As
eleições municipais vieram e deram uma ideia do que pode vir a acontecer no
próximo ano. A Frelimo parece estar em queda livre. É verdade que ganhou a
maior parte dos municípios. Aqui vale, porém, o argumento do analista político
João Pereira que usa o critério do investimento feito e o retorno conseguido
para rejeitar essa ideia. A Frelimo fez uma campanha de luxo – cheguei a
comentar na altura que tinha algo de indecente – e mesmo assim à excepção da
Beira, onde teve um bom resultado, não registou nenhum progresso nos municípios
onde tradicionalmente tem mau desempenho – Nampula e Quelimane – e onde ganhou
contra todas as expectativas arrecadou vitórias sofridas (e contestadas). O senso comum conclui a partir destes
factos que o povo está a punir a Frelimo pelo seu mau desempenho e a mostrar
que o argumento de ausência de alternativas credíveis já não constitui grande
barreira para o povo colocar o seu voto onde está a sua barriga. Embora
plausível esta leitura não parece correcta. Só estudos aprofundados podem
garantir maior segurança nas conclusões, claro, mas há elementos suficientes
para duvidar dela. Um deles é o seguinte: Apesar de tudo, a Frelimo ganhou e
esse feito é a todos os títulos extraordinário se tivermos em conta que há
várias razões para as pessoas estarem descontentes e, acima de tudo, o tipo de
problemas que existem em Moz ultrapassam, por enquanto, qualquer governo. O
governo alemão, espanhol ou sueco não teriam necessariamente melhor solução
para o que se passa agora no País, pelo menos ao nível económico.
Na
minha opinião de leigo, política económica parece lotaria. É verdade que há
coisas básicas que precisam de ser feitas, mas duvido muito que para uma
economia como a nossa dependente de vários factores e actores faça muito
sentido procurar explicar o fraco ou bom desempenho com base na política
económica seguida. É certo que o País está em crise económica séria e isso reflecte-se
no bolso das pessoas. As “classes médias”, sobretudo, que nos anos
aparentemente gordos meteram na cabeça que tinham ganho estabilidade económica
por conta do seu esforço individual estão hoje a ser chamadas à realidade e não
gostam do que estão a ver. Foram beneficiárias
dum Estado disfuncional. Precisam urgentemente dum bôde expiatório e nisso
qualquer governo e qualquer razão servem. Frelimo, dívidas ocultas, corrupção,
etc. Nunca se interessaram muito pelas condições estruturais dentro das quais o
País evoluíu e, por isso, limitaram o seu sentido de cidadania a apenas exigir
mais conforto duma economia incapaz de garantir isso por muito tempo e
vulnerável a crises. Quando procuraram ser mais políticos abraçaram o discurso
da indústria do desenvolvimento e vestiram a identidade de indignados
profissionais reduzindo o País aos algoritmos confusos dos slógans dessa
indústria, tipo boa governação, corrupção, transparência, etc. Neste sentido, a
culpa da Frelimo em minha opinião não está em dirigir mal a economia – a minha
impressão, por acaso, é que dum modo geral a equipa governamental, sobretudo o
Primeiro Ministro, tem revelado competência em lidar com uma economia
vulnerável e pouco saudável. A culpa da Frelimo está em não ter transformado as
suas estruturas para estarem à altura dos desafios políticos que a condição do
País coloca a todos nós.
O
problema da Frelimo é que na sua estrutura e funcionamento é um partido
“estalinista”. Este tipo de partido serve para contextos políticos fechados
como é o caso da China ou do Vietname. Mas onde o partido estalinista tem que
competir com outras forças – como na Rússia, por exemplo, se não se transforma
fica refém dos seus próprios vícios, muitos dos quais, diga-se em abono da
verdade, são também os vícios duma permanência prolongada no poder. Quando é
assim, o partido promove uma cultura complacente virada à gestão ciumenta de
glórias passadas, fica extremamente hostil à crítica, vira bazar de interesses
internos conflituantes e confunde o seu destino cada vez mais com o destino da
nação. Confunde a defesa dos seus interesses com o patriotismo. Nada disso é
feito por maldade. São processos estruturalmente determinados e os mecanismos
sociais que os tornam possíveis podem ser detalhadamente descritos. E muito
disto é feito com sinceridade. Não
alinho, portanto, com aquelas correntes de opinião que olham para a
desordem como parte duma estratégia global de acumulação. A Frelimo tem muito orgulho da sua democracia
interna, trunfo que usa contra os partidos da oposição. A verdade, porém, é que
essa democracia é um travesti. É o resquício estalinista de conformidade com os
regulamentos internos cuja celebração ao longo do tempo substituiu o debate
interno de ideias. O último congresso foi um exemplo claro disso. O partido
celebrou-se a si próprio, ao seu líder – por enquanto sem obra senão uma paz
fictícia refém do estado de ânimo dos dirigentes da Renamo – e no fim emergiu
com uma “visão” algo embaciada que tinha muito pouco a ver com a realidade do
País e com os seus desafios. Quem é que não é pela “Unidade, Paz,
Desenvolvimento”? Mas o que significa isso em termos concretos? O que significa
“Unidade” num País plural? Que valores são convocados e que tipo de medidas é
que a Frelimo quer implementar para promover esses valores e proteger a tal
“Unidade”? O que significa “Paz” num País onde o recurso à violência contra o
Estado é usado para obter concessões inglórias desse mesmo Estado? O que
significa “Desenvolvimento” num País dependente do auxílio externo, mas detentor
de grande potencial económico? Até hoje não vi nenhuma destas três coisas
postas em prática duma maneira que evidenciasse algum projecto claro e
consequente.
O
caso mais gritante é o da paz cujo processo foi sempre pontuado por celebrações
efusivas alternadas com acusações à falta de sinceridade da Renamo. Não há nada
nesse processo que revele uma ideia clara de paz, nem do tipo de País que se
quer que Moçambique seja. O governo foi de concessão em concessão sem
praticamente receber nada em troca como, aliás, documentam as ameaças de
retorno à violência ou abandono do processo por parte da Renamo. É deveras
estranho que após um processo conduzido no segredo dos deuses, e celebrado como
fruto da confiança, uma das partes não tenha nenhum problema em embaraçar o
parceiro com este tipo de ameaças. Fica evidente que uma paz baseada na
acomodação dum partido é uma paz pensada com o único intuito de salvaguardar o
poder da própria Frelimo, não o bem estar do País. O tempo ainda vai cobrar a
insensatez de não se ter alargado o processo a todas as forças vivas da
sociedade, o principal trunfo ao dispôr do governo para negociar uma verdadeira
paz. As armas calaram-se – respondendo a um “bluff” bem conseguido da Renamo
que no fundo sabe que não tem capacidade para manter uma guerra de baixa
intensidade por muito tempo – mas a Frelimo continua a não merecer a confiança
da Renamo nem dos outros partidos de oposição e de organizações da sociedade
civil. Felizmente, existem as reuniões da Comissão Política para saudar tudo
isto.
A maior consequência do tipo de partido que a Frelimo continuou a ser tem
sido uma crescente acefalia. Lá onde devia estar um gestor de crise, portanto
na direcção do partido, está o produto duma estrutura corrompida pelo seu
próprio sucesso. Ascendeu ao poder uma pessoa politicamente inexperiente –
mesmo em termos de serviço dentro do partido – que dificilmente disfarça o
facto de que as qualidades que ele possui não são, infeliz e aprentemente,
suficientes para lidar com os desafios que esse cargo traz consigo. Com um
partido tomado de assalto por estruturas cuja principal missão é agora saudar o
líder e celebrar os feitos do partido, a Frelimo não tem sabido resistir à sua
própria esclerose. É esta incapacidade que cria espaço para a emergência de
carreiristas (vulgo “oportunistas”) que funcionam como grupos de choque contra
quem, internamente, levanta o bico e contra o fantasma da mão externa, o qual
ajuda a explicar desaires eleitorais e dificuldades na comunicação com
parceiros internacionais.
Não
é de hoje. Começou ou intensificou-se no segundo mandato de Guebuza quando ele,
curiosamente, tinha embarcado num interessante e necessário programa de
revitalização do partido que durante algum tempo até deu conta do recado. O
programa, contudo, ficou refém da estrutura estalinista do partido que não vive
do debate aberto e franco de ideias, mas sim da submissão a ordens superiores e
à obsessão com a coesão que no dia a dia se traduz em conformidade e
hostilidade à imaginação e inovação. Daí também que os quadros não sejam
necessariamente escolhidos na base da competência ou da sua capacidade de
anunciar e defender uma visão, mas sim na base de compromissos partidários
internos. É bonito como imagem a projectar para fora, mas o preço é alto em termos
de manter o partido à altura dos acontecimentos. Este
modelo partidário só funciona em condições de pluralismo político quando o
partido é sustentado internamente por uma cultura de debate aberto. Mas lá
está, crítica e Estalinismo não combinam. Crítica é inovação, transformação e
flexibilidade. Estalinismo é obediência, estagnação e complacência. Essa
cultura de debate levaria às instâncias superiores do partido, por exemplo, à
Comissão Política, pessoas movidas por ideias claras do tipo de País que
querem, ideias essas que não se reduzem a slógans cansados como “Unidade, Paz e
Desenvolvimento”, mas sim slógans que recuperam valores atentos ao País real,
estilo “Enfrentar a crise, defender a dignidade”, algo que me parece resumir
muito melhor o momento que o País atravessa.
A
Frelimo pode provar que não é acéfala. Para o bem do País, pelo menos na minha
condição de simpatizante, espero bem que alguém no seu seio reconheça os sinais
do tempo e faça isso, pois fora da Frelimo, por enquanto, é ainda o caos. Por
causa disso, não alterar o curso, nestas circunstâncias, é profundamente
irreponsável. Quem podia ajudar muito nisso são os militantes da Frelimo que
andam aqui pelo Facebook. Esses, sobretudo os mais jovens, deviam desenvolver
uma relação saudável com o seu partido, portanto, uma relação baseada na
interpelação crítica, não na celebração constante de tudo quanto vem da cúpula
ou das estruturas. Só que sei que é pedir demais. Vão mais é fazer “screenshots” deste
texto e encaminhá-lo como mais uma prova dos vários inimigos da pátria que
andam aí à solta, adiando assim o trabalho de introspeção que urge há muito
tempo. (Por : E.Macamo.Universitat Basel)
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