou da sua capacidade de anunciar e defender uma visão, mas sim na base de compromissos partidários internos. É bonito como imagem a projectar para fora, mas o preço é alto em termos de manter o partido à altura dos acontecimentos.  Este modelo partidário só funciona em condições de pluralismo político quando o partido é sustentado internamente por uma cultura de debate aberto. Mas lá está, crítica e Estalinismo não combinam. Crítica é inovação, transformação e flexibilidade. Estalinismo é obediência, estagnação e complacência. Essa cultura de debate levaria às instâncias superiores do partido, por exemplo, à Comissão Política, pessoas movidas por ideias claras do tipo de País que querem, ideias essas que não se reduzem a slógans cansados como “Unidade, Paz e Desenvolvimento”, mas sim slógans que recuperam valores atentos ao País real, estilo “Enfrentar a crise, defender a dignidade”, algo que me parece resumir muito melhor o momento que o País atravessa.
 
Resultado de imagem para eleições justasA Frelimo pode provar que não é acéfala. Para o bem do País, pelo menos na minha condição de simpatizante, espero bem que alguém no seu seio reconheça os sinais do tempo e faça isso, pois fora da Frelimo, por enquanto, é ainda o caos. Por causa disso, não alterar o curso, nestas circunstâncias, é profundamente irreponsável. Quem podia ajudar muito nisso são os militantes da Frelimo que andam aqui pelo Facebook. Esses, sobretudo os mais jovens, deviam desenvolver uma relação saudável com o seu partido, portanto, uma relação baseada na interpelação crítica, não na celebração constante de tudo quanto vem da cúpula ou das estruturas.  Só que sei que é pedir demais. Vão mais é fazer “screenshots” deste texto e encaminhá-lo como mais uma prova dos vários inimigos da pátria que andam aí à solta, adiando assim o trabalho de introspeção que urge há muito tempo. (Por : E.Macamo.Universitat Basel)

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