Antigamente as atitudes de subserviência dos
“lambe-botas” cingiam-se aos fóruns privados. Costumavam fazer as suas operações
cosméticas nos bastidores, mas depois foram evoluindo numa ordem inversa a da
escala da evolução do homem, até se tornarem répteis. Antigamente, a subserviência pautava por certa
discrição. Os “lambe-botas” regiam-se por regras mais dignificantes para eles,
salvaguardando alguma auto-estima, que ainda havia, daí que se postulavam na
prática de vassalagem mais subtil, como perguntar ao chefe como almoçou, como
jantou, elogiar o corte de cabelo, elogiá-lo adjectivamente a excelente família
e bela mulher do chefe, transmitir recados sociais, como que o povo está feliz
com a governação e patati patatá. Conservavam uma atitude demasiadamente atenciosa
para com o chefe, tratando-os como ovos ou vidros no seu funesto e servil
exercício, apesar deles como subordinados serem mais fracos que o chefe. E nas
situações em que o chefe se desequilibra e se vê quase a tombarem os bons dos
novéis “lambe-botas” vão primeiro ao chão para poupar o chefe de cair e os
colocam na posição normal.
Um novel “lambe-botas” comporta ligeiramente como
um clone, sente o que o chefe sente, e antes do chefe tratar de chamar o
médico, pessoal de apoio, já ele antecipou.
É uma profissão moderna e contemporânea, o
lambebotismo. No nosso país, com a economia de mercado florescente, esteve para
cair em desuso, mas foi salvo pelo centralismo, pois na falta de alternativas
muitos “lambe-botas” encontram vagas na função pública, onde, pois, sem fazerem
nada senão bajular o chefe têm o salário garantido e gozam de emprego estável
porque cada vez mais há muitos chefes com apetência para serem publicamente
bajulados. Alguns “lambe-botas” se redimiram do seu
servilismo, enquanto outros sofisticaram os seus actos, porque não têm
criatividade, ou senão, têm propensão pela vida fácil, já que podem conseguir
muita coisa transpirando pouco e escovando bastante o chefe. A técnica dos
“lambe-botas” corriqueiros, os nacionais, já que regrediram à primeira forma da
evolução humana, consiste em limpar mecanicamente os sapatos dos chefes em
público.
Inclinados sobre a cintura e à língua vão sorvendo
a sujidade nos sapatos do chefe até à última poeira e cumprem escrupulosamente
com o seu sagrado ofício. Não lhes faz nenhum caso, quando se trata de garantir
minimamente o seu posto cobiçado por outros “lambe-botas” de carreira, pois
quando se abre a vaga há sempre outro disponível para cumprir zelosamente com a
função. Depois de jurarem aos pés dos chefes que cumprirão com toda a dedicação
e energias indispensáveis este ofício que os tornam invertebrados antes os
olhos comuns, ao que eles consideram a tarefa como a mais dignificante à face
da terra.
Alguns poderão se espantar quando em público de
repente o “lambe-botas” segura na calça do chefe, não seja porque tais calças
estejam a cair, mas representa um rito, uma táctica mais avançada de polimento
do chefe, o que lhe garante o pão. E um novel “lambe-botas” conhece as
pretensões, as simpatias e o espécime do chefe e, em função disso, vai tecendo
elogios ao chefe, para garantir a continuação nas tarefas e funções. Nos
últimos dias os “lambe-botas”, graças à sua forma apurada de escalar a
montanha, conseguiram a proeza de puderem bajular o chefe na nossa televisão
nacional. Assistimo-los a rastejarem e avultam na Imprensa em suas vozes
maviosas, a defenderem com lágrimas o chefe. Apressam-se a elogiar o chefe em público pela
camisa bem engomada, esquivando-se a falar dos engomadores que não deixam o
povo dormir e que praticam os mais bárbaros crimes na cidade.
Um novel “lambe-botas” conhece a lista de
necessidades do chefe. Sabe a que hora o chefe é tomado por necessidades das
mais primárias (comer, dormir, ir à casa-de-banho urinar ou defecar) até às
gerais (férias, compras na África do Sul, data de aniversário da mulher do
chefe e dos filhos). Um novel “lambe--botas” moçambicano pode cumprir
dialéctica e biologicamente as funções pelo chefe, quando este não o pode fazer
por si.
O novel “lambe-botas” tem no seu telemóvel um som
específico de chamada para reagir num eventual telefonema do chefe, que por
isso, quando o seu telemóvel começa a ladrar, estando com amigos ou mulher,
mesmo a fazer sexo, detém-se. Exibe-o como uma medalha, como um troféu, porque
o que conta para ele é mostrar que lida com gente superior, do poleiro. E
quando os seus contactos são do mais alto nível, aumentam o volume do
auscultador do telemóvel para que os demais reconheçam a sua importância. Tem
uma inclinação a défice de amor-próprio.
O novel “lambe-botas” agora procura por um espaço
na comunicação social, onde escreve a sua opinião. A opinião do “lambe-botas”
circunscreve-se a não ter opinião.
Ele refugia-se em tarefas do seu expediente comum.
Ao longo da semana ler todos os jornais, após o que elabora a sua prosa
virulenta tentando regular a opinião e dizer como tal deve ser, num exercício
de ditadura para agradar ao chefe e garantir o posto. O novel “lambe-botas”
ganha um bom salário, por isso é da classe média alta.
Antigamente, para o ofício de “lambebotismo”
dispensava-se a formação superior. Os “lambe-botas” do passado eram cidadãos
básicos e que se contentavam com o pouco, mas os novéis “lambe-botas” que têm
aspirações inconfessáveis e expectativas muito altas, alguns querem ser
ministros e outros PCA’s de empresas públicas, antes de aparecerem em funções
queimam alguns anos na faculdade.
Começam aqui o seu exercício de escalar na vida. Se
estiverem numa academia pública, tratam de desempenhar funções de agente de
segurança do Estado e todo o colega que manifestar nas aulas ou corredores um
pensamento crítico ao regime, ao seu chefe directo tem denúncia garantida. E
isso no fim recebe como prémio uma bolsa para frequentar uma universidade como
a da Wits, na África do Sul, donde regressa mais treinado e mais determinado a
desestabilizar quem quer que seja, quer o pai, a mãe, parentes. Porque ao novel
“lambe-botas” o que lhe interessa é subir na escala da vida, ter uma casa no
Belo Horizonte, no Triunfo, em Muhala Expansão, no Estoril, dois ou três
carros, cinco amantes, de preferência aquelas que, como ele, guiam-se por levar
uma vida faustosa. E o novel “lambe-botas”, contrariamente aos do
passado que ainda tinham pudor, tem a sua ética, o elogio da mentira, o elogio
da mediocridade. O que é a fonte maior da sua subsistência. O novel “lambe-botas” cuida, meticulosamente, de
preparar e entregar ao chefe a lista de quem não simpatiza com o chefe e, se
não houver, ele, pura e simplesmente, inventa inimigos do chefe, para isolar o
chefe e tê-lo à sua mercê. Sacrifica normalmente os colegas competentes. O novel “lambe-botas” não faz paninhos quentes ao
chefe em privado, fá-lo em público, como um acto perene de lealdade.
O novel “lambe-botas” é um verdadeiro vende-pátria!
(Por Adelino Timóteo)
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