Finalmente, fizeram-lhe (ao Presidente da República) esta
pergunta (desajeitada, como muitas delas): "Acha que, para os
moçambicanos, merece mais um mandato?" (a pergunta devia ser: "porque
acha que deve ser re-eleito?"). A resposta: "Mas por que quer que eu
dê cábula aos meus adversários? Deixa lá as coisas vão acontecer, a mesma
fórmula mágica de sobreviver com dificuldades, vamos trazer outra".
Confesso que aqui fiquei com forte impressão de que a
transcrição não tivesse sido bem feita. Dum modo geral, contribuiu muito para a
pobreza da entrevista a qualidade das perguntas (dum modo geral péssima porque
não obedeceu a nenhum fio condutor, mas sim à necessidade que o entrevistador
parecia ter de colocar "perguntas difíceis" para vincar a sua
independência; não parecia ter ideia do que queria partilhar com os seus
eleitores, se queria mostrar o Presidente como pessoa, como estratega, como
fazedor, etc.; nada! foi apenas um encadeamento de perguntas). Um jornalista
amigo confidenciou-me que ficou com a impressão de as perguntas do entrevistador
terem sido editadas, mas as do Presidente não. Parece-me fazer muito sentido.
De qualquer maneira, escrevi (Elísio Macamo) um texto, também em janeiro de 2015, sobre
este hábito de fazer o mesmo por não saber fazer doutra maneira:
"Na falta do melhor
Os primeiros dias dum governo são interessantes. Tenho estado
a acompanhar o nosso com algum interesse (aquelas dores de cotovelo…). Alguns
pronunciamentos, senão todos eles, dos novos governantes fizeram-me recuar no
tempo. Lembrei-me do meu avô materno que era curandeiro. Só tinha um remédio
que servia para todas as doenças. Chamava-se “nthla-nthla ngati” (tradução
literal: dilui ou liberta o sangue). O remédio consumia-se aos litros. Até dá
volta no meu estômago só de pensar nisso. Quem se sentir tentado a rir por achar
o meu avô curioso vá com calma, por favor. Ele não foi diferente dos europeus,
uns 100 anos antes dele, que também tinham esta obsessão com o sangue. Nos
meados do século XIX a França chegou a importar 40 milhões de sanguessugas que
eram utilizadas nas famosas sangrias, o principal método de curar doenças
durante 2000 anos… A ideia era simples. A doença tinha a ver com o equilíbrio
dos líquidos do corpo (bílis, muco e sangue) que se restabelecia sugando o
sangue do doente. Milhares de europeus morreram desta forma às mãos dos
descendentes de Hipocrates, sobretudo barbeiros. E o curioso é o seguinte: não
é que eles não tivessem consciência de que na maior parte dos casos esse método
de cura fosse uma autêntica perca de tempo. Tinham. Mas não conheciam nenhum
outro método melhor.
E isto traz-me de volta ao novo governo. Sistemas complexos –
e o corpo humano é um sistema complexo – têm o condão de nos encorajar a
desenvolvermos teorias que não abandonamos de qualquer maneira sem que haja uma
melhor. Ficamos reféns das velhas maneiras de fazer coisas. Ouvi vários
depoimentos dos novos governantes. O da educação diz que as suas prioridades
consistem em colocar carteiras nas escolas e pagar os salários em atraso; o da
ciência e tecnologia diz que a sua prioridade é de constituir o ministério,
depois reconverter os desistentes da universidade para o ensino
técnico-profissional e depois ajudar as universidades privadas a terem o mesmo
nível da UEM, o do interior diz que vai reduzir a criminalidade e os acidentes
de viação, o da terra diz que vai ajudar o povo a produzir riqueza a partir
dessa importante conquista e a governadora de Gaza – que esse traidor do Jaime
Langa já começou a bajular – diz que ainda vai conhecer a província, repetindo,
na verdade, a exortação do seu chefe feita a todos os governadores para
primeiro irem conhecer as suas províncias e aprenderem do povo, o novo patrão.
Etecetera.
Tudo isto dito 40 anos após a nossa independência.
Praticamente o mesmo discurso de sempre. Há 40 anos que os nossos governantes
são nomeados para irem “ganhar experiência” ou “resolver os problemas do povo”.
Antes que seja mal-entendido e que o texto seja compartilhado efusivamente
pelos que normalmente me consideram desvairado, apresso-me a dizer o seguinte:
é bom aprender e é bom se preocupar com a sorte do povo. Mas governar devia ser
mais do que isto. Dum governante, não importa o sector, nem a sua experiência,
nem a sua formação, devíamos ouvir muito mais do que este tipo de lugar-comum.
Colocar carteiras nas escolas, aumentar a segurança, pôr a terra a produzir
riqueza, etc. é o que realmente deve acontecer. Mas o mais interessante, pelo
menos para mim cá do conforto da minha mesa de trabalho, é saber qual vai ser a
estratégia e porquê essa estratégia. E a razão é simples. Os seus antecessores
também deviam ter logrado isso. O que é que se passou? Mudaram de prioridades
ao meio do caminho, ou a estratégia por eles determinada falhou ou ainda não
surtiu efeito?
E com isto volto à sangria. Os médicos primeiro cortavam uma
artéria do braço e deixavam o sangue brotar, assim meio litro, até o doente
desmaiar. No dia seguinte repetiam a mesma operação várias vezes até não sair
mais sangue. Depois colocavam um frasco de vidro com ar quente sobre a ferida.
À medida que o ar arrefecia criava um vácuo que espremia mais sangue.
Finalmente, colocavam as importações francesas (as sanguessugas) na ferida que
se refastelavam até nem mais. Ao fim de três meses o doente recebia alta, vivo
ou morto. Mais morto do que vivo. Por falta duma teoria melhor para abordar um
problema complexo.
E repito: não estou a criticar (apesar de estar). Eles estão
a agir de acordo com o que sabem e na melhor das intenções. Portanto, o que
estou a dizer é que se queremos mesmo que os nossos governantes sejam melhores
teremos que os interpelar a um outro nível. Não ao nível dos resultados finais
que eles deviam alcançar, mas sim ao nível do que eles pretendem fazer para
alcançar esses resultados. Seria por aí que a discussão iria animar. É claro
que quem aborda os assuntos politicamente vai sempre chamar a atenção dos
governantes para os resultados. E isso é legítimo, ainda que não seja tudo. Mas
se queremos ser mesmo parte do processo – já que fomos declarados patrões –
devemos interpelar os nossos governantes a um outro nível. E recusarmo-nos a
ecoar declarações, em minha opinião, vazias de sentido. Carteiras, sim, menos
crime, sim, riqueza da terra, sim, melhor formação, sim, mais conhecimento da
província, sim, mas COMO e porquê ASSIM?
É a falta deste tipo de interpelação que leva muita gente a
pensar que também pode governar, basta fazer uma lista enorme dos resultados
que espera alcançar. E é isso que empobrece a nossa política".
0 comments:
Enviar um comentário