A rejeição de
candidaturas às eleições autárquicas pela Comissão Nacional de Eleições (CNE) e
pelo Conselho Constitucional (CC) pode provocar conflitos após o escrutínio e é
um autêntico petróleo no fogo do cenário político moçambicano, considera o
filósofo e reitor da Universidade Técnica de Moçambique (UDM) Severino Ngoenha.
Ngoenha
qualifica como “legalismo e juridismo” o posicionamento dos dois órgãos;
demonstra uma certa promiscuidade entre o partido no poder, Frelimo, e as
instituições do Estado. Defende que instituições como CC não têm apenas a
missão de aplicar leis para punir, mas também para ensinar. Manifestando
preocupação com os conflitos que se têm verificado nos períodos eleitorais no
país, Severino Ngoenha considera que as forças vivas da sociedade devem dar o
seu contributo em prol da democracia, pois “todos estamos a meter petróleo no
fogo”.
O académico considerou “agressiva” a avaliação que a Conferência
Episcopal de Moçambique (CEM) fez da governação de Filipe Nyusi. Na sua mais
recente avaliação sobre a situação do país, os bispos católicos moçambicanos
consideram que o ciclo de governação de Filipe Nyusi é um dos “menos gloriosos”
na história do país. O que está em causa, assinala Severino Ngoenha, não é o
conteúdo da carta pastoral, mas a forma como a mesma está redigida, pois “o
país precisa de uma maior harmonia e colaboração para apaziguar os vermes da
violência”. A
paz, de acordo com Ngoenha, é inegociável, pois foi à volta dela que foi
erguida a segunda república ou assinado o Acordo Geral de Paz. O académico
frisa que a busca da estabilidade foi o momento mais alto da governação de
Filipe Nyusi e da actuação do
falecido líder da Renamo, Afonso Dhlakama. Os entendimentos entre os dois líderes
abriram espaço para a revisão da Constituição da República e condições para a
desmilitarização do braço armado da Renamo.
Na
entrevista ao SAVANA,
Severino Ngoenha lançou um olhar sobre o processo eleitoral em curso,
enfatizando que é preciso que as leis se subordinem ao espírito e não apenas à
letra. Prevaleceu o legalismo na decisão da CNE e do CC e não se teve em conta
o espírito da lei, da CRM, das reformas, da segunda república e do espírito do
diálogo que o PR e o malogrado líder da Renamo levaram a cabo, entende Ngoenha.
O académico defende que a prevalência do espírito em nome da legalidade ou de
um certo legalismo ameaça levar o país a novos conflitos. “Toda a lei e todo o
legalismo que levasse ao conflito militar seria contrário ao espírito da lei,
aquilo que prevaleceu, aquilo que se privilegiou, foi olhar para os pontos e as
vírgulas dos diplomas legais e se esqueceram do espírito da lei. Sempre que entramos
em situações de conflito, vamos ter mortes, destruição das poucas
infra-estruturas que temos, neste momento, Moçambique está numa situação
económica má que se deveu a empréstimos destinados a questões militares”,
observou. O académico entende ser importante ter em conta que a busca da paz fez
nascer a segunda república e a democracia resultou do esforço de busca da paz.
“É
preciso ter em conta que nós nascemos na segunda república, a nossa democracia
nasceu em busca da paz e esta paz não pode ser negociada e não pode haver
nenhuma lei ou procedimento jurídico que possa nos trazer a guerra, sendo que,
caso haja espaço para que isso aconteça, que seja sacrificada a própria lei”,
destacou. Severino Ngoenha lamenta o que considera falta de clareza nos debates
internos para a indicação dos cabeças-de-lista dos partidos e a exclusão de
candidaturas ou listas.Sublinhou que colaboraram também os meios de comunicação
social e intelectuais, porque os debates levados a cabo não foram sãos.
“Estamos
todos a meter petróleo no fogo e sabemos que o nosso país muito rapidamente pode
cair em situação de conflito. Participação democrática sim, debate de ideias
sim, manifestação de consensos e dissensos sim, mas temos de nos recorder que a
democracia é antes de mais um dissenso consentido. Dissenso quer dizer que
temos ideias diferentes, mas temos um sentimento de podermos manifestar as
nossas ideias”, disse.
Severino
Ngoenha refere que o CC e a CNE transmitiram a percepção de que favoreceram um
determinado partido na corrida eleitoral, na rejeição de candidaturas às
eleições autárquicas. Diz que a promiscuidade entre as instituições e o
executivo do partido no poder é grande, o que leva à desconfiança da população
em relação às instituições. “No nosso caso, as instituições ressentem-se muito
de uma certa promiscuidade entre partido, governo e instituição. Isto é uma
chamada de atenção para a necessidade de fortificarmos as instituições, seja a
CNE ou o CC”, frisa. A independência das instituições é fundamental e deve ter
consistência, em termos de maturação do conhecimento dos próprios ´dossiers`,
celeridade nos processos, procedimentos, transparência, independência,
acrescentou. O docente diz não estar preocupado em debater pessoas excluídas,
mas comprometido com os avanços do espírito do Estado democrático e criação de
um clima de estabilidade. “Quando a instabilidade militar parecia estar
controlada no diálogo entre PR e Dhlakama, surge o ´dossier` Cabo Delgado. Mas
antes, já havíamos tido a crise económica vinda das dívidas ocultas”, recorda.
Severino
Ngoenha criticou o legalismo e “juridismo” na rejeição de candidaturas às
eleições autárquicas, considerando que as instituições de justiça devem assumir
uma função pedagógica e não necessariamente de punição. Acrescenta que é dever
das instituições ajudar os partidos no processo de aprendizagem de modo a
actuarem dentro das normas. “Se é necessário que a gente crie instituições para
ajudar os partidos a concorrer e apresentar a documentação de uma maneira clara
e legítimaentão que façamos. Mas não pode acontecer que a gente entre novamente
em encrencas em nomede aplicação de uma lei. São coisas que se olhar para o
direito são importantes,mas se olhar o espírito da lei são pequenas”, frisa.
Insistiu que, em processos do género, o mais importante não é a eliminação de
pessoas por não terem apresentado todos os documentos ou por terem renunciado a
um mandato anterior. Estabeleceu uma comparação com o Campeonato de futebol que
ao eliminar, por exemplo, equipas como Maxaquene, Ferroviário
ou Costa do Sol por não apresentarem documentos não haveria campeonato e todo o
país ficaria a perder. Numa democracia, sublinha o filósofo, é interesse da
nação, que participem todos aqueles que são considerados pelos respectivos partidos
como os melhores. “Eliminar partidos é como eliminar equipas de futebol,
eliminar cabeças- de-lista é como eliminar bons jogadores e quem fica a perder
no futebol é o espectáculo e no país é a democracia que falha”, enfatiza.
Com
a campanha eleitoral já em curso, Severino Ngoenha é de opinião que a democracia
moçambicana sai fragilizada, porque não discute temas de fundo no país, mas centra-se
em pessoas, histórias de partidos, passado glorioso e outros assuntos
irrelevantes. Refere que o país enfrenta problemas que precisam de ser
resolvidos e que nas campanhas anteriores não foram
objecto de análise. Anota que do pouco que tem ouvido das pessoas que vão a
campanha pouco tem evidenciado questões profundas do povo. “Os partidos, quando
concorrem para o poder, o que fazem é tentar, com muita demagogia, dizer que vão
mudar o mundo interior e que o amanhã vai ser melhor e que depois de amanhã os
problemas que temos vão se modificar radicalmente”, assinala.
Os candidatados
recorrem a muita demagogia para esconder a falta de interesse ou incapacidade
de fazer frente aos problemas concretos com que as pessoas estão confrontadas, disse.
Apelou aos intelectuais e aos meios de comunicação social para tomarem a
dianteira no debate público, questionando as soluções ou projectos dos
candidatos em relação aos principais problemas dos moçambicanos, como emprego,
qualidade de ensino, crise económica, criminalidade entre outros.
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