O ataque e ocupação a duas vilas distritais, na semana passada, foi a maior
demonstração de força de sempre por parte do grupo armado que, desde Outubro de
2017, mata e destrói no norte de Cabo Delgado.
Paolo Israel é
professor associado e director do Departamento de História na Universidade do
Cabo Ocidental, África do Sul. O estudioso segue, atentamente, a situação de
Cabo Delgado, uma província que conhece ao detalhe. Quando chamado a comentar
sobre as duas grandes incursões armadas da semana passada, o professor começou por
anotar que, na verdade, desde Janeiro de 2020, há um escalar de ataques pelos “insurgentes”,
o grupo conhecido como Ansar Al-Sunna, e localmente chamado de “Mashababus”. “Em
Janeiro, os ataques concentraram-se na aldeia de Mbau, antiga sede da Missão de
Nambudi, que se encontrava evacuada e ocupada por soldados.
Os atacantes
conseguiram derrotar um grupo de mais de 100 soldados das FADM, matando 22
destes; os mortos e feridos foram levados para Mueda. Todas as aldeias ao longo
da Estrada Nacional, que vai de Myangalewa para o cruzamento de Awasi, foram
atacadas; machibombos foram queimados e os seus ocupantes degolados. Depois foi
a vez do Instituto Agrário de Bilibiza e da Sede do Distrito de Quissanga”,
conta o historiador que, de 2002 a 2005, viveu em Muidumbe, quando pesquisava
sobre a dança Mapiko, tema da tese do seu doutoramento e, mais tarde, um livro.
Paolo Israel, com forte domínio da história e cultura de Cabo Delgado, diz que,
para compreender o significado desta intensificação das operações militares,
dois factores têm de ser tomados em
consideração.
O primeiro é a alta
probabilidade de Ansar Al-Sunna se ter afiliado ao Estado Islâmico (Daesh).
Lembra que, em meados de 2019, um sector das Allied Democratic Forces (ADF),
grupo rebelde islamita originário do Uganda, que actua no Congo Oriental, aliou-se
ao Daesh e transformou-se numa organização independente, chamada inicialmente
Madinat al Tawhid wal Muwahedeen e depois État Islamique Province Afrique
Centrale (EIPAC), da mesma forma que o Boko Haram se dividiu em duas facções,
uma das quais se aliando ao Daesh.
O historiador cita
informações, incluindo provas fotográficas, dando conta de que o Al-Sunna jurou
fidelidade ao Daesh e, especificamente, aoEIPAC, em Julho 2019. Sucede que, em
Dezembro de 2019, o ADF e o EIPAC sofreram uma derrota às mãos das Forças
Armadas da República Democrática do Congo(RDC), que tomaram uma base chamada
“Medina” na província do Kivu Setentrional.
“A hipótese é que
elementos do ADF/ EIPAC tenham fugido para Moçambique, alimentando a guerrilha
em Cabo Delgado. De facto, desde os meados de 2019, muitos dos ataques do Al-Sunna
foram reivindicados pelo Daesh, e o grupo utiliza a bandeira desta organização
nas suas operações.
A ligação foi
reconhecida num documento do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que
afirma que as operações em Cabo Delgado são dirigidas desde o Congo, e que o
Daesh mistura imagens do Congo, Moçambique e Somália na sua propaganda. Este
últi- mo facto é confirmado pela circulação, em Cabo Delgado, de fotografias
provenientes do Congo Oriental. Outra coincidência
é de o Al-Sunna ter estabelecido uma «zona libertada», também chamada Medina,
que se estende na zona costeira do distrito de Macomia, ao redor da aldeia de
Pangane e mais para norte”, refere o historiador.Para o académico, a
consequência da entrada do Daesh em Cabo Delgado não pode ser subestimada.
Destaca que o grupo tem conseguido ataques de grande envergadura, que indiciam
melhorias em equipamento, armamento, treinamento, estratégia militar e propaganda.
“Nos ataques de
Mocímboa, os homens do Al-Sunna foram acolhidos por partes da população como
libertadores; distribuíram comida e dinheirodos ATMs e foram aplaudidos”, destaca.
“Será este apenas o
reflexo do medo de uma população acostumada a aplaudir quem tem o poder de
matar? Ou será um indício de suporte real?”, questiona.
Mas depois refere
que a marginalização económica e política das populações Mwani; as fricções
étnicas entre Makonde, Makua e Mwani; a repressão exercitada nas minas de rubis
de Namanhumbir contra os garimpeiros,que até recorda a dos campos de reeducação
de outrora; a violência infligida às populações civis pelo exército na tentativa,
aliás, fracassada, de estancar a guerra; a percepção que os benefícios do gás
vão ser aproveitados por poucos, todos estes factores terão levado muitos para
os braços do Al-Sunna. Para ele, pouco importa o nome, se o grupo deve se
chamar de “insurgente” ou de “terrorista”.
“A mesma pergunta
[se insurgentes ou terroristas] se fazia nos tempos da guerra civil
protagonizada pela Renamo. O importante é entender que os dois tipos de
factores, o interno e o externo, coexistem. Por um lado, estamos face a um
grupo que já tem ligações com as redes internacionais do terrorismo islâmico.
Por outro, o grupo terá suporte de sectores locais da população muçulmana,
desiludidos com a política da Frelimo e alienados pela violência exercitada
pelo Estado”, refere o historiador, para quem qualquer intervenção que não
contemple estes dois factores, o militar e o civil, está destinada ao fracasso.
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