Perguntaram ao Presidente se a vida dos moçambicanos melhorou nos
últimos anos (pergunta, de resto, estúpida, pois a questão não é se o
Presidente acha que a vida melhorou, mas se acha que deu as melhores respostas
para os problemas enfrentados pelo País). Mas, bom, a resposta foi mais ou
menos esta:
"...
não sei se há uma outra desgraça que vai acontecer neste país do que aquilo que
aconteceu nesses quatro anos e meio. Eu estava a tomar posse, no dia que eu
estava a tomar posse, estava a partir-se tudo na zona de Mocuba, centro do
país. Depois seguiram-se secas e depois veio a guerra que matou pessoas e
depois o dinheiro que não entra, enfrentamos problemas de
financiamento...".
Escrevi (Elísio Macamo) um texto em janeiro de 2015 sobre este assunto:
"Matar até morrer…
A minha lista de inimigos deve ter aumentado significativamente nos
últimos tempos por andar a distribuir dicas onde ninguém pediu por elas. Não me
importo. Também é a última dica. Por enquanto. Estou a pensar em mais uma coisa
que gostaria que fosse tomada em consideração pelo novo governo. É, na verdade,
um princípio: se não és parte da solução, és parte do problema! É um princípio
muito drástico, e geral, mas oportuno. Recebo os boletins da AIM e arrumo-os
num cantinho até um dia precisar de alguma informação. Por vezes, porém, os
meus olhos caiem sobre uma notícia quando abro o meu correio electrónico de
manhã. E foi o que aconteceu antes de ontem. Deparei com uma notícia com o
título “chuvas no centro e norte matam 84 pessoas numa semana”, cuja parte
inicial transcrevo aqui:
“As chuvas torrenciais que têm estado a fustigar as regiões
centro e norte de Moçambique causaram a morte 84 (sic) pessoas na semana
passada, (sic) em diversos distritos das províncias afectados (sic), com maior
incidência na Zambézia onde o número cumulativo é calculado em 62 casos. A
maioria das vítimas sucumbiu (sic) na sequência do arrastamento pelas águas,
descargas atmosféricas, desabamento de casas, esta última (sic) que deixou
milhares sem-abrigo para além de terem (sic) perdido todos os seus
pertences”.
Há uma coisa que não está bem nesta notícia e não é nem gramatical,
nem nada disso. Bom, é gramatical, mas num sentido figurado. Não tem sujeito da
acção. Tem predicados e complementos directos e indirectos, mas não tem
sujeito. Ou melhor, o sujeito que tem não devia ter. Está errado e só espero
que o novo ministro da educação para além de colocar carteiras nas escolas
também reforce o ensino da gramática política. Num país civilizado e com um sistema
político democrático, com todas as irregularidades que possa ter, intempéries
como chuvas nunca podem ser o sujeito da acção. Nunca, ou melhor, uma sociedade
responsável não pode deixar que sejam. Num país civilizado, e Moçambique é um
país civilizado, o título da notícia devia ser, colocado de forma neutra e
inofensiva, “falta de mecanismos de protecção contra as intempéries causa a
morte de 84 pessoas”. Melhor ainda: “inoperância das estruturas de gestão das
calamidades aumenta a vulnerabilidade da população”. Eu sei que parece título
de jornal independente, mas não é bem isso. É responsabilização. A existência
dum Estado implica, teoricamente, que tudo quanto se passa no seu interior
passa-se por sua comissão ou omissão. Naturalmente que há coisas que
ultrapassam mesmo o Estado mais poderoso do mundo. Mas mesmo isso, quando
acontece, precisa de ser equacionado com o que devia ter sido feito, mas não
foi feito, e o que deve ser feito para que não aconteça mais ou para que o
impacto não seja tão nefasto.
Portanto, estou de novo a convocar o nosso sentido crítico. Não
estou a dizer que o governo é responsável pelas fatalidades registadas, nem
estou a dizer que devia ter feito isto ou aquilo. Estou a dizer que se queremos
uma verdadeira mudança no país devemos (nós mesmo) insistir num outro tipo de
interpelação, uma interpelação que procure responsabilizar. A chuva não mata. A
falta de medidas de prevenção é que mata. A responsabilidade pode ser
individual ou colectiva, isso pouco importa agora. O que importa é que nenhuma
pessoa que toma a sério a sua condição de cidadã use a chuva como sujeito de
oração política. Não devia ser. Agora, há uma razão, se calhar psicológica, que
nos impede de ver as coisas desta maneira. Se uma pessoa ao meu lado cai da ponte
da Catembe (em construção…) e morre sem que eu me mexa, ou se eu empurro essa
pessoa e morre, o resultado, em ambos os casos, é o mesmo. Mas damos mais peso
moral ao acto de empurrar a pessoa (portanto, em que somos activos no
resultado) do que à passividade (onde somos omissos). Parece haver uma
tendência, se calhar em todas as sociedades, de encolher os ombros perante a
passividade do que perante a intervenção activa. Pode ser que o mesmo mecanismo
esteja em acção quando as pessoas morrem em resultado de chuvas torrenciais num
contexto em que ninguém tomou medidas de prevenção. Só nos iríamos sentir mal
se assim que começasse a chover as autoridades usassem aquele poder enorme que
têm para direcionar as chuvas contra as casas dos mais pobres e desviar as
torrentes para os pontos que mais iriam afectar esses pobrezinhos. Aí sim
diríamos que as autoridades são responsáveis pelas mortes. Se não mexerem
dedinho que seja, a culpa é da chuva.
Dei à reflexão um título xangan, nomeadamente “ku mudhlaya afa”. É
dum sentido filosófico muito profundo. Um Matxangana (e suspeito que seja assim
com todo o “bantu”) não mata simplesmente. Mata até alguém morrer. Tem a
intenção, tem o acto e tem o resultado. Só assim a ideia está completa e fica
gramaticalmente correcta. E não é preciso nenhuma carteira para entender essa
ideia".
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