Eu,
como muitos outros moçambicanos da minha idade, vivi a euforia dos primeiros
anos da independência como um filme “Western”. Havia os bons e havia os maus.
Os bons eram os que trouxeram a liberdade. Os maus eram os que os bons acusavam
de ter sido traidores duma pátria que ainda não existia. Essa moçambicana
fazia, e continua a fazer, parte dos maus. E cantávamos sobre ela, dizíamos que
tinha sido “reaccionária”. Ela desapareceu, não se sabe para onde. Até hoje. Há
apenas especulações mais ou menos fundadas sobre a sua execução sob acusação de
ter traído a pátria ou, como alguém sugeriu numa discussão, de ter sido
“lesa-pátria”. Estou a falar de Joana Simeão.
Este
não é um assunto fácil de abordar. Para pessoas como eu, beneficiárias da liberdade
que outros mais corajosos, mais visionários e mais intrépidos do que os nossos
próprios pais produziram, é sempre muito mais fácil assumir uma posição de
superioridade moral. É fácil hoje, com a distância do cheiro da pólvora, das
intrigas próprias duma insurreição armada, exigir o tipo de rectidão moral que
eu próprio, nas mesmas circunstâncias, talvez nunca teria tido. E é fácil
também transmitir a ideia de que as vítimas das acções desses grandes homens e
mulheres que fizeram a nacionalidade moçambicana seriam, elas próprias, santas
ou, quiçá, a melhor alternativa para o país. É fácil também transmitir a
impressão de querer remexer em feridas que se deviam deixar sarar para o bem de
todos. Portanto, não é fácil abordar este assunto.
Não
obstante, abordo-o porque as razões que são dadas para que o assunto não seja
abordado não me parecem úteis e, também, porque acho que a cultura política
predominante no país está profundamente ligada ao facto de abordarmos estes
assuntos como se fossem tabús. Dão-se essencialmente três razões para que se
não fale deste assunto.
A
primeira é que ela estava contra a independência e, por isso, não merece
nenhuma atenção. O problema com esta razão é que ela impõe como pré-condição
para a discussão a aceitação daquilo que está em discussão. Impõe-se como
critério o conjunto de razões que levou ao afastamento dessa mulher do processo
político. Este critério é difícil de satisfazer sobretudo também porque nos
obriga a adoptar um vocabulário (marxista) responsável pela traição do
nacionalismo quando, e como bem diz o historiador João Paulo Borges Coelho, a
luta armada de libertação nacional se tornou numa fábula para justificar a
prerrogativa de alguns de governar e não num momento da história nacional.
A
segunda razão aponta para um facto incontornável, nomeadamente que a história
não é sempre feita por santos. Isto é verdade. A independência de Moçambique
conquistou-se a ferro e fogo. É natural, portanto, que nesse processo pessoas
de bem, pessoas que em circunstâncias normais nem a uma mosca fariam mal, virem
feras e tenham de fazer coisas extremas. Eu concordo com este ponto de vista,
mas não o considero razão suficiente para que se não discuta o passado,
incluíndo essas acções. Isto por duas razões.
Primeiro,
ao se falar desses casos num momento de reflexão sobre as pessoas e as acções
que constituíram a nossa nação não se está necessariamente a falar de
responsabilidade criminal ou jurídica. Está-se a falar do conjunto de valores
que devem fazer parte da nossa comunidade moral. Está-se a levantar a questão
de saber se o princípio dos fins que justificam todos os meios é útil no
processo de construcção da nação. A julgar pelo constante recurso que se faz a
este princípio no nosso país, é evidente que ele não é bom. Ele legitima tudo,
incluíndo a falta de respeito que parece ser uma característica forte da
maneira como nos relacionamos. Se alguém se sente prejudicado pela forma como
as eleições decorreram, ele pega em armas, embosca e mata civis e militares e
ainda tem o benefício da dúvida duma esfera pública moldada e forjada no
principio dos fins que justificam os meios.
Também
não concordo com o ponto de vista segundo o qual a prática de atrocidades seria
normal em processos desta natureza e, por isso, não devíamos falar sobre o
assunto porque queremos olhar para as pessoas que fizeram isso como nossas
heroínas. Ora, um herói não é uma pessoa imaculada – nem mesmo Jesús ou Maomé
foram. Não são só as acções que definem um herói, mas a sua coragem em assumir
responsabilidade moral pelo que fez. Impedir a discussão destes assuntos com
base no argumento segundo o qual essas coisas seriam normais é privar os heróis
da oportunidade que eles têm de assumirem públicamente o que fizeram. E pior: é
negar-lhes o direito de irem ao seu descanso eterno aliviados dum peso que
devem ter na consciência se realmente forem pessoas moralmente íntegras. Se a
execução de pessoas sem processo nem transparência não lhes cria nenhum
problema de consciência, então duvido muito da integridade moral dessas pessoas
e, por isso, da sua heroicidade.
A
terceira razão dada para não falarmos deste assunto é de que só atrapalharia o
processo de construcção nacional. Aqui também concordo que há um potencial destructivo
em toda insistência naquilo que de negativo existe na nossa história. Uma
nação, essa comunidade imaginada sobre a qual falam alguns historiadores,
constrói-se com mensagens positivas. Sim, mas não só. Há, por um lado, um certo
sentido em que uma história não reflectida estimula o cinismo, o que produz o
efeito contrário de minar o sentimento patriótico. Existem vários exemplos
disto na nossa esfera desde a algo estúpida discussão sobre se Chipande deu o
primeiro tiro até à irrelevante discussão sobre se Mondlane é mesmo o
arquitecto da unidade nacional. A narrativa histórica sobre a qual Moçambique
assenta como projecto nacional virou em muitas mentes uma farsa, objecto de
ridicularização.
Mas
por outro lado existe o perigo de valorizar uma versão histórica que apenas
legitima a prerrogativa de poder dum grupo de pessoas e é vista assim pelo
público. Isso traz consigo três problemas. O primeiro é óbvio. A legitimidade
do poder será sempre posta em causa por aqueles que não têm o poder. A consequência
disso é que cria um ambiente intelectual dentro do qual a resistência a esse
poder, não importa se bem fundada ou não, será sempre bem vista por muitos
sectores de opinião. Há um lado doentio na celebração, por exemplo, da morte de
militares vitimados pelas acções da Renamo nos últimos quatro anos, mas ela é
também fruto da perda de legitimidade não por causa duma suposta fraude
eleitoral, mas por se não reconhecer autoridade moral naqueles que detêm o
poder.
O
segundo problema é que gente que não tendo praticado acções tenebrosas, mas
defendeu discursivamente essas acções como fazendo parte dum projecto
supostamente “revoluccionário”, hoje passeia pela história como apóstola moral
e exemplo duma ética que fez mal ao país. Hoje essa gente reclama a perda de
valores que foi possível justamente por causa desse projecto, por causa do seu
autoritarismo, da sua arrogância e da sua incapacidade em pensar um Moçambique
que não fosse prerrogativa exclusiva dos fazedores da “revolução”.
O
terceiro problema é um problema com o qual estamos a braços desde 1975. É o
problema de se pensar que se a luta pela independência confere a prerrogativa
de poder a alguns só uma outra luta – como a da Renamo com todas as suas
atrocidades – constitui forma viável de contestação do poder. É de novo aquele
problema dos fins que justificam os meios. Um desgraçado aguerrido e disposto a
soltar o gatilho lá de Manica mantém o nosso país refém da sua vaidade pessoal
há décadas com recurso a este princípio.
Hoje
temos uma cultura política violenta que está intimamente ligada à ausência duma
discussão franca e aberta sobre os maus momentos da nossa história. Por causa
das zonas de penumbra da nossa história, ninguém tem autoridade moral para
nada, por isso, não existe entre nós figura(s) moralmente capaz(es) de liderar
o processo nacional. O grande feito que foi a independência é visto com
cinismo, na melhor das hipóteses, ou até posto em causa, na pior, simplesmente
porque foi conduzido por pessoas de conduta moral duvidosa. Só num país como o
nosso é que um líder político pode manifestar em plena entrevista pública o
desejo ainda que retórico de ver o país entregue de volta aos colonizadores e
só sofrer críticas daqueles que o criticariam de qualquer maneira, falasse ele
bem ou não.
A
violência da nossa cultura política vem também desta história que nunca foi
trabalhada. Por causa dessa lógica dos fins que justificam os meios, todo
aquele que se sente com razão para seja o que for que lhe der na gana sente-se
também no direito de tratar os outros como bem entender. Quando vejo gente que
se espanta pelos maus tratos a que pessoas estão sujeitas nas minas de rubis
fico eu próprio espantado. Esse é o Moçambique real da falta de respeito pela
dignidade humana, algo que não é prerrogativa do governo, mas sim de todo
aquele que se sente em posição de infligir a dor ao outro. Mesmo aquilo que
chamamos de corrupção - e dá de comer aos espertinhos que vendem isso aos
doadores - não é outra coisa senão uma manifestação da falta de respeito que define
as relações humanas entre nós. Se eu estiver com fome, ou quiser mais, tiro
simplesmente, que se lixem aqueles que não têm, que se lixe a comunidade. E se
alguém me apertar para justificar, vou evocar o interesse nacional. Eu posso
sujar o nome de pessoas, arrastar a sua reputação na lama em nome duma moral
bombástica que tem a sua raiz neste princípio dos fins que justificam os meios.
Como
simpatizante assumido duma Frelimo que aos poucos se tem distanciado da folia
revolucionária que a levou a violar a dignidade humana naqueles anos de euforia
guardo a esperança de que ela um dia, mais cedo do que mais tarde, e em nome da
nacionalidade que ela criou, mas também para permitir que os heróis se libertem
do peso do que eles em circunstâncias normais nunca teriam feito, trabalhe esse
passado, peça desculpas onde for necessário e mostre que é, na verdade, muito
maior do que os outros. À Frelimo posso manifestar esse desejo porque, apesar
de tudo, ela se norteou por objectivos nobres ao contrário dos que se deixaram
instrumentalizar por forças externas para semear a morte e a destruição no
país.
Um
primeiro passo nesse sentido seria a meu ver a reabilitação de pessoas como a
J.Semeao num distanciamento claro dessa horrível linguagem de “contra-revoluccionária”,
“lacaia do imperialismo” e “fantoche” que adiou a nossa independência efectiva
por muitos e longos anos e, potencialmente, tirou a nacionalidade a muitos que
a ela tinham direito, mesmo pensando diferente. (Eliseu
Macamo,professor na Universität Basel )
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