O maior risco de
saúde pública em África não é a Covid-19, mas as consequências das medidas
regionais e globais destinadas a reduzir o seu efeito na saúde pública. A
análise de custo/benefício dessas medidas, em África, produz um resultado
diferente daquele que produz na Europa, nos Estados Unidos e em grandes partes
da Ásia. De longe, o maior factor de risco para a Covid-19 sério – crítico ou
fatal – é a idade. O “Worldometer” estima que a taxa de mortalidade de casos
entre os 10 e 30 anos é de 0,2%. Já para os indivíduos com menos de 10 anos, a
taxa de mortalidade é de 0,0%.
Um artigo recente,
publicado no “The Lancet”, estimou uma taxa de mortalidade de 0,32% em pessoas
com menos de 60 anos, e de 6,4% para pessoas acima dessa idade (60 anos). Na
África do Sul, em média, as pessoas morrem antes dos 60 anos e apenas 3% da
população tem mais de 65 anos. A idade média em África é de 18 anos, enquanto
na Europa é de 42. África é, de longe, o
continente mais jovem do mundo. Devemos
então perguntar se as nações africanas (incluindo a África do Sul) têm tantos
motivos para temer a Covid-19, quanto às regiões onde grande parte da população
é mais velha. Um estudo influente, do Imperial College London, mostra que os
benefícios da mitigação, considerando apenas a idade, são consideravelmente
mais baixos para a região da África Subsaariana do que em qualquer outro lugar
do mundo. Os autores são peremptórios em apontar outros factores que podem
neutralizar esse efeito, porém, nesse ponto, estaríamos apenas especulando. Pesquisas recentes mostram que o HIV está
muito pouco correlacionado com o risco de se contrair a Covid-19, confundindo
assim suposições fáceis. E, como se sabe, especulações não podem orientar
políticas. Mas a evidência mostra claramente um forte gradiente de risco com
relação à idade.
O “lockdown”
(bloqueio) tem repercussões imediatas para indivíduos que vivem “com o mínimo”
e suas respectivas redes de dependentes. Se as pessoas não têm o que comer,
naturalmente não obedecerão a um bloqueio; nem existe razão, prática ou moral,
para que o façam. Além disso, há consequências menos imediatas: desaceleração
económica, o que significa mais pessoas abaixo da linha da pobreza. Após a crise
financeira de 2008, havia mais de cinco milhões de crianças famintas do que o
que tem sido habitual. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF)
estima que as medidas tomadas contra o Ébola (uma doença muito mais grave), em
áreas afectadas, causaram cinco mil mortes de crianças.Depois de 2008, os
suprimentos médicos apoiados pela ajuda internacional esgotaram-se. No fundo, a
recessão não é apenas uma questão de queda dos preços dos imóveis e das pensões
decepcionantes. É uma questão de vida e/ou morte. Quando impomos o “lockdown”,
estamos, no fundo, a fazer uma escolha: estamos a salvar a vida de algumas
pessoas mais velhas e a causar a morte de outras (pessoas) mais jovens,
especialmente de crianças, que correm maior risco de desnutrição e doenças
relacionadas com a pobreza.
Talvez até seja a coisa certa a fazer.
Mas quando falamos
em salvar vidas, devemos levar em consideração a vida que levamos. Os números
“líquidos” são os que contam. Será que a comunidade global pode realmente ter
entendido tudo errado? Será que os líderes regionais foram tão mal
aconselhados? Por que será que estamos a levar a Covid-19 tão seriamente, se a
ameaça é muito menos séria aqui (em África) do que em outros lugares, e os
custos do “lockdown” são muito maiores?
Stefan Swartling
Peterson, um director do departamento de Saúde da UNICEF, tem uma teoria.
"A Covid-19 agora realmente nos assusta", diz ele. “A diferença, para
mim, é que isso pode afectar as pessoas com poder, especialmente o de
comunicação, mais do que as pessoas pobres que sempre foram morrendo." No
entanto, dado o aparente consenso internacional e a necessidade de demonstrar
uma liderança forte, os líderes da região têm poucas alternativas políticas.
Mas por mais “compreensível” que seja a posição dos líderes africanos, mais
ainda deve ser a dos residentes do continente. Muitos enfrentam ameaças mais
graves e imediatas à vida – principalmente no que se refere à pneumonia – do
que o mecanismo pelo qual a Covid-19 mata.
A insuficiência
respiratória, causada por uma infecção bacteriana ou viral, é a maior causa de
morte no continente. A Covid-19 pode aumentar esse risco, mas não é algo para
reter as pessoas em casa, e não é preferível a fome causada pela recessão. Deveríamos
preocupar-nos mais com o aumento do risco da pneumonia fatal do que a Covid-19,
em África, se também não aumentasse o risco dessa doença atingir
primeiros-ministros, empresários e professores universitários, incluindo
aqueles em países onde a doença e seus terrores têm “interesse histórico”
apenas?
Não fiquemos
apenas vaticinando que a Covid-19 será a doença que mais pessoas matará. De
longe, a doença mais perigosa da história humana é a malária, evitável com
redes mosquiteiras. Quase ninguém morre
de parto nos países desenvolvidos, e poucas crianças morrem de pneumonia. Mas
em países em desenvolvimento, segundo a UNICEF, cinco milhões de crianças
morrem todos os anos devido à pneumonia, malária e complicações no parto.
Na verdade, nós
não nos preocupamos com a Covid-19 por causa de “como ela mata”, mas sim por
causa de “a quem ela mata”. Apesar da análise de custo/benefício notavelmente
diferente para a África, estamos fazendo a mesma coisa aqui, como em qualquer
outro lugar. Ou pelo menos, estamos tentando: estamos a implementar o
“lockdown”. E não é preciso pensar muito para perceber que não estamos
efectivamente a fazer um verdadeiro “lockdown”, dado que as pessoas vivem
“apinhadas” e em locais onde o saneamento mais próximo é (geralmente) uma casa
de banho compartilhada, distante da sua “cabana”, especialmente nas áreas
rurais.
Existe uma alternativa ao “lockdown”?
Sim: que se faça “lockdown” em áreas (países)
onde tal faça sentido, e onde maior parte da população é envelhecida. Não se
faça onde é impossível fazê-lo. A
quarentena pode ser uma medida mais eficaz em África, onde os aglomerados
populacionais são separados por grandes distâncias. Os benefícios da separação
das populações em risco também merecem uma consideração mais completa.Em África
e noutras regiões em desenvolvimento, os idosos muitas vezes mudam-se
(retornam) das áreas urbanas para as áreas rurais. Nas aldeias rurais, pode ser
possível separar pessoas mais velhas e mais jovens com mais facilidade do que
num município ou num subúrbio, onde implementar-se o “lockdown” é um absurdo.
Esta não é uma
ideia minha, mas sim sugerida por líderes de uma aldeia, numa zona rural de
África. E isso só vem comprovar uma coisa – é necessário questionar às pessoas,
para se poder encontrar soluções. Só elas sabem como resolver os seus
problemas, por si mesmas. As pessoas que vivem numa comunidade conhecem o seu
modo de vida. É hora de os líderes africanos, e especialmente os da África do
Sul, rodearem-se de conselheiros que estejam cientes das diferenças existentes
entre África e os outros lugares onde o “lockdown” foi concebido, lugares esses
que estão capazes e dispostos a fazer face a todas as consequências – não
apenas a morte por Covid-19 – e a toda a gama de medidas.
(*O Professor Alex
Broadbent é Professor de Filosofia na Universidade de Joanesburgo. Os seus
livros incluem “Filosofia da Epidemiologia” e “Filosofia da Medicina”).
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