Há quase dez
anos publiquei um texto no jornal Notícias que era meio comentário, meio recensão
crítica dum livro curioso. Era da autoria do ex-Presidente da Guiné, o falecido
Koumba Yalá, e a intenção imediata do texto era de chamar a atenção dos
governantes para a importância da credibilidade para evitar que os eleitores,
desorientados, depositem a sua fé nas pessoas erradas. Fui desenterrar esse
texto para o postar aqui porque em conversa sobre as eleições em Moçambique com
um amigo guineense na semana passada ele falou-me de quão útil o texto tinha
sido para ele nos seus esforços de perceber o desastre que se havia abatido
sobre o seu próprio país. O vilão deste texto é a arrogância do poder, mas se o
tivesse escrito agora o vilão teria sido a falta de discernimento, sobretudo da
parte de pessoas de quem mais se devia esperar isso. É por isso que falo da
coruja de Minerva. Faço-o com muita reluctância porque a expressão foi
popularizada por um filósofo alemão que não é exactamente o meu ídolo, Hegel,
que no final do prefácio da sua grande obra sobre a filosofia do direito
compara a filosofia a essa coruja que só levanta vôo quando a noite se abate
sobre a terra. Minerva (ou Atenas em grego) era a deusa da sabedoria e a coruja
o seu símbolo.No parágrafo que
precede essa frase célebre, Hegel escreve algo mais profundo ainda. Ele escreve
que a razão não se compadece com aquele tipo de desespero que acha que tudo no
mundo ou é mau ou indiferente e que nada melhor se pode esperar. Ele considera
que o que honra o ser humano é a sua recusa de aceitar o que não foi
justificado pelo raciocínio. Pelo menos uma vez na vida sinto-me bem no
aconchego filosófico de Hegel, pois a maior licção que teremos de aprender
destas eleições é justamente esta: nem todos estão preparados a confiar no seu
próprio raciocínio. Quando tivermos votado no dia 15 a primeira coisa que
devemos fazer logo a seguir é trabalhar seriamente na recuperação da confiança
no nosso raciocínio. Esse será também o principal desafio enfrentado por Nyusi
e pela Frelimo se, conforme espero, os eleitores renovarem a sua confiança
neles.
Eis o texto
antigo:
“A democracia e
os seus riscos
‘A confusão é a
certeza de uma mente, sem pista de direcção’
Estas não são minhas palavras, mas sim de alguém que, muito provavelmente, não sabe o que diz. São do excelentíssimo Presidente da Guiné, Dr. Koumba Yalá. É um presidente democraticamente eleito. A citação é extraída dum livro recentemente publicado com o título pomposo de “Os pensamentos políticos e filosóficos”. Trata-se de pensamentos, para citar o próprio autor, “sem pista de direcção” e duma incoerência vergonhosa que acabam colocando a questão importante de saber se os guineenses não terão cometido um erro grave. Ou melhor ainda, será que os africanos estão suficientemente maduros para a democracia?
Estas não são minhas palavras, mas sim de alguém que, muito provavelmente, não sabe o que diz. São do excelentíssimo Presidente da Guiné, Dr. Koumba Yalá. É um presidente democraticamente eleito. A citação é extraída dum livro recentemente publicado com o título pomposo de “Os pensamentos políticos e filosóficos”. Trata-se de pensamentos, para citar o próprio autor, “sem pista de direcção” e duma incoerência vergonhosa que acabam colocando a questão importante de saber se os guineenses não terão cometido um erro grave. Ou melhor ainda, será que os africanos estão suficientemente maduros para a democracia?
O livro é uma
espécie de “best-seller” em Portugal, contudo à maneira africana: passam-se
fotocópias do mesmo no seio da comunidade africana e portuguesa que se
interessa por assuntos africanos. Não é, porém, a sede do conhecimento que está
por detrás do interesse. Todos querem se rir à custa dos guineenses. O livro
não desaponta. É duma ridicularidade perversa: em 90 páginas contendo os tais
“pensamentos”, alguns dos quais vou colocando aqui para a apreciação do leitor,
o livro cumpre várias missões. Para algumas pessoas confirma apenas a opinião
generalizada de que algo não está bem com o dirigente guineense. Para outras
confirma certos preconceitos sobre os africanos. Para outros ainda o livro
explica tudo quanto está errado naquele País.
‘Vento é o
baralho da realidade flutuante em movimento constante’. Depois do riso vem um
misto de consternação e desalento. Os “pensamentos” não são apenas ridículos
porque incoerentes. São-no também porque é difícil imaginar o que deve estar a
torturar uma mente para supor que o pobre povo guineense seja capaz de decifrar
algo tão críptico como o que o autor propõe. A leitura causa consternação
porque a Guiné já produziu cabeças excelentes: Amílcar Cabral é o exemplo
eminente, provavelmente o intelectual mais coerente do movimento nacionalista
das ex-colónias portuguesas; mais recentemente juntaram-se a ele jovens como
Carlos Cardoso e Carlos Lopes, cuja excelente produção intelectual nos ajuda a
apreciar quão aberrante esta obra é.
‘O infinito é
consciência do limite do próprio infinito, que assim se define com perfeição’. Mas
há também o desalento. Koumba Yalá não subiu ao poder por via de golpe de
estado. Não fez guerrilha. Convenceu o eleitorado guineense que era o político
mais capaz de resolver os seus problemas. Costuma-se dizer que cada povo tem os
dirigentes que merece. Os guineenses, pelo que tudo indica, merecem Koumba
Yalá. Eles estão a pagar bem caro um grande equívoco. Segundo muita gente que
passou pela Guiné recentemente, o País já deixou de existir como estado. Faz
parte dos chamados “failed states”, estados falhados. Está de rastos:
descapitalizado, desabastecido, desesperado. Embora seja evidente que os
guineenses estão a pagar bem caro a sua preferência eleitoral, é menos evidente
que essa preferência tenha sido um equívoco. O povo, num sistema democrático, não
se engana. Tal como o cliente na economia de mercado que serve de suporte às
democracias mais eficientes o povo tem sempre razão.
‘O não tempo é o tempo de não poder ser tempo, com o tempo’. Em Moçambique avizinha-se um período de eleições. O caso da Guiné pode ser altamente instrutivo para os políticos moçambicanos de boa fé que apesar de todas as tentações estão na política pelo bem do País. O eleitor raramente vota pelo País, mas sim por si próprio. Ele entrega o seu voto àquele que, mesmo contra todas as regras da cautela, lhe promete o paraíso na terra. Atravessando o nosso País um momento delicado da sua evolução democrática e socio-económica é muito natural que as eleições atraiam todo o tipo de demagogos: desde aqueles que prometem acabar com as famosas assimetrias regionais num ápice até aos que vão dar emprego a todos. Seria cego o político que não visse nesta conjuntura um excelente potencial de demagogia.
‘O não tempo é o tempo de não poder ser tempo, com o tempo’. Em Moçambique avizinha-se um período de eleições. O caso da Guiné pode ser altamente instrutivo para os políticos moçambicanos de boa fé que apesar de todas as tentações estão na política pelo bem do País. O eleitor raramente vota pelo País, mas sim por si próprio. Ele entrega o seu voto àquele que, mesmo contra todas as regras da cautela, lhe promete o paraíso na terra. Atravessando o nosso País um momento delicado da sua evolução democrática e socio-económica é muito natural que as eleições atraiam todo o tipo de demagogos: desde aqueles que prometem acabar com as famosas assimetrias regionais num ápice até aos que vão dar emprego a todos. Seria cego o político que não visse nesta conjuntura um excelente potencial de demagogia.
‘A morte do
mundo é a impossibilidade da sua morte’. Oxalá que os mais responsáveis entre
os nossos políticos resistam à tentação. A história remota e recente está cheia
de casos como o da Guiné, o que prova, de resto, que o equívoco, se equívoco
há, não é privilégio dos africanos. O mais perverso é o de Hitler na Alemanha.
George W. Bush na América é outro, embora neste caso quem paga as favas
imediatas é a comunidade internacional e não o eleitorado americano (se calhar
todo o mundo devia votar nas eleições presidenciais americanas). Não obstante,
em nenhum desses casos o povo se enganou. O povo escolheu os que, nas
circunstâncias, falaram para os seus receios, ansiedades, sonhos e fins
imediatos. É assim na democracia. É uma empresa arriscada, mas risco não quer
dizer perigo. Risco é, quando muito, um perigo calculado. A democracia vive do risco
como a forma mais segura de auscultar o povo e levá-lo consigo.
‘A beleza duma
mulher elegante, é a atrapalhação do cabrão do macaco da indochina!’. A
experiência dos sistemas políticos anteriores em Moçambique parece revelar que
foi melhor apostar no seguro. Todavia, as aparências, como diz o velho ditado,
iludem. Tanto no período colonial como no da experiência socialista o sistema
político procurou proteger-se do risco do erro do povo projectando nele as suas
próprias fantasias. O estado colonial arrogou-se a missão civilizadora ao
preço, como aliás Eduardo Mondlane com muita perspicácia observou, de só
reconhecer os africanos como pessoas na condição de estes recusarem a sua
africanidade. A Frelimo revolucionária, por sua vez, preferiu inventar um novo
povo, todo ele fundado na ideia dum “homem novo”. Ambas as opções falharam
porque não puderam manter o dedo no pulso do povo. No primeiro caso o povo
preferiu ele próprio “civilizar-se” sem a tutela colonial. No segundo caso o
povo pura e simplesmente ficou apático.
‘A mentira é o
movimento do cérebro pensante em direcção da falsidade, no seu quotidiano
contacto com a realidade objectiva’. Numa das teses menos compreendidas do
pensamento político recente Francis Fukuyama, um autor americano, defende no seu
livro intitulado “O fim da história e o último homem” a ideia de que a
democracia liberal constitui a solução final, e melhor, do problema do instinto
auto-destruidor do homem. A existência deste instinto é discutível, mas o
argumento de Fukuyama é válido, mesmo se apresentado bombasticamente e com a
convicção apodíctica típica dos americanos. A democracia liberal desenvolveu um
aparato que encoraja os governantes a manter o vínculo com o povo. Este
encorajamento implica responsabilidade e dignidade na gestão dos bens públicos.
Implica humildade e integridade na conduta pública. Implica uma governação pelo
País.
Os políticos
moçambicanos responsáveis que não querem dizer, depois da vaga de eleições, que
o povo se enganou, precisam de prestar muita atenção à experiência da Guiné. Se
bem que a alternância democrática seja salutar, ela precisa de assentar numa
base que dá ao eleitorado uma verdadeira oportunidade de decidir racionalmente.
Como bem diz Koumba Yalá, como que a confirmar que apesar de tudo os caminhos
da sabedoria são sinuosos, ‘grandeza é sentido de responsabilidade’. O seu
livro tem o sub-título ‘volume I’. Estão todos avisados.
O livro: Koumba Yalá, 2003: Os pensamentos políticos e filosóficos, Vol.I, editora escolar: Bissau”.
O livro: Koumba Yalá, 2003: Os pensamentos políticos e filosóficos, Vol.I, editora escolar: Bissau”.
Já não haverá volume
II, mas o texto continua actual em todos os sentidos.(Elisio Macamo/)
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