Sobre dívida,
capital internacional e acumulação de capital fictício - porque é que a questão
da dívida pública é, e com razão, um campo de batalha política de classes?
Vou re-publicar
uma série de entrevistas e artigos, feitas/publicados nos últimos anos, em que
a questão da dívida pública, como parte da estratégia de acumulação privada de
capital - que inclui a formação de oligarquias capitalistas nacionais em
estreita aliança com, e na dependência de, grande capital multinacional - é
problematizada.
O argumento de
base, assente em bases empíricas e teóricas fundamentadas historicamente, é que
o endividamento público massivo é uma fase avançada de expropriação e
financeirização tanto do Estado como da economia e da sociedade como um todo,
que inclui a mercadorização acelerada de todas as esferas da actividade social,
que tem por consequência o predomínio da acumulação de capital fictício, a
concentração e centralização do capital, do excedente e da riqueza, o aumento
da desigualdade, o predomínio do emprego precário e a pobreza.
Na essência, e em
palavras mais simples, o neoliberalismo (incluindo as suas vertentes
nacioanalistas fascizantes) e a financeirização que o define são dinâmicas
predatórias que extraem mais valia de todas as outras formas de acumulação de
capital, destruindo a base produtiva, expropriam o Estado e os cidadãos e
enfraquecem a cidadania, promovem formas extremas de corrupção e tornam o
capitalismo mais improdutivo, mais especulativo, mais desigual e injusto, faz
com que as suas crises fiquem mais profundas, extensas e frequentes.
Os fenómenos que
hoje excitam Moçambique - as dívidas ilícitas e os crimes a elas associados -
já emergiram em outras partes do mundo sob muitas formas diferentes, desde a
crise (financeira, de preços dos bens alimentares e dos preços de combustíveis)
de 2007-presente até à massiva expropriação dos Estados capitalistas e
destruição dos Estados sociais para resgatar os autores da crise (o sistema
financeiro internacional), desde as sucessivas guerras no médio oriente e a
protecção do Estado fascista de Israel em troca do controlo de reservas e rotas
do petróleo, etc.. Um dos melhores exemplos do carácter extremamente predador
do capitalismo moderno é a incapacidade de acordar e implementar acções
estratégicas para travar as mudanças climáticas extremas de que o planeta já se
ressente gravemente e que põem em causa a vida - não só os lucros do capital,
mas a viabilidade de vida no planeta.
O capitalismo, na
sua forma mais predadora, é uma ameça mortal para si próprio. No extremo da
crise, o capital oligopolista e o Estado podem unir-se usando nacionalismo
fascista como desfibrilador do capitalismo. Este nacionalismo fascizante, do
moçambicano ao americano ou chinês, não é alternativa ao capitalismo
financeirista global, mas é parte da articulação das suas expressões, tensões,
conflitos e dinâmicas locais e internacionais.
As dívidas
ilícitas em Moçambique, as crises, tensões e lutas que provocam, bem como a
reacção crescentemente repressiva das autoridades policiais e do aparelho
propagandístico e ilusionista do regime, não são excepção a esta tendência
global do capitalismo.
O movimento
"eu não pago dívidas ocultas" é uma expressão de cidadania contra a
injustiça e a hipocrisia de obrigar um Estado, um país e um povo a pagarem
pelas consequências extremas do predadorismo capitalista doméstico e
internacional. Eu apoio este acto de cidadania sem quaisquer reservas. O ataque
cerrado que o aparelho propagandístico ilusionista e o aparelho de repressão
policial do regime exercem contra este movimento - o primeiro, para desactivar
qualquer acção que inclua organização e movimento social para além da limpeza
da praia, e para desviar a atenção de um assunto fulcral, não se engjando com
ele mas com a "técnica" de discussão, o segundo para reprimir a acção
se o primeiro instrumento não tiver o efeito desejado - são evidência de que
esta expressão de cidadania é importante e que de algum modo afecta o regime.
Como manter, expandir, aprofundar, tornar mais rigoroso e sustentável esta forma
de cidadania é um desafio enormíssimo mas que vale a pena enfrentar.
Antes de entrar na
re-publicação dos materiais, gostaria de colocar os seguintes dados, mas sem
apresentar ainda nenhuma interpretação, que fazem parte da lógica de recusar
pagar a expropriação do Estado e da economia pelo capitalismo especulativo.
Um, entre 2010 e
2016, a fracção do financiamento bancário nacional alocado ao sector produtivo
e ao comércio reduziu 20% e 31%, respectivamente, mas a fracção do
financiamento bancário para consumo de bens duráveis (casas, viaturas, etc.) e
para compra de títulos de dívida pública aumentou 29% e 35%, respectivamente.
Dois, a alocação
da dívida comercial assumida pelo Estado no período 2008-2014, que corresponde
a cerca de 90% da dívida comercial, foi a seguinte: 39% para garantias a dívida
privada (onde também se incluem os empréstimos ilícitos); 31% para
infraestruturas (90% do qual gasto em infraestruturas para a economia
extractiva) e 30% para pagar dívida (a fracção dminante desta parte é o
endividamento doméstico do Estado).
Três, de todo o
investimento privado feito em Moçambique entre 2005-2015, 75% foi aplicado no
núcleo da economia extractiva e 20% nas infraestruturas e serviços a ela
associados, sobrando 5% para o resto da economia - incluindo para a produção de
alimentos para o mercado interno.
Estes três
conjuntos de dados, que neste post não analiso nem interpreto, são vitais para
entender a actual economia de Moçambique, incluindo a sua dimensão ilícita.
Gradualmente, iremos analisar e discutir esta informação. Mas, seri
interessante ir fazendo esta discussão entre todos nós - o que significam e
como se relacionam esses dados num quadro analítico mais amplo e complexo, mas
que serve para descrever e analisar a situação e pensar em opções de acção?
O conjunto de
materias que vou re-publicar são contribuições feitas ao longo dos anos sobre a
problemática da dívida pública e da expropriação do Estado, dos cidadãos e de
todas as formas de capital não especulativo como modo de acumulação de capital
fictício na era da fianceirizaçao global. A re-publicação destes materias tem,
também, o papel de nos lembrar que estes assuntos estão sendo discutidos há
anos, e que leva muito tempo, e às vezes é preciso um escândalo, como o dos
empréstimos ilícitos, para que a discussão se converta em acção e movimento
social progressista, contundente e transfromativo.
Vou começar esta
série de re-ublicações com uma entrevista conduzida pelo Professor Issa Shivji
(Tanzania), em Dezembro de 2016, em Dar-es-Salaam, em que problematizamos a
questão do endividamento público como parte de processos de acumulação privada
de capital em Moçambique, na Tanzania e no capitalismo moderno.
Ah,
esqueci-me de dizer (ou, se já disse, não custa dizer de novo): Eu não pago
empréstimos ilícitos que geram dívida a ser ilicitamente financiada pela
expropriação do Estado e da sociedade e pela mercadorização da soberania
nacional!
(Por
Carlos Nuno Castel – Branco in facebook)
0 comments:
Enviar um comentário