A questão dos poderes do Presidente da República é de capital
importância para o País. Convidado a comentar isso, o Presidente fingiu não ver
onde reside o problema. Esta é capaz de ter sido a pior parte da entrevista
pela forma leviana como o Chefe de Estado tratou um assunto tão importante. Ele
disse "Se eu tivesse poderes excessivos há muitos problemas que ia
resolver. Não estou a compreender qual é o poder excessivo estão a dizer".
Grave. Revela, no limite, uma incompreensão grave da democracia, muito próxima
do autoritarismo. Todo o líder autoritário pensa que mais poder significa mais
capacidade de "resolver os problemas".
Escrevi (Elísio Macamo) sobre isto também em janeiro de 2015:
"Falta um Ministério
Eu não me vou juntar ao coro de vozes que dizem que Nyusi,
por causa da sua relativa inexperiência, não tem estofo suficiente para levar o
barco moçambicano a bom porto. Essa pode ser a minha opinião, mas este não é o
momento para eu a emitir. Deixo isso para os outros e faço votos que ele tenha
sucesso. Ok, agora que tenho a vossa atenção: estas frases de abertura são um
exemplo duma figura retórica que tem o nome de “paralipsis”. É o truque de
dizer o que não deve dizer dizendo que não o vai fazer. Algo assim. É uma das
competências chave da profissão política, bom, na verdade, de toda a profissão
que depende do discurso em público. Esta figura retórica tem raízes teológicas,
por exemplo, naquilo que se chama de teologia negativa, isto é a doutrina que
tenta definir Deus na base daquilo que ele (ou ela) não é.
É uma coisa fascinante com implicações filosóficas e
estéticas. Por exemplo, Aristóteles baseou-se um bocado nisso para dizer que o
verdadeiro objectivo dum sábio não é de alcançar a felicidade, mas sim evitar a
infelicidade. Foi o mesmo tipo de raciocínio que o grande escultor Miguel
Ângelo (Michelangelo) usou em resposta ao Papa. No último ano do século XV,
Michelangelo regressou a Florença – quando este Estado voltou à calma depois
dos anos conturbados de fanatismo religioso com aquelas fogueiras das vaidades
instigadas pelo monge dominicano, Girolamo Savonarola – e pouco tempo depois
recebeu uma “consultoria” para concluir a estátua de David que tinha sido
encomendada 40 anos atrás para simbolizar a liberdade florentina. O resultado
desse trabalho foi tão esplêndido que o Papa perguntou a Michelangelo como é
que ele tinha conseguido produzir essa obra-prima mãe de todas as obras-primas.
A resposta dele foi simples: “Facílimo. Retirei tudo o que não era David”. Na
verdade, as implicações não são só filosóficas e estéticas. São também
políticas.
O “saber negativo”, isto é, o que não fazer, é em muitos
casos muito mais importante do que o saber positivo, isto é, o que fazer.
Muitas vezes o que conta para o sucesso duma empreitada é saber afastar
obstáculos. Só isso. Identificar e afastar obstáculos. Penso que este é um
princípio que sempre fez falta ao nosso país. Somos exímios em criar problemas
e em tentar resolvê-los criando mais problemas ainda. As soluções moçambicanas
só animam quando são anunciadas. Depois são uma grande dor de cabeça.
Passaporte biométrico, boa coisa. Mas anda lá tratar, aí só quem, como eu, tem
cunhas para se safar. Energia eléctrica para todo o povo moçambicano do Rovuma
ao Maputo, tipo “Cabora Bassa é nossa”, tudo bem. Mas depois, cortes, apagões,
oscilações de corrente quando a TV está a mostrar a liga dos campeões. Aí só
ajuda um gerador, não é? Pois, mas depois barulho, abastecimento de
combustível, etc. “Trust fund” para introduzir o multipartidarismo que vai
acabar com a guerra, claro. De repente, homens armados, fraude, paridade,
banhos de multidões, autonomia, toma posse (ou phombe?), etc. Ou por outra, nós
sabemos o que fazer, só não sabemos o que não fazer. E governo atrás de governo
tem revelado esta enfermidade tipicamente pérola índica vindo à berlinda com
mais ideias sobre o que fazer. Urgentemente, até.
Confesso que pensei neste assunto também, em parte, numa
derradeira tentativa de fazer tocar o meu telefone. Na verdade, falta um
Ministério no novo governo. Como gostaria de ocupar essa pasta – enquanto
aguardo pacientemente pelo insucesso da nova Governadora de Gaza – posso até
sugerir um nome: Ministério da Simplificação. E só para demonstrar quão prático
este ministério é, num ápice e naquele espírito de evitar o despesismo, ele
tornaria desnecessários pelo menos dois ministérios (Interior, Administração
Estatal e Função Pública, muito muito este último que tem sido, sob várias
denominações, um dos mais patéticos da nossa história governativa). A ideia do
novo ministério seria de facilitar as coisas, isto é identificar tudo aquilo
que nos impede de irmos para a frente. Por exemplo, a ida para Sofala daquela
senhora cuja função era marcar tolerâncias de ponto teria sido uma das
primeiras medidas do novo Ministério. Recomendar a saída da senhora e depois
fazer uma lista dos feriados nacionais e tolerâncias de ponto e anunciá-los
duma vez por todas. Outra medida: proibir a polícia de trânsito em Maputo de
mandar parar os automobilistas para perguntar por documentos. Só permitir que
faça isso em caso de suspeita bem fundamentada. Isto seria para evitar a
violação constante dum princípio sagrado da nossa ordem constitucional que
consiste na presunção de inocência. O engraçado é que ali em frente ao Hospital
José Macamo (!) em Maputo a polícia levanta o posto de controlo às 22 horas. Eu
se fosse bandido só roubava carro a partir dessa hora. Suspeito até que é o que
o bandido faz, pois ele não é parvo e tem muita sensibilidade para a via
negativa. Age na ausência de obstáculos.
Só que há um pequeno problema filosófico com este tipo de
ministério. É um paradoxo, ou melhor dito, um oxímero. Para ele poder
simplificar teria que ficar complexo ele próprio, incluindo o risco (para os
meus futuros colegas ministeriais) de abocanhar as funções dos outros
ministérios nesse espírito dementemente inclusivo que seria necessário ao seu
sucesso. Reconheço que não tenho solução para esse problema. Só tenho
consciência de que se alguém me pedisse para definir as prioridades do novo
governo eu diria que elas consistem numa coisa só: simplificar. Qualquer
solução, não importa que vantagens possa trazer, se implicar processos de
implementação mais complicados do que o problema que quer resolver, é mandar
queimar como teria dito Thomas Hobbes num outro contexto. Por isso, eu até
talvez não seja a pessoa mais indicada para ocupar um posto de tanta
responsabilidade (também faz sentido ficar de fora para poder criticar). A
pessoa mais habilitada para esta nobre missão tem que ser uma pessoa, lá vamos
nós, competente. Estou a pensar em cobrador de “chapa”. Esta profissão celebra
todos os dias, e milhares de vezes, a missa da simplicidade. Ali o objectivo é
amortizar o crédito que comprou a carrinha. Não é transporte de passageiros,
nem é conforto, muito menos direitos humanos ou segurança. Nada disso. É evitar
polícia de trânsito ou reduzir ao mínimo o tempo gasto a “falar como homem”. É
só ensardinhar o povo que assim, unido, melhor contribuirá para o combate ao
despesismo ou seja qual for a nova palavra de ordem.
Há muita coisa que os dirigentes podem aprender dos
dirigidos. A simplicidade é uma delas. Aprender as virtudes da simplicidade
para fazer da simplificação o novo princípio de governação".
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