sexta-feira, outubro 19, 2018

Uma versão para cada um dos 32 anos


Imagem relacionadaImagem relacionadaPara além das vítimas mortais do desastre aéreo ocorrido em Mbuzini, (19/10/86) houve as vítimas da desinformação. Vítimas, cujo número se vai multiplicando em cada ano que passa. São vítimas permanentes, eternas da desinformação na continuidade. Vítimas de uma história que começou por ser deliberadamente mal contada para que na mente das pessoas, e das gerações vindouras, ficasse gravada uma versão adulterada de um acidente aéreo.O acidente de aviação em Mbuzini foi talvez o mais fácil de explicar. Ocorreu nos derradeiros momentos do voo, quando as comunicações entre a aeronave e o aeroporto de destino decorriam com normalidade. Mecanicamente, a aeronave funcionou sem quaisquer anomalias. Foi possível recolher os dados técnicos do voo, inspeccionar os destroços, obter depoimentos dos sobreviventes o que permitiu reconstituir com precisão o que realmente havia sucedido antes do desastre e as razões do despenhamento do avião. Sem margem para quaisquer dúvidas.

Mas houve quem pretendesse transformar o desastre num mistério, antes sequer do início das investigações. Recorreu-se à desinformação, orquestrada a partir de Maputo e de Moscovo. São conhecidos os que consciente ou inconscientemente agiram como agentes da desinformação. A estes sucedem-se novos agentes, como que a manter viva uma versão meticulosamente construída, divorciada da realidade e da lógica – e do bom senso. Os novos agentes não diferem dos antigos: desconhecem as circunstâncias do desastre, não se esforçam por estudá-las ou aconselharem-se junto de quem de direito. Mas são tidos como pessoas de renome, as tendências políticas de cada um – todas inseridas num mesmo espectro – um valor acrescentado. Com a mesma arrogância e desplante, decidem à sua maneira o que terá acontecido há mais de três décadas, omitindo factos e passando sobre regras e princípios de aeronáutica, contribuindo assim para escandalosa e flagrante adulteração de um episódio recente da história de Moçambique.

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Pedro de Pezarat Correia integra a nova geração de agentes da desinformação. Faz parte dos que desinformam por insinuação. Não são, portanto, directos, tornando-se óbvia a intenção de dar consistência a teses de conspiração. Pezarat Correia é militar de carreira. Especializou-se em Ciências Militares. Em afamada universidade portuguesa, instalou e leccionou a cadeira de Geopolítica e Geoestratégia. É autor e co-autor de muitas dezenas de livros e trabalhos sobre geopolítica e geoestratégia, estratégia e conflitos, guerra colonial e descolonização. A seu favor, o facto de ter integrado o movimento que em Abril de 1974 derrubou o regime vigente em Portugal. É, pois, um «Capitão de Abril», de “esquerda”, naturalmente credível, o que diz ou escreve aceite como válido – depois repetido por quem o lê e dele aprende. Nada no perfil de Pezarat Correia que indique ter conhecimentos de aeronáutica, ou que tenha dedicado tempo a estudar questões de aviação para que pudesse assentar em bases sólidas o que defendeu sobre Mbuzini em livro recentemente publicado. (1) Numa simples frase revelando a ignorância do autor sobre as circunstâncias do acidente que vitimou Samora Machel, lê-se que “as causas do acidente e o eventual envolvimento da África do Sul continuam envoltas (sic) em mistério e nem o fim do apartheid permitiu que o processo fosse reaberto e definitivamente esclarecido”.

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George Bizos é advogado. Notabilizou-se em casos de direitos humanos, envolvendo presos políticos do regime do apartheid, incluindo Nelson Mandela. É próximo do ANC e da família Mandela. Conheceu Graça Machel em casa de Nelson Mandela. Em livro de memórias, (2) Bizos afirma ter ficado “impressionado com a determinação de Graça Machel em provar que os militares sul-africanos eram responsáveis pela morte de Samora Machel”. Bizos é apologista da teoria da conspiração. Tal como Pezarat Correia e outros autores, (2) deixa transparecer uma profunda ignorância sobre questões de aviação e das circunstâncias do acidente, afirmando – melhor, repetindo – que “o piloto pensava que estava prestes a aterrar, confundidos que estavam por faróis falsos, que os moçambicanos afirmam terem sido instalados pelos militares sul-africanos”.

Daniel L. Douek é um académico canadiano. Em 2017 publicou um estudo, cujo título é esclarecedor: “New light on the Samora Machel assassination: ‘I realized that it was no accident’”. O autor baseou-se em depoimentos feitos perante a Comissão da Verdade e Reconciliação (TRC) da África do Sul.A TRC não estava habilitada a investigar desastres de aviação. Nenhum dos membros do painel da TRC, incluindo o seu presidente e a jornalista que desempenhou as funções de consultora, possuía formação em aeronáutica.

Todos eles revelaram desconhecer, em pormenor, as circunstâncias em que ocorrera o desastre. Os factos apurados por investigadores qualificados, no âmbito da Comissão de Inquérito instaurada pelo Estado de Ocorrência do desastre, ignorados ou distorcidos, ficando ainda patente o propósito da TRC: provar uma teoria de conspiração.As conclusões a que chegou Douek afiguram-se incongruentes e inconsistentes. Para ele, as sessões de audiência da TRC “estabeleceram sem sombra de dúvida a culpabilidade da África do Sul”. O autor não explica porque é que cerca de duas décadas após a conclusão dos trabalhos da TRC, os alegados assassinos não foram ainda levados a juízo.

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1. «… da descolonização. Do protonacionalismo ao pós-colonialismo», Porto. 2017, p. 332.
2. George Bizos, “65 Years of Friendship”. Umuzi, Cape Town, 2017, p. 36.
3. Joseph Hanlon e Marcelo Mosse, “Mozambique’s Elite – Finding its Way in a Globalized World and Returning to Old Development Models”, UNU-WIDER, Helsínquia, 2010.


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