terça-feira, maio 21, 2019

Enfim...ok...%...quo...sanidade social

Há uns seis anos, dois supostos amigos meus, um académico e outro político, chamaram-me aprendiz de feiticeiro e intelectual de capelinha (não sei o que isto quer dizer) por tentar colocar a questão da dívida pública e, por consequência, das estruturas produtivas, das receitas e das despesas no topo da agenda do debate politico pré-eleitoral. A minha questão era simples - nenhum manifesto eleitoral teria credibilidade se não considerasse o estado da economia como ponto de partida para acção e se não respondesse seriamente ao desafio da dívida e dos padrões de receita, despesa e produção. Na altura, o meu amigo, o saudoso Manuel Sumbana, e eu sugerimos fazer uma série de debates entre concorrentes para discutir estas questões a sério. Fomos chamados agentes da oposição (nunca percebi porquê, nem porque se usa "oposição" como insulto). Enfim.
Três anos passaram e o tema "dívida" ficou central, a vida o impôs, a economia desacelerou (a sua taxa de crescimento reduziu em dois terços), o manifesto vencedor não foi cumprido nem aproximado, e foi substituído por mentiras e manipulações (por exemplo, o governo diz que criou 1,5 milhões de NOVOS empregos, a somar onde que já havia, mas o censo do ano passado mostra que em todo o país o stock de empregos formais decentes é de 1,1 milhões (largamente inferior aos NOVOS empregos anunciados pelo governo; o governo anunciou a extraordinária recuperação económica quando a taxa de crescimento projectada é 25% da de 2014, último ano antes da implosão e explosão da bolha económica; o governo fala em firmeza e estabilidade mas financia-se cada vez mais com dívida; o banco central fala no fim da crise esquecendo-se de dizer que está construindo outra crise em cima da anterior). OK. Parece que o cenário básico já está claro.
Mas, aprendemos alguma coisa, como sociedade? Já não falamos nos assuntos centrais das estruturas produtivas, de despesa e receita públicas, de financiamento da economia e da armadilha da dívida em que caímos, mas agora ou estamos virados para os escândalos financeiros individuais da clique "Guebuza e companhia limitada", ou estamos virados para a podridão moral, ética e politica interna de partidos políticos que não têm nenhuma análise séria e nenhuma tentativa de resposta para seja qual for o assunto importante da economia do país.
Salvo as publicações do Jornal "A Verdade" e os artigos do Adérito Caldeira, e poucas outras nobres excepções, não parece haver qualquer interesse na discussão do estado da economia e das respostas possíveis e pragmáticas que precisamos. Estamos em ano eleitoral, e só discutimos se Nyusi é a melhor escolha da Frelimo e se este ou aquele são as melhores escolhas deste ou daquele outro partido, quem roubou mais, quem roubou sabendo e quem não sabia que estava a roubar, ou quem acha que devemos deixar ou devemos exaltar.
Estamos muito mais interessados na discussão de nomes e dos cheiros nauseabundos que provêm de todos os partidos do que dos assuntos que vão marcar as nossas vidas.
Vou dar um exemplo deste tipo de assunto: há três anos, na tentativa de mais uma vez despertar o debate da economia, coloquei a seguinte questão: suponhamos que um predador financeiro internacional, que os há e bem poderosos e sem escrúpulos, decide comprar a nossa dívida, ou parte significativa dela, em troco do controlo dos nossos recursos energéticos estratégicos? Lá se vai o futuro melhor e chega o futuro sem futuro.
Ora, isto é o que está a acontecer: os recentes negócios com as multinacionais petrolíferas e com a China foram-nos apresentados como a solução do problema da dívida mas, de facto, são a cedência da soberania política e económica e do futuro a predadores internacionais. Esses agentes do capital global estão e vão continuar a interferir no nosso processo político, económico e social. Já fizeram e vão continuar a fazer declarações sensacionalistas para ajudarem a manipular a opinião a favor da manutenção do status quo - o capital prefere a estável instabilidade conhecida do a instabilidade desconhecida, sobretudo quando pode usar a crise para comprar e manipular a vontade política do poder - deixando de fora as consequências que só virão depois das eleições.
Este tipo de assunto ultrapassa largamente a questão da escolha de partido/candidato em quem votar, simplesmente porque nenhum partido ou candidato está a discutir estas questões seriamente (nem estão a discuti-las, quanto mais lidar com elas). É como se olhássemos para o fundo do túnel e víssemos um buraco negro, de onde nem a luz escapa. É como se o medo desse escuro nos manipulasse as mentes ao ponto de recusarmos pensar sobre onde estamos e como podemos sair daqui. É como se já estivéssemos presos, irremediável e fatalmente presos às dinâmicas gravitacionais do buraco negro e para além do seu horizonte do evento nos dirigissemos, enquanto, para diversão nesta viagem sem retorno, discutimos a paternidade da Pátria e da democracia, a divina origem deste ou daquele, ou como as ciências sociais podem ser usadas para cansar, esgotar, adormecer, complicar e nunca ajudar a transformar coisa alguma.
Pelo menos façamos uma coisa útil e informativa - ler o que o Adérito Caldeira está a publicar sobre a economia. Talvez isto nos acorde e faça agir. É fácil de entender. É difícil de digerir. Dá informação concreta. Faz querer agir, mexer, mudar as coisas.
Como dizia Rosa Luxemburg, só quem não se mexe é que não sente as correntes a que está preso. Posto de outra forma, pássaro criado em gaiola pensa que voar é doença. Numa forma mais positiva: o que não é aceitável tem de ser mudado; mudar o mundo é não só possível e necessário, mas é um acto de sanidade social que começa com mudar alguma coisa mais pequena que o mundo como, por exemplo, travar o endividamento interno (leiam os artigos da secção económica dos livros Desafios para Moçambique, edições de 2010 a 2917, que discutem estes assuntos em detalhe).

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