Na Frelimo existem
militantes que deram tudo pela pátria. Estão há quase 60 anos na FRELIMO; eles
são da FRELIMO e A FRELIMO é, em parte, resultante deles. Lutaram colocando as
suas vidas em risco. Sofreram. Alguns deixaram vidas confortáveis para se
dedicarem generosamente a causas nobres. Viram seus familiares morrerem e
sofrerem. Recuperaram a memória colectiva do Moçambique escravizado e colonizado,
com tudo o que essas condições de subjugação representam. Participaram em um
dos partidos constitutivos da FRELIMO, formaram a Frente de Libertação de
Moçambique, transformaram esta organização em partido marxista-leninista, proclamaram
a independência de um novo Estado. Nasceu uma nação e recuperaram-se
identidades históricas e culturais seculares. Outros, de militância mais
recente, com respeito pelas diferenças, a geração da independência, também. Os
discursos da libertação, da justiça e da igualdade, contra a exploração, a
construção de uma nação próspera e progressista ou mesmo socialista, entre
outros slogans (ou pretensões genuínas), foram mobilizadores de jovens de todas
as regiões, raças e credos religiosos.
Nestas causas (e por interesses também),
se envolveram países socialistas, países e forças progressistas
de todo o mundo, militantes em nome individual de partidos similares de outros países.
Os discursos e as opções provocaram a ira de interesses externos, de multinacionais
e do capitalismo emergente, principalmente numa base colonial e racial e também
de uma parte da elite nacionalista não concordante e dissidente. Na intenção
socialista, aceitaram-se acrescidos sacrifícios de guerra, de destruição, do
carapau e do repolho como alimento de todos os dias. O conflito tinha como um
dos panos de fundo a guerra-fria, a existência do apartheid e de situações coloniais
na região Austral de África. A Guerra civil, chamada de 16 anos, tinha também
razões internas: a opção de um regime socialista, um Sistema económico
exclusivista do sector privado e da maioria da população, sem ou com poucas
liberdades e direitos dos cidadãos, um poder autoritário. Tudo isto ornamentado
com discursos populistas em defesa ou em representação de um povo sem
mecanismos de legitimação democrática (embora a grande adesão popular nos
primeiros anos após a independência). Usavam-se os termos “poder popular”,
“aliança operário-camponesa”, “luta anti-imperialista”, “Moçambique, o túmulo
do capitalismo”,“socialismo científico”, “bandidos armados”. Falou-se de
construir a Nação e de enterrar o tribalismo (etnias/nacionalidades). Nas
últimas duas décadas, tudo, ou quase tudo, mudou. Muitos dos supostos
marxistas, sem terem lido Marx e defensores narrativos dos valores acima
referidos, são hoje os protagonistas de um Estado do qual se servem para a
defesa dos seus interesses e dele obterem rendas, transformando a administração
pública numa plataforma de distribuição hierarquizada de recursos e mordomias.
Da propaganda socialista, emerge uma ideologia indefinida, porque, tal como não
leram Marx, também são, na maioria, desconhecedores dos fundamentos teóricos e
instrumentais de alguma outra ideologia ou corrente de pensamento.
Hoje, impera a economia do saque, sendo exemplo
disso, a devastação da floresta e da fauna bravia, de recursos minerais, dos
contratos pouco transparentes e com grandes benefícios fiscais e baixos royalties
com as
multinacionais do gás e petróleo, do carvão, das areias pesadas, de pedras
preciosas e do alumínio. São exemplos os contratos de exportação ao desbarato
da energia, os contratos para a construção de infra-estruturas megalómanas a
preços exorbitantes e realizados sem estudos de viabilidade económica, social e ambiental.
Imperam as relações promíscuas entre o partido no poder e o Estado, a
subjugação dos interesses nacionais aos da elite partidária. Existem os fluxos
directos e indirectos de recursos do Estado e das empresas públicas para
suporte de actividades partidárias. O procurement constitui um canal de corrupções comprovadas, que
articula empresas públicas e a administração do Estado com empresas muitas
vezes pertencentes às mesmas elites. O Estado assegura privilégios aos seus
servidores superiores e rendas para toda a vida. Por outro lado, o Estado é
fragilizado e desestabilizado com o objectivo de dificultar ou impossibilitar o
exercício das funções legislativas, de regulação, fiscalização e sancionamento.
Facilita-se, ou encobre-se, o não respeito pelos direitos humanos. Finge-se não
conhecer os mandantes e executantes de assassinatos políticos e de ajuste de
contas. Conhece-se e não se actua em relação a práticas de actos próprios da
escravatura na actividade do garimpo. Montam-se as frauds eleitorais. Mata-se. E
tudo isto, no essencial, com os mesmos dirigentes que lutaram pela libertação
do país e que propagandeavam o socialismo e os valores acima enumerados, entre outros.
Põe-se ainda a hipótese que tudo foi uma mentira meticulosamente arquitectada.
Infelizmente, grande parte desses moçambicanos, que poderia ficar na história
dourada de Moçambique,ficará nas páginas negras. Não é a estes que dirijo este
texto. A história não os absolverá. A história não será, e já não é, escrita
somente pelos vencedores. A questão deste texto é: por que razões os militantes
da FRELIMO que mantiveram condutas pessoais e profissionais decentes, continuam
militantes desta FRELIMO?
Por decência, refiro-me simplesmente ao não
envolvimento em casos de corrupção, ao enriquecimento não transparente, a práticas
de assassinatos, tortura e outras formas de agressão dos direitos humanos. Porque esses militantes se mantêm como militantes
da FRELIMO, mesmo ostracizados, mal-tratados e excluídos? Várias possibilidades
podem justificar para caso concreto (por pessoa ou grupos de pessoas). Quando
se pergunta a alguns desses militantes, a resposta tem um denominador comum: é
preciso fazer esforços de mudança a partir de dentro da FRELIMO, recorrendo-se
ao facto de, ao longo da sua história, terem acontecido grandes mudanças e que
estes processos são lentos e sempre acarretam riscos de desintegração da
organização. Alguns referem, ainda, que, mesmo com os problemas existentes, é preferível
esta FRELIMO a qualquer das alternativas do poder.
Pensando em outras possíveis razões, é possível
referir:
Todos
os militantes da FRELIMO possuem uma fidelidade (geralmente canina) ao partido.
Cimentam esta fidelidade vários tipos de compromisso criados natural ou
artificialmente, como sejam: segredos da guerra, de assassinatos, de negócios,
de alianças intestinas, de comportamentos desviantes à “linha política do
partido”, de lutas pelo poder, entre outros. A manutenção do sigilo fez, e
porventura ainda faz, parte dos mecanismos de protecção e reprodução do poder e
da imagem “imaculada” (já não) da FRELIMO e dos seus militantes. A quebra do
sigilo é considerada uma traição de consequências imprevisíveis. É prudente
evitar esses riscos e, por isso, muito dificilmente esses militantes “decentes”
dizem algo relacionado com os casos referidos, entre outros. Quase todos sofrem
de amnésia aguda e crónica. E, quando dizem, imediatamente são “chamados à ordem”
e acusados de “indiscipline partidária”. Diz-se que internamente há algum
debate, mas estes ficam nas quatro paredes. Talvez um dia o povo destruirá
essas paredes. Muita coisa, para além do que devem pensar, se sabe caros
militantes decentes.
A FRELIMO é poder e, com isso,
existem acessos multiformes a privilégios e mordomias de que os “decentes” beneficiam
(mesmo que sustentadas por leis que eles próprios imaginaram, escreveram e
aprovaram), como, por exemplo, casas, carros, negócios (decentes), lobbies, acesso à informação
privilegiada, recebimento de salários sem presença no local de trabalho (o que
se designa por “estar na prateleira”), entre outras. A saída da FRELIMO poderia
implicar a perda dessas importantes fontes de rendimento.
A maioria
destes militantes não sabe como
sobreviver “por conta própria”, isto
é, sem as facilidades e as “connections” partidárias; os filhos poderiam
também sofrer consequências. A
FRELIMO passou a ser uma entidade empregadora. A política virou uma profissão e um negócio. Muitos têm mais de 50anos de
FRELIMO!!. Outros menos, mas
recuperam bem o tempo.
Finalmente,
a maioria já não é jovem e, naturalmente, resguarda-se no anonimato que a
sabedoria da idade lhes aconselha. As frases de que “isso agora fica para os jovens”
ou que “já dei o meu contributo” são bastante enunciadas. Lembram-se da frase “morrer pela
pátria? Regra geral, estas e outras razões estão presentes num mesmo caso
(pessoa). Mesmo considerando os erros cometidos, os militantes decentes merecem
uma forte vénia de respeito e reconhecimento pela simples, mas fundamental,
razão de se manterem coerentes com os princípios fundamentais da ética, dos
sacrifícios consentidos e do contributo para a libertação. Mereceriam muito
mais consideração e respeito se se desmarcassem desta FRELIMO actual.
Resta a esses militantes uma responsabilidade histórica:
permitiram que a FRELIMO nacionalista, de valores e ideais, se transformasse
num partido assaltado por oportunistas e corruptos.Alguns dirão: sim, é
verdade, mas esses são a minoria. Admitindo que sejam uma minoria e que há decentes
no actual poder da FRELIMO,são eles que mandam. Equem manda, … manda. É
necessário que os decentes tenham e assumam essa responsabilidade histórica
para que sejam decentes. Se não o fizerem, estarão nos limites entre a decência
e a indecência. Seria bom que não engrossassem a malta dos indecentes. Termos indecentes
para ser gentil para quem não merece. Outros adjectivos os indecentes
merecem e tudo fazem por os merecer. E mais responsabilidade os decentes têm,
quando foram alguns deles os que apoiaram, em determinado momento, os agentes
do gangsterismo. Porque os apoiaram, é
outro capítulo.(SAVANA)
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