segunda-feira, maio 20, 2019

A grande entrevista (2)


Continuo aqui, desta feita com um excerto sintomático da Grande Entrevista. A uma pergunta sobre que estratégia o governo tem para o sector da agricultura, a resposta foi esta: "Não sei se diria estratégia, porque toda a gente, quando não sabe fazer uma coisa, diz que falta estratégia. O que é isso de estratégia, é um pouco relativo..."
Num post de janeiro de 2015 abordei o problema por detrás desta perplexidade. Tem a ver com a dificuldade que ainda temos com a noção de competência técnica e quem a deve ter. Não é o Presidente. O Presidente precisa de pensar estrategicamente... Só isso.
Deixei um dos meus telefones ligados durante o fim-de-semana, mas nada. Não tocou. Ou melhor, Nyussi não ligou. Fiquei mais consternado ainda quando vi a lista dos governadores provinciais esta manhã e notei que Gaza vai ter novo governador, e não serei eu. Bom, mais uma pessoa cujo trabalho vou sabotar com prazer… mas prontos, estou livre de falar como me der na gana. E tenho muita vontade de o fazer a propósito do novo elenco governamental. Há muito que se diga a seu respeito. Os comentários que vejo por aí dão mais destaque à questão da competência técnica duma boa parte dos novos membros do governo. Curiosamente, a competência técnica é o que o país menos precisa ao nível do governo. Sei que entre nós se venera muito esta ideia. Há pessoas que até ficam com os olhos vidrados quando dizem “fulano de tal é competente!”.
Vejo duas razões que chumbam este critério. A primeira é que um governo não é uma equipa técnica. A equipa técnica está no aparelho do Estado. É lá onde precisamos de pessoas tecnicamente competentes. Um governo é um conjunto político, cuja principal função é de definir objectivos políticos e lográ-los tendo em conta todos os interesses diferentes que fazem uma sociedade. Não basta ser engenheiro civil para ser bom ministro das obras públicas; não basta ser médico para ser bom ministro da saúde; não basta ser jovem para ser bom ministro da juventude; nem basta ser bom homem de negócios para ser bom ministro das finanças, da economia ou da terra. Este é um dos nossos maiores equívocos analíticos, creio. Um ministro só será bom ministro se for bom político e tiver uma boa dose de senso comum. Competência técnica nunca fará bom ministro, mesmo em sistemas autoritários. A segunda razão que chumba o critério é lógica. A competência técnica sempre se refere a uma área específica. Logo, um excelente cirurgião pode ter graves lacunas ao nível de questões ligadas à medicina preventiva, por exemplo. Ou um engenheiro civil pode saber armar betão, mas não entender patavina de andaimes. Portanto, mesmo que alguém fosse tecnicamente competente em alguma coisa, o ministério que vai dirigir consegue sempre ser muito maior do que as suas competências. Não há curso universitário para a área de juventude e desportos, ou mar, águas interiores e pescas, nem mesmo para educação e desenvolvimento humano. Nem mesmo em universidade privada. Quando muito há talvez num seminário qualquer da sociedade civil.
Portanto, acho engraçado que alguma discussão sobre o novo elenco insista sobre isto. Tenho um palpite, contudo. O meu palpite é que a nossa paixão pela competência técnica venha de dois legados pesados. O primeiro é o do Estado socialista com a sua ênfase no papel “dirigente” do Estado. É uma herança ambígua, pois o que a Frelimo dizia na altura era que o partido é que orientava tudo (portanto, reconhecia que a política é que mandava), mas ao mesmo tempo chamava ao Estado toda a tarefa de resolver todos os problemas do país, reduzindo desse modo tudo a um problema técnico. Samora Machel morreu com este nó na garganta. 
Aquela famosa Ofensiva Política e Organizacional que ele empreendeu na vã tentativa de reclamar a primazia da política estava desde logo condenada ao fracasso justamente porque toda a sua concepção de Estado tornava a política supérflua, o que criava espaço para que a tecnocracia assumisse cada vez mais o controlo das coisas. O segundo legado, sempre actual, é o da indústria do desenvolvimento com o seu discurso de solução de problemas que idealiza e romantiza as circunstâncias em que a própria Europa “se desenvolveu”. Quando exaltamos a “competência técnica” estamos, no fundo, a repetir este discurso inócuo que serve também para criar as condições de reprodução da indústria que está na base do discurso. Estamos em 2015. Não sei o que vão dizer agora em relação ao não cumprimento dos famosos objectivos do milénio e a redução pela metade de todo o problema que legitima a intervenção desses sabichões nas nossas vidas. Estou bem curioso.
Se a competência técnica não é o que está em causa, então o que está? Política, de novo. Só política. Por exemplo, eu acho que o governo ora formado suscita mais interrogações do que respostas e, por isso, não percebo os encómios que ele está a receber. Nem mesmo o facto de os G-40, essa “fata morgana” de muito aspirante a analista, não terem sido contemplados – repare-se que quem sempre disse que eles queriam ser nomeados ministros foram os seus críticos, não eles; rir-se deles por não terem sido contemplados é, no fundo, rir-se da própria piada – pode explicar este entusiasmo. Para já ele não deixa antever uma estratégia clara de abordagem de Moçambique. Parece um governo de gestão, mas no sentido normal do termo, o que no fundo até vai de encontro ao manifesto eleitoral do partido Frelimo. Tem ministérios com várias áreas cinzentas que na melhor das hipóteses vão conduzir a interessantes sinergias, mas na pior das hipóteses vão ser apenas razões para atritos que vão desgastar o executivo. Vejo isso em relação à agricultura, mar, águas interiores e pescas, terra, ambiente e desenvolvimento rural e ainda obras públicas, habitação e recursos hídricos. Gerir isso exige competência política, não técnica, e não sei se essa competência política existe. Vejo mais zonas de choque entre outros ministérios, mas vamos esperar para ver. 
Notei também que estão incluídas no governo pelo menos duas pessoas que fizeram parte da equipa eleitoral de Nyussi. Refiro-me a Celso Correia e a Osvaldo Petersburgo. Não conheço o seu desempenho pessoal, mas tenho em mim que pessoas que fizeram este tipo de percurso com o eleito deviam fazer parte da sua equipa de assessores para que ele tenha sempre uma retaguarda. Funções executivas desgastam e é possível que ele se veja obrigado a demitir essas pessoas. Sem elas no governo, e fora, corre o risco de não ter o tipo de apoio que ele vai precisar para sobreviver a gestão do governo e do partido que vai ser tudo menos fácil. Isto é tanto mais importante quanto ele vai precisar de alguém bem forte para a tarefa de secretário-geral do partido, uma pessoa inclusivamente com estatura para o substituir no futuro. Aqui também, ainda que seja um pequeno detalhe, vejo mais motivos para franzir o sobrolho do que para estar esperançoso. 
Por isso, penso que a discussão do que nos espera nos próximos cinco anos deveria também incidir sobre a nossa obsessão com “competência técnica”. O problema de ver tudo como um problema técnico é, para usar um termo pesado, epistemológico, isto é do pelouro da teoria do conhecimento. Para que essa visão vingue é necessário partir do pressuposto segundo o qual o mundo (natural e social) obedeceria a leis facilmente enunciáveis e que se reduzam a relações de causa e efeito. Um mundo perfeito, portanto. É uma ilusão, a ilusão da perfeição que tem vindo a ser um entrave muito grande à civilização política do nosso país". (Por Elísio Macamo in facebook)

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