quinta-feira, maio 29, 2014

A escumalha que engorda África

Não se pode ignorar que a situação africana é deveras preocupante e grave. Os pequenos avanços em algumas áreas não substituem ou cobrem os fracassos graves em grandes áreas da vida no continente. Golpes de Estado em permanência e protagonizados por políticos e militares africanos na maior parte dos países, motivados muitas vezes por uma busca do controle dos recursos minerais e de outras riquezas, golpes palacianos, golpes constitucionais travam e impedem que as instituições democráticas vinguem e floresçam. Ao nível da esfera económica e financeira era incongruência total. Recursos em abundância e de qualidade excelente não têm uma exploração que beneficie as economias africanas e seus povos.  Face à incapacidade de os Governos construírem agendas consensuais que os unam e que fortaleçam as suas posições negociais, a Organização Mundial do Comércio acaba adoptando instrumentos legislativos e de procedimentos lesivos para África. Os termos de troca, o que África paga pelas importações e o que recebe pelas suas exportações, são completamente desiguais, desfasados e sem qualquer correspondência com os valores reais.

O neocolonialismo de que se fala é este comprar baratíssimo e vender caro. É o acesso facilitado e desleal aos recursos africanos. É uma corrente migratória dum sentido, em que os europeus entram em África como lhes apetece, e os africanos morrem na travessia do deserto ou no Mediterrâneo, de cada vez que procuram chegar à Europa. Neocolonialismo na prática é o custo dos créditos financeiros que os países africanos têm de pagar, de cada vez que recorrem à banca internacional em busca de recursos financeiros para custear despesas com os seus projectos de infraestruturas públicas. Neocolonialismo acaba sendo o entretimento habitual nos Fóruns Económicos Mundiais, no circuito jurídico-político de Davos, em que surgem muitas receitas, mas quase sempre ignorando a sustentabilidade dos países de África. África, ao longo de décadas, desde que os seus países começaram a ascender às Independências, não teve a coesão programática de base. Os Governos que foram tomando o poder ou chegando ao poder esqueceram-se dos objectivos que brandiam aquando da luta anticolonial.O “deficit” em termos educacionais, em qualidade da Educação, em termos de acesso à informação, em termos de exposição a experiências relevantes é de dimensão tal que a maioria dos cidadãos se vê incapacitada de participar condignamente nos processos políticos e económicos de seus países. 
Nem tudo foi e é mal feito em África, diriam uns. E concordamos, embora não tenhamos motivos para sorrir. Enquanto morrem centenas de africanos todos os dias por doenças evitáveis, não se pode festejar. Enquanto milhares morrem vítimas de conflitos sangrentos de natureza étnica, religiosa e económica, não se pode descansar e festejar. Enquanto milhares recorrem à emigração ilegal para escapar ao círculo da morte antecipada por razões políticas e económicas, não se pode festejar. O aspecto mais preocupante é como a União Africana reage aos conflitos fratricidas que ceifam milhares de vítimas inocentes. Como a UA contrapõe autênticas violações dos direitos humanos mais elementares. Quando os Governos falham no mais básico de suas obrigações, há razão para afirmar que África está regredindo a largos passos.  Presidentes de República procurando eternizar-se no poder personifica apetites de natureza monárquica e tribal.
Quando se diz que a UA é um clube restrito de ditadores e aspirantes a isso, não se está longe da verdade. Preocupante é também a falta de líderes “proactivos” e observar-se sinais preocupantes de aproveitamento por parte dos seus parceiros externos. A ofensiva francesa em África, em nome de combate ao terrorismo e pela defesa da vida humana no continente, tem outras interpretações legítimas. O socorro de Paris insere-se numa tradição política intervencionista, de cada vez que interesses franceses sejam colocados em risco. A França sabe que não pode permitir que a instabilidade se aproxime de suas fontes de abastecimento de urânio ou petróleo. A Grã-Bretanha utiliza como cavalo de batalha da sua posição anti-Mugabe algo perfeitamente compreensível, que é a questão de terras que foram confiscadas aos farmeiros brancos em nome duma suposta reparação de erros e injustiças históricas. Mas este posicionamento esconde um outro lado da moeda. Mugabe não é nenhum santo, mas o Reino Unido é movido por considerações que pendem para a discriminação racial, pois não impõe sanções, quando os seus “interesses vitais” estão salvaguardados. Milhões de pessoas sofrem em várias das suas ex-colónias, vítimas de abusos contra os seus direitos humanos, sem que se veja a sua diplomacia pressionando os Governos promotores de tais abusos. Crime na Europa tem de ser crime também em África e vice-versa. 
Quantas vezes “think-tanks” ligados ao poder em Londres não premeiam gente de realizações e história mais do que suspeita? Líderes africanos com mãos ensanguentadas, desde que não irritem Londres, recebem prémios de prestígio. Moçambique e Angola não podem esperar que Lisboa seja fundamental ou crucial para o seu desenvolvimento político e económico. Fonte de matérias-primas e de recursos financeiros para aliviar crises e sustentar o desenvolvimento de Lisboa é a visão emanada daquela capital.  A ingerência nos assuntos africanos é feita de várias formas e uma delas é exactamente promover imagens que até têm sido lesivas para os países. Temos de consumir aquilo que o Ocidente diz que é bom, mesmo quando os resultados nos prejudicam.
Outra forma subtil de intervir e influenciar processos políticos africanos tem sido a disseminação duma pseudociência. Impor aos africanos maneira de pensar e proceder que os coloca sob influência daquilo que afinal são considerações estratégicas dos países do Norte. Ao nível das instituições multilaterais, como a ONU, OMC, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, os critérios e avaliação e deliberações tomadas não têm em conta aquilo que seria melhor para os países africanos. E os diversos países africanos não conseguem jogar na unidade como forma de defesa e protecção de seus genuínos interesses. Criou-se uma União Africana que nem consegue travar chacinas inter-religiosas na RCA, e políticas no Sudão do Sul.
Qualquer crise humanitária tem de ser socorrida pela ONU, pelos EUA e União Europeia.
Para combater a malária e a tuberculose é preciso esperar por doações internacionais.
Esta posição de pedinte crónico é sintoma claro de falta de liderança e de concertação estratégica entre os Governos de África. Os clamores dos cidadãos de África têm sido ignorados pelos Governos do continente. Ditaduras camufladas saltam de golpe em golpe, e qualquer tipo de golpe é bem-vindo, desde que sirva para os perpetuar no poder. Acusam os defensores da democracia em África de agentes do imperialismo, quando, na verdade, a sua preocupação é impedir que as decisões sobre quem governa sejam tomadas através do voto dos cidadãos.Face à escumalha política que navega e engorda em África, este aniversário da União Africana, 25 de Maio, deve ser data para reflexão e de tomada de consciência de que, se os africanos não aprendem a tomar posições de defesa dos seus interesses, ninguém o fará por eles.Construir e capitalizar a partir dos poucos sucessos existentes vai ser tarefa de líderes comprometidos com África e dignos herdeiros dos fundadores da Organização da Unidade Africana.  O momento é de batalha pela democracia, pois só esta cria as condições para o desenvolvimento duma sociedade educada e informada pronta para “empoderar-se” e livrar-se de complexos entorpecentes do passado. (Noé Nhantumbo)

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