segunda-feira, abril 13, 2020

Fricções à resolver


O ataque e ocupação a duas vilas distritais, na semana passada, foi a maior demonstração de força de sempre por parte do grupo armado que, desde Outubro de 2017, mata e destrói no norte de Cabo Delgado. 
Paolo Israel – The Journalist 
Paolo Israel é professor associado e director do Departamento de História na Universidade do Cabo Ocidental, África do Sul. O estudioso segue, atentamente, a situação de Cabo Delgado, uma província que conhece ao detalhe. Quando chamado a comentar sobre as duas grandes incursões armadas da semana passada, o professor começou por anotar que, na verdade, desde Janeiro de 2020, há um escalar de ataques pelos “insurgentes”, o grupo conhecido como Ansar Al-Sunna, e localmente chamado de “Mashababus”. “Em Janeiro, os ataques concentraram-se na aldeia de Mbau, antiga sede da Missão de Nambudi, que se encontrava evacuada e ocupada por soldados.

Operação Nó Górdio – Wikipédia, a enciclopédia livreOs atacantes conseguiram derrotar um grupo de mais de 100 soldados das FADM, matando 22 destes; os mortos e feridos foram levados para Mueda. Todas as aldeias ao longo da Estrada Nacional, que vai de Myangalewa para o cruzamento de Awasi, foram atacadas; machibombos foram queimados e os seus ocupantes degolados. Depois foi a vez do Instituto Agrário de Bilibiza e da Sede do Distrito de Quissanga”, conta o historiador que, de 2002 a 2005, viveu em Muidumbe, quando pesquisava sobre a dança Mapiko, tema da tese do seu doutoramento e, mais tarde, um livro. Paolo Israel, com forte domínio da história e cultura de Cabo Delgado, diz que, para compreender o significado desta intensificação das operações militares, dois factores têm de ser tomados em consideração.
Paolo Israel, Ph.D. - In Step with the TimesO primeiro é a alta probabilidade de Ansar Al-Sunna se ter afiliado ao Estado Islâmico (Daesh). Lembra que, em meados de 2019, um sector das Allied Democratic Forces (ADF), grupo rebelde islamita originário do Uganda, que actua no Congo Oriental, aliou-se ao Daesh e transformou-se numa organização independente, chamada inicialmente Madinat al Tawhid wal Muwahedeen e depois État Islamique Province Afrique Centrale (EIPAC), da mesma forma que o Boko Haram se dividiu em duas facções, uma das quais se aliando ao Daesh.

O historiador cita informações, incluindo provas fotográficas, dando conta de que o Al-Sunna jurou fidelidade ao Daesh e, especificamente, aoEIPAC, em Julho 2019. Sucede que, em Dezembro de 2019, o ADF e o EIPAC sofreram uma derrota às mãos das Forças Armadas da República Democrática do Congo(RDC), que tomaram uma base chamada “Medina” na província do Kivu Setentrional.
Paolo Israel, Ph.D. - In Step with the Times“A hipótese é que elementos do ADF/ EIPAC tenham fugido para Moçambique, alimentando a guerrilha em Cabo Delgado. De facto, desde os meados de 2019, muitos dos ataques do Al-Sunna foram reivindicados pelo Daesh, e o grupo utiliza a bandeira desta organização nas suas operações.
A ligação foi reconhecida num documento do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que afirma que as operações em Cabo Delgado são dirigidas desde o Congo, e que o Daesh mistura imagens do Congo, Moçambique e Somália na sua propaganda. Este últi- mo facto é confirmado pela circulação, em Cabo Delgado, de fotografias provenientes do Congo Oriental. Outra coincidência é de o Al-Sunna ter estabelecido uma «zona libertada», também chamada Medina, que se estende na zona costeira do distrito de Macomia, ao redor da aldeia de Pangane e mais para norte”, refere o historiador.Para o académico, a consequência da entrada do Daesh em Cabo Delgado não pode ser subestimada. Destaca que o grupo tem conseguido ataques de grande envergadura, que indiciam melhorias em equipamento, armamento, treinamento, estratégia militar e propaganda.
 “O risco concreto é que Moçambique se torne num dos epicentros de actuação do jihadismo internacional,tal como a Nigéria ou o Lago Chade”, alertou, justificando que Cabo Delgado seria o centro deste interesse porque, em geral, o terrorismo islâmico procura intervir em sítios que apresentam duas características: investimentos do capital internacional, que garante visibilidade; e uma população muçulmana descontente e marginalizada.O que, para o professor, leva ao segundo factor desta guerra: o factor local.
Moçambique : Cinco mortos em novo ataque em Macomia“Nos ataques de Mocímboa, os homens do Al-Sunna foram acolhidos por partes da população como libertadores; distribuíram comida e dinheirodos ATMs e foram aplaudidos”, destaca.
“Será este apenas o reflexo do medo de uma população acostumada a aplaudir quem tem o poder de matar? Ou será um indício de suporte real?”, questiona.
Mas depois refere que a marginalização económica e política das populações Mwani; as fricções étnicas entre Makonde, Makua e Mwani; a repressão exercitada nas minas de rubis de Namanhumbir contra os garimpeiros,que até recorda a dos campos de reeducação de outrora; a violência infligida às populações civis pelo exército na tentativa, aliás, fracassada, de estancar a guerra; a percepção que os benefícios do gás vão ser aproveitados por poucos, todos estes factores terão levado muitos para os braços do Al-Sunna. Para ele, pouco importa o nome, se o grupo deve se chamar de “insurgente” ou de “terrorista”.
Paolo Israel, Ph.D. - In Step with the Times“A mesma pergunta [se insurgentes ou terroristas] se fazia nos tempos da guerra civil protagonizada pela Renamo. O importante é entender que os dois tipos de factores, o interno e o externo, coexistem. Por um lado, estamos face a um grupo que já tem ligações com as redes internacionais do terrorismo islâmico. Por outro, o grupo terá suporte de sectores locais da população muçulmana, desiludidos com a política da Frelimo e alienados pela violência exercitada pelo Estado”, refere o historiador, para quem qualquer intervenção que não contemple estes dois factores, o militar e o civil, está destinada ao fracasso.

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