A decisão de Michael Masutha, o ministro sul-africano
(cessante) da Justiça e Desenvolvimento Constitucional, que coloca o nosso
antigo ministro das Finanças, Manuel Chang, na rota de Maputo e não de uma
penitenciária de Brooklyn, em Nova Iorque, ainda não pode ser considerada como
um dado definitivo.
Seria definitivo se Chang fosse metido esta manhã num avião
e trazido a Maputo, evitando-se assim qualquer possibilidade de recurso por
parte da Justiça americana junto do Tribunal Supremo da África do Sul. Se isso
não acontecer – se Chang não ser trazido imediatamente – é bem provável que os
americanos usem da sua última janela de oportunidade: esse recurso junto do
Supremo sul-africano, complicando as coisas para os defensores da extradição
para Moçambique, nomeadamente toda a trupe que já está a celebrar.
Ontem, o “press release” de Masutha, dando conta da sua
decisão de extraditar Chang para Moçambique surpreendeu meio mundo. Uns abriram
seu “moets” com caviar; a plebe soltou gemidos de dor, gritos de revolta.
“Carta” chegou à conversa com um dos advogados de Manuel
Chang, Rudi Krause. Ele disse que ainda não tinha sido notificado da decisão. O
“press release” também não constava do site do Ministério sul africano. Nada
que apontasse para “fake news”.
A decisão suscita, no entanto, algumas interrogações. Um
analista político sul-africano comentou para a “Carta” que a decisão de Masutha
era tremendamente estranha, uma vez que coloca Pretória em rota de colisão com
Washington em matéria de cooperação judiciária internacional, sem tirar os
méritos do pedido de extradição de Maputo.
Mas a decisão de Masutha também foi colocada em contexto.
Ele, um dos últimos resquícios de Jacob Zuma no anterior governo de Cyril
Ramaphosa, está de malas aviadas. “Não é alguém que tenha um futuro brilhante e
pode ter usado este caso para fazer um grande pé-de-meia”, comentou o analista.
Uma sugestão de que a decisão tenha sido comprada (vendida). Na RAS isso não
surpreenderia, tanto mais que Ramaphosa, que segue vendendo sua cartilha
anti-corrupção, continua amarrado num colete de forças dentro do Conselho
Nacional do ANC. Isso explica a ascensão da antiga Ministra das Relações
Exteriores, Lindiwe Sisulo, para a vice-Presidência da RAS.
O actual governo de Ramaphosa reflecte, pois, os dois
campos do ANC: o dele, Ramaphosa, mais progressista e anti-corrupto, e o de Ace
Magashule, mais “racialista”, esquerdista e radical. Masutha pode ter usado
essa clivagem para tomar uma decisão que não seria do agrado de Ramaphosa
(pelos danos que causam à imagem externa de Pretória, sobretudo no contexto da
sua mobilização por investimento estrangeiro) mas que se encaixa nos quadros
mentais de Sisulo e toda esse corte de radicais do ANC (Sisulo, nos últimos
anos, como Ministra, mostrou seu anti-americanismo convicto, defendendo Nícolas
Maduro nas Nações Unidas e colocando a África do Sul na rota de colisão com
Israel).
A decisão de Masutha deve ser olhada, pois, dentro deste
prisma: há no Governo sul-africano e dentro do ANC quem vai sempre usar suas
armas para colocar Cyril Ramaphosa numa saia justa. As próximas horas (ou dias) serão fundamentais para se
perceber melhor se a decisão de Masutha é definitiva. Isso dependerá da reação
da Justiça americana, e de uma reação imediata, contestando-a. Se isso não
acontecer, então a via para Chang estará totalmente aberta. E se ele regressar
ainda hoje a Moçambique, pode evitar o recurso americano.
Uma ausência de recurso americano poderá suscitar outras
leituras: a de a decisão de Masutha ter sido negociada entre os três países.
Recordam-se de Tanveer Ahmed? O paquistanês que Moçambique decidiu, na semana
passada, extraditar para o Texas? Ele pode ter sido uma moeda de troca?
Ahmed tinha sido corruptamente ilibado por um tribunal de
Cabo Delgado, em Janeiro, mas foi logo capturado por solicitação americana e
trazido a Maputo. O Tribunal Supremo decidiu na semana passada pela sua
extradição para os EUA mesmo sem acordo de extradição entre os dois países. O
Supremo tomou a decisão com base na Convenção das Nações Unidas sobre Tráfico
Ilícito de Drogas e Substâncias Psicotrópicas (é inusitado a justiça
moçambicana tomar decisões legais com base em convenções, mas neste caso foi
assim. Porquê?).
E foi interessante o “suspense” criado na véspera da
leitura da sentença do caso. Também foi interessante uma declaração pública de
oficiais americanos, semanas antes, segundo as quais Whashington não descansaria
sem ver Tanveer Ahmed em solo americano. Terá sido ele o “quid pro quo” para a
vinda de Chang para a casa? Será Tanveer, considerado um barão da droga, mais
perigoso para a América que um ministro corrupto que alegadamente lesou umas
dezenas de cidadãos americanos? É provável.
Um analista da RAS descarta a hipótese de negociação
tripartida, alegando que Maputo não tem essa capacidade, suficiente “leverage”,
mesmo apesar do gás do Rovuma. É uma leitura. Mas o regresso de Chang para
Maputo só pode ser prejudicial para a justiça americana num aspecto: o
ex-Ministro das Finanças era apenas um peão para um objectivo mas estratégico
dos EUA, nomeadamente o de recolher evidências para atingir o Credit Suisse,
enfraquecendo o banco suíço como um dos “playermakers” das finanças globais.
Detelina Subeva percebeu isso e deslocou-se voluntariamente a Nova Iorque e já
se considerou culpada, tendo obtido liberdade sob caução nos EUA.
Por último: a perspectiva de Chang regressar a Moçambique é
uma vitória para o regime do dia, que andava nervoso com a possibilidade da sua
extradição para os EUA e o potencial de danos que isso acarretava na
eventualidade de uma delação do antigo Ministro. A lista dos negócios de Chang
e seus associados em Moçambique é enorme e estava tudo em pulgas com a sua
eventual extradição para os EUA.
Mas, para o grosso da opinião pública, a vinda de Chang é
uma grande tragédia em dó maior, melodia pungente que fermenta um sentimento
profundo de injustiça e a Frelimo vai ser certamente penalizada por isso. (Marcelo Mosse)
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