O
dia 16 de Agosto de 2018 nasceu igual a qualquer outro, e nada levava Ajuar
Zacarias, carpinteiro de 52 anos de idade, a imaginar que o mesmo iria terminar
de forma tão trágica, com ele na cadeia, aonde iria ser seviciado e torturado!
O seu “crime” foi participar numa manifestação que se supunha pacífica, e cuja
finalidade era defender, com outros camponeses, direito a justa indemnização,
pela perda de suas terras, concessionadas pelo Estado a interesses
empresariais. Trata-se da empresa Portos de Cabo Delgado (PCD), uma sociedade
detida pelas empresas estatais CFM – Portos e Caminhos de Ferro de Moçambique e
pela ENH – Empresa Nacional de Hidrocarbonetos, que prepara a construção, na
zona, da Base Logística de Pemba, destinada a servir as operações de logística
de recebimento, armazenamento e transporte do gás natural liquefeito, a ser
extraído na bacia do rio Rovuma.
Para
o espanto da população, a Polícia da Republica de Moçambique (PRM) foi
instruída a “intervir” na manifestação, onde espancou os populares, agrediu-os
com coronhadas, lanchou-lhes jactos de gás lacrimogéneo e levou 19 para a
cadeia, incluindo Ajuar Zacarias, acusados de serem os “cabecilhas” da manifestação.
Para além dos detidos, outros 76 cidadãos sofreram ferimentos, entre graves e
ligeiros, como resultado da acção da Policia. Era o corolário de um processo de
reassentamento económico conduzido de forma improvisada, quase arbitrária, que
consiste em ocupar machambas da comunidade local, para dar lugar a obras da
referida baste logística.
Como
que a confirmar a acção violenta da polícia, o porta-voz da PRM em Cabo
Delgado, Augusto Guta disse citado pela Rádio France Internacional que os seus
agentes usaram gás lacrimogéneo e balas reais disparadas para o ar, porque
segundo suas palavras, “ os munícipes montaram barricadas na via pública e
levaram instrumentos contundentes” o que, nas suas palavras, “mostrava não se
tratar de uma manifestação pacífica”.
Na
pesquisa que pouco depois realizou em Pemba, SEKELEKANI soube ainda que agentes
da PRM ter-se-ão apoderado de alguns telemóveis e quantias de dinheiro não
especificadas, que alguns manifestantes levavam consigo na ocasião. Eles
referem terem remetido um processo judicial à Procuradoria da Província de Cabo
Delgado, esperando ansiosamente pelo seu desfecho.
Ajuar Zacarias
é chefe de uma das 750 famílias a quem foram retiradas as respectivas machambas
nos bairros do Alto Gingone, Mahati, Muchara e Igone, para dar lugar a obras de
construção da base logística de Pemba, um projecto concessionado pelo governo
moçambicano à empresa PCD, a qual, por sua vez, concessionou o empreendimento
ao consórcio ENHILS SA, formado pela estatal ENH com 51 por cento de capital e
a nigeriana Orlean Invest com 49 por cento.
Sem
que houvesse qualquer consulta comunitária, digna de tal designação, a PCD
apoderou-se das terras onde estas 750 famílias praticavam agricultura de baixo
rendimento. Deste acto resultou também o fecho do caminho através do qual os
pescadores locais tinham acesso ao mar.
Para
compensar as famílias afectadas pela perda das suas machambas, a PCD fixou,
unilateralmente, um valor de indemnização, fixado em 7.5,00 (Sete meticais e
cinquenta centavos) por metro quadrado. Os camponeses rejeitaram esta quantia;
contrapondo o valor de 450 MTs. Na sua contraproposta, os afectados argumentam
que, tratando-se de uma zona localizada num distrito com município, e alvo de
grandes investimentos, ela tinha sido largamente valorizada, facto a ser tido
em consideração no cálculo da indemnização.
Ante
a falta de progresso no diálogo com as autoridades locais e a empresa, os afectados
chegaram a enviar um emissário a Maputo, que terá pedido uma audiência com o
Ministro da Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural, Celso Correia, porém sem
qualquer sucesso.
Entretanto,
as famílias iam sendo fortemente pressionadas para cederem as suas machambas,
na base da tabela que contestavam. Assim, das 750 famílias, 700 acabaram
cedendo à pressão. “Eles diziam-nos que, por mais que recusássemos a tabela de
7.50 MTs, sempre iríamos perder as nossas terras. Assim acabamos aceitando,
mesmo sem concordar com o valor”, afirma Hawa Alfane, residente no Alto Gingone
e que vive única e exclusivamente de agricultura.
Note-se
entretanto que, mesmo o valor de 450 MT, ficaria abaixo de metade do valor
atribuído, pelas mesmas razões, aos camponeses de Palma, que é de 1.000,00 (mil
meticais), ao que se acrescenta, ainda, a atribuição de terra de substituição.
Reagindo
a perguntas sobre a larga diferença, na mesma Província, entre a tabela
aplicada aos camponeses de Pemba e a de 1.000,00 estabelecida para os camponeses
de Palma, o Presidente do Conselho Municipal de Pemba, Tagir Assimo Carimo, e a
Administradora do Distrito de Pemba, Isaura Zacarias Máquina, argumentam que as
terras em Pemba eram ociosas e inférteis. “Eu sou de cá e durante a minha
infância ia apanhar maçanicas naquele lugar porque era mato”, afirma a
administradora Isaura Máquina.
Contudo,
esta narrativa é fortemente contestada pela população local, que vinca que as
terras ora atribuídas à base logística de Pemba são na realidade agricultáveis,
razão porque havia na área muitas machambas.Uma deslocação dos pesquisadores do
SEKELEKANI ao terreno confirmou que a zona era, com efeito, usada para a
prática agrícola.
Hawa
Alfane diz que fazia machamba em Nakhole onde cultivava banana, mapira,
batata-doce, cana-de-açúcar, maçanica e outros produtos agrícolas que lhe
garantiam o sustento, seja consumindo directamente ou vendendo-os. Diz ter sido
expulsa das suas terras em troca de um valor irrisório e considera que uma
indemnização justa pela perda de todas as suas terras pode chegar aos dois
milhões e quintos mil meticais. “Disseram-nos para não fazer mais machambas
naqueles terrenos os mesmos agora eram dos chefes, mas, não nos disseram para
onde devíamos ir, por isso estamos sem fazer nada e o governo está feliz porque
vai nos deixar mais pobres ainda” – desabafa Hawa Alfane.
Enquanto
decorre a entrevista na residência de Hawa, um velho de 60 anos de idade,
aproxima-se. E porque as entrevistas aconteciam sob forte vigia, uma vez que
reina o medo em todos os bairros abrangidos, a conversa é momentaneamente
interrompida. O homem entretanto identifica-se; diz que se chamava Zandine
Amade; trabalha como guarda no período noturno e, durante o dia praticava a
agricultura…antes de perder a sua machamba!
Amade
faz parte do grupo que se recusou a receber as indemnizações baseadas na tabela
de 7.5MT por metro quadro. Com base nessa tabela, ele iria receber 15 mil
meticais. Ele conta que tinha uma horta onde produzia couve, cebola, tomate e
alface o que lhe garantia diversificar as suas fontes de rendimento e
assegurava-lhe uma alimentação de qualidade. Mas, tudo isso mudou a partir do
dia em que chegaram os “chefes” (referindo-se aos técnicos da Impacto, PCD e
CMCP) para tirar medidas, fotos e mais tarde a própria terra.
Amade
refere que os lesados tentaram, vezes sem sucesso, dialogar com as autoridades,
para demonstrar o seu desconforto.. Ou seja, as reuniões que eram realizadas
não produziam quaisquer efeitos. No dia em que decidiram fazer uma manifestação
pacífica, receberam em troca, no lugar de dinheiro e terras de substituição,
coronhas, espancamentos e jactos de gás lacrimogéneo.
Adia
Buruhane, de 36 anos, corrobora com este sentimento de frustração, ao afirmar:
“não sabemos como é que o comprador define o preço de um produto sem ter
combinado com o dono e quando este quer reclamar, ele é ameaçado, o comprador
diz que, mesmo que o dono não concordar com o preço, ele vai ficar sem o seu
produto”.
Aliás,
Adia viúva de marido polígamo, reclama que a PCD descurou a necessidade de
salvaguardar os direitos de mulheres casados em regime de poligamia: ao
passarem todo o valor da indemnização, ao marido, que entretanto faleceu, ela
ficou duplamente prejudicada, pois além de perder as suas machambas, não
recebeu qualquer valor da indemnização. Numa região onde a poligamia é costume
generalizado, é de crer que o caso de Adia se tenha multiplicado por muitas
outras mulheres, cujos maridos, ao receberem as ditas indemnizações, não as
contemplaram.
Uma
revolta há muito esperada
O
projecto da base logística de Pemba foi formalmente lançado em Outubro de 2014.
Porém, pouco depois, o mesmo veio a conhecer uma paralisação, no meio de
dúvidas sobre a possibilidade ou não do seu uso pelas companhias de gás que
irão operar na bacia do Rovuma.
As
dúvidas vieram à tona quando os consórcios liderados pela empresa Italiana Eni
e pela norte-americana Anadarko manifestaram a intenção de usar infraestruturas
a serem construídas em Palma, a 400 quilómetros da cidade de Pemba, o que
tornaria inviável aquele projecto.
Nesse
período inicial, a área delineada para o projecto abrangia os bairros de Alto
Gingone, Mahati, Muchara e Igone, segundo a abrangência do respectivo Estudo de
Impacto Ambiental (EIA) realizado pela empresa Impacto.
Após
a realização do EIA, o Conselho Municipal de Pemba apareceu a distribuir
dinheiro de indemnizações, de acordo com a tabela dos 7.5 Meticais, em 2015.
Nessa altura, ocorreu uma primeira manifestação dos afectados, protestando
contra a falta de diálogo e de transparência nos critérios usados para a
fixação daquela tabela. Uma equipa de negociação, de alto nível, da PCB, foi a
Pemba para lidar com o assunto mais de perto, porem a mesma não logrou resolver
os pontos de discórdia. É então que os lesados enviam um representante para
Maputo, aonde tentou, sem sucesso, ser recebido pelo titular do MITADER, Celso
Correia.
Amed
Radi, um dos afectados afirma que a PCD e o governo jamais se preocuparam com o
restabelecimento dos seus níveis de vida e nem consideraram a atribuição de
outras machambas para a prática da agricultura.
Entretanto,
um período de calmia se registou na região, enquanto as obras da construção da
base logística se mantinham paralisadas. Porém, em Outubro de 2017, o
Presidente do Conselho de Administração da Empresa Nacional de Hidrocarbonetos,
Omar Mithá, anunciou em entrevista a emissora pública, Rádio Moçambique, a
retomada, no mês seguinte, daquelas obras. Foi perante este facto que os
lesados, na falta de qualquer indicação de diálogo para um desfecho consensual
da disputa, decidiram promover a manifestação de 16 de Agosto último.
Tagir Ássimo Carimo, exibindo a
lista dos endemizados
A
empresa queria pagar ainda muito menos
Em
resposta a estas reivindicações das famílias afectadas, nomeadamente no que se
refere à reposição de meios de vida e atribuição de novas machambas para a sua
subsistência, o Presidente do Conselho Municipal de Pemba, Tagir Ássimo Carimo,
afirma que tais assuntos não constavam das suas preocupações, e “o que queríamos
era assegurar que as pessoas recebessem o dinheiro e os valores globais saíram
de 14 para 40 milhões de meticais”.
Isaura Zacarias Máquina,
Administradora de Pemba
Relativamente
aos fundamentos em que se baseou a tabela de 7,5 Mts por metro quadrado, o Edil
de Pemba afirma que, “quando a PCD chegou a Pemba trouxe a legislação que
refere que a terra é propriedade do estado e não pode ser vendida; mas que os
que a utilizavam de forma costumeira podiam ser compensados pelas benfeitorias.
Entretanto o local era uma mata com uma e outra fruteira e é isso que terá
pesado para que os valores fossem aqueles”. De resto, acrescenta Tagir Ássimo
Carimo, a PCD queria pagar valores ainda mais baixos, tendo subido até 7.5Mts
por sugestão das autoridades municipais.
Por
seu lado, a Administradora de Pemba, Isaura Maquina, partilha a mesma posição
do Município, segundo a qual aquela área “era uma mata”, e que as
reivindicações da população não passam de tentativas oportunistas “para criar
confusão”.
Portos
de Cabo Delgado fecham-se em copas
A
produção da presente reportagem prolongou-se por cinco semanas, contra a
previsão inicial de três semanas. A reportagem foi realizada no quadro de
expedição envolvendo, também, jornalistas do semanário “Savana” e da Televisão
Independente de Moçambique (TIM). Desde antes da partida da expedição para
Pemba, foram encetados contactos preliminares com a empresa PCD, para a recolha
de dados de base, de suporte à pesquisa no terreno. Isto incluía a indicação
dos porta-vozes autorizados da empresa, em Pemba. Dai em diante seguiram-se
démarches e peripécias, em que SEKELEKANI jamais logrou obter qualquer informação
da PCD.
Após
transferência sucessiva do nosso pedido de informação, de uns oficiais para
outros, finalmente a equipa de pesquisa do SEKELEKANI obteve a garantia da
disponibilidade do Director Executivo do PCD, que iria receber a equipa de
pesquisadores “sem demora”. Em contacto telefónico, a Secretaria Executiva
prometeu que iria, dentro em breve, retornar a chamada, para nos indicar da
hora exacta do encontro solicitado com o Director Executivo. Ao retornar a
chamada, poucas horas depois, a Secretaria Executiva tinha, entretanto,
informação diferente, a respeito da disponibilidade do Director Executivo:
disse que, afinal, este tinha a agenda sobrecarregada, pois estava a preparar –
se para uma missão ao estrangeiro, aonde iria permanecer por duas semanas.
SEKELEKANI deveria aguardar, pois seria contactado assim que o Director
regressasse do estrangeiro. Tal chamada jamais apareceu.
Novas
tentativas para obter a versão dos factos por parte da PCD, envolvendo vias
indirectas, também redundaram em fracasso. Pode-se, por isso, concluir que a
empresa acusa o melindre da crise provocada junto das famílias lesadas,
esquivando-se, por isso, a pronunciar-se, para o devido esclarecimento à
opinião pública. Está ainda longe a meta do direito dos cidadãos à informação.
Por:
Jessemusse Cacinda (Texto) e Nelcia Tovela (Fotos)
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