A história de Moçambique
dos últimos cinquenta anos tem sido marcada por ciclos de violência armada de
contestação ao Estado, não só colonial, como também póscolonial. Com efeito,
desde a guerra anticolonial levada a cabo pela Frente de Libertação de
Moçambique (Frelimo), passando pela guerra civil, que opôs a Resistência
Nacional Moçambicana (Renamo) ao governo da Frelimo, até às crises
político-militares pós-eleitorais, a violência armada tem estado presente no
processo da construção do Estado em Moçambique.
No início de Outubro de
2017, começou uma outra contestação violenta ao Estado na província de Cabo
Delgado. Inicialmente assimilado a um banditismo de mera perturbação da ordem
pública, o fenómeno ganhou rapidamente proporções alarmantes. Os ataques
começaram a multiplicar-se. Em Dezembro de 2017, a Polícia da República de
Moçambique, ao mais alto nível, esteve na zona e visitou os distritos de
Mocímboa da Praia e Palma. No comício popular que realizou na vila sede de
Mocímboa da Praia, o Comandante Geral da Polícia deu um “ultimato” aos atacantes,
decretando sete dias para se entregarem às autoridades (O Pais, 2017). No
entanto, os ataques espalharam-se para outros distritos da zona norte de Cabo
Delgado. Entre finais de Março e meados de Abril de 2020, a violência armada
atingiu níveis nunca vistos antes, com o assalto e a ocupação temporária de
quatro vilas nos distritos de Mocímboa da Praia, Quissanga, Muidumbe e Ibo. Que
factores estão na origem do avanço da insurgência no terreno? Que tipo de
relação se vai desenvolvendo entre os insurgentes e as populações locais?
Existe algum potencial para que a insurgência se alastre para o Sul, em
direcção à zona costeira de Nampula? Como o Estado tem vindo a responder à
insurgência? Estas perguntas são uma
parte importante do programa de pesquisa intitulado “Estado, violência e
desafios de desenvolvimento no Norte de Moçambique”, em curso no IESE desde
Agosto de 2019.
Fazendo uso do material produzido no âmbito do
programa de pesquisa acima mencionado, este texto analisa as dinâmicas da
insurgência em Cabo Delgado e procura interrogar o que Moçambique pode aprender
dos seus ciclos de violência armada, particularmente a guerra civil, para fazer
face ao actual conflito no Norte do país. O texto sublinha o argumento, segundo
o qual, apesar das diferenças entre a guerra civil e a insurgência em Cabo
Delgado, por exemplo no que se refere a actores e mensagem, existem aspectos
semelhantes do ponto de vista das dinâmicas do conflito e a estruturação da
resposta do Estado. Essas diferenças e semelhanças remetem-nos à reflexão sobre
eventuais lições que Moçambique pode tirar da experiência da sua guerra civil
(1976 – 1992), na busca de respostas para a insurgência em Cabo Delgado.
Apesar da controvérsia
sobre as causas e motivações do conflito armado que assola Cabo Delgado desde
inícios de Outubro de 2017, as poucas pesquisas que existem mostram que o grupo
na origem do primeiro ataque a Mocímboa da Praia está ligado a uma seita religiosa,
localmente conhecida pela designação Al-Shabaab, cuja presença em alguns distritos de Cabo Delgado se fez sentir, sobretudo a partir dos anos 2010,
particularmente em Balama, Chiúre, Montepuez, Macomia e Mocímboa da Praia
(Morier-Genoud, 2019; Habibe, Forquilha & Pereira, 2019). No início, um
grupo meramente religioso que pregava e reivindicava a prática de um Islão
radical, a instauração da Sharia e se opunha a todo o tipo de colaboração com o
Estado, os Al-Shabaab passaram a incorporar células militares e endureceram o
seu discurso a partir de finais de 2015, tendo passado para a acção armada em
2017.
Começava assim um novo ciclo de violência armada em Moçambique,
articulada à volta de um discurso religioso, explorando e mobilizando as
diferentes tensões existentes a nível local, nomeadamente étnicas, sociais,
políticas e económicas. Se por um lado este novo ciclo de violência armada,
como veremos adiante, possui elementos semelhantes aos ciclos passados, por
outro lado, ele é diferente, sobretudo quando comparado à guerra civil
(1976-1992).
A guerra civil (1976 – 1992) e a insurgência em Cabo Delgado: as
diferenças que contam
O fim da guerra
anticolonial, em 1974, não significou necessariamente o fim da violência armada
em Moçambique. Com efeito, tendo alcançado a independência num contexto
regional extremamente tenso, caracterizado pela existência de regimes
minoritários brancos racistas na Rodésia e na África do Sul, Moçambique começou
a ser vítima de uma agressão externa em 1976, que, mais tarde, se transformou
em guerra civil movida pela Renamo (Geffray, 1990; Cahen, 2002; Cabrita, 2000;
Hall & Young, 1997; Morier-Genoud,
Cahen & Rosario, 2018). A guerra
civil que devastou Moçambique durante dezasseis anos é diferente da insurgência
em curso em Cabo Delgado em muitos aspectos. Para o nosso propósito neste
texto, gostaríamos de mencionar, entre outras, duas grandes diferenças. A
primeira diferença refere-se a actores.
Com efeito, diferentemente da guerra
civil em que temos o envolvimento (directo/indirecto) de actores estatais
externos, no contexto das dinâmicas da guerra fria e da correlação de forças a
nível regional, e um grupo doméstico sem pretensões religiosas; em Cabo
Delgado, pelo menos no início, não existem evidências do envolvimento de actores
estatais externos e o grupo doméstico, que corporiza a violência armada, com
pretensões claramente religiosas, possui origens locais, embora com contactos
fora de Moçambique e a participação de estrangeiros radicais que se instalaram
localmente via alianças de casamentos (Habibe, Forquilha & Pereira, 2019).
Nesse sentido, não se pode olhar para os Al-Shabaab em Cabo Delgado como uma
mera criação externa, tal como o discurso oficial pretendia fazer crer em
relação à Renano, no contexto da guerra civil.
A segunda diferença entre a
guerra civil e a insurgência em Cabo Delgado diz respeito à mensagem dos grupos
que movem a contestação violenta ao Estado. Com efeito, enquanto na guerra
civil, o grupo doméstico (a Renamo) não punha em causa os fundamentos do Estado
moçambicano (por exemplo, a laicidade do Estado), em Cabo Delgado, os
Al-Shabaab, desde o início, embora de uma forma pouco elaborada, defendem a
necessidade da instauração de um Estado com fundamentos religiosos,
nomeadamente a Sharia (Morier-Genoud, 2019; Habibe, Forquilha & Pereira,
2019). Mas se é verdade que a comparação entre a guerra civil e a insurgência
em Cabo Delgado trazem ao de cima diferenças importantes, também não é menos
verdade que existem semelhanças do ponto de vista das dinâmicas do
desenvolvimento da própria violência armada.
A insurgência em Cabo Delgado: outro conflito, dinâmicas
semelhantes
Desde a eclosão do conflito armado a 5 de
Outubro de 2017, foi-se construindo e consolidando um discurso oficial, segundo
o qual a insurgência em Cabo Delgado “não tem rosto nem mensagem”. Muitas vezes
repetido, quase que mecanicamente, pelos meios de comunicação social, este
discurso fazia tabula rasa da “arqueologia”1 e da etnografia da insurgência, ou
seja, das evidências do terreno.
Com efeito, além das inúmeras denúncias feitas
pelos líderes muçulmanos locais junto das autoridades governamentais sobre a
existência de jovens com tendências radicais nas mesquitas locais, em Janeiro
de 2018, circulou o primeiro vídeo mostrando seis jovens, que, empunhando armas
de fogo de tipo AK-47, com rostos semicobertos e fazendo referência ao ataque a
Mocímboa da Praia, apelavam aos moçambicanos a juntarem-se ao grupo para lutar
contra satanás, que, no seu entender, colocava em risco os ensinamentos de Allah.
Em Junho de 2019, começaram a surgir as primeiras reivindicações por parte do
Estado Islâmico relativamente à autoria dos ataques. Embora essas
reivindicações não tivessem evidências sólidas, elas foram ganhando mais
consistência e frequência. Quando se olha para o
desenvolvimento da violência armada em Cabo Delgado, constata-se que algumas
das dinâmicas, quando comparadas àquelas ocorridas durante a guerra civil, não
são completamente novas. Para o nosso propósito neste texto, gostaríamos de
mencionar, pelo menos, dois aspectos, nomeadamente o avanço da insurgência e a
estruturação da resposta do Estado.
Como explicar o avanço da insurgência?
O que inicialmente foi
considerado pelas autoridades moçambicanas como um mero acto de banditismo,
transformou-se, em poucos meses, num conflito armado complexo, com morte de
muitos cidadãos indefesos, destruição de infraestruturas públicas, habitações e
a consequente crise humanitária de populações deslocadas. Independentemente do
debate sobre as causas/ motivações do conflito, as evidências do terreno
mostram que o avanço da insurgência é alimentado pelas múltiplas clivagens,
nomeadamente étnicas, históricas, sociais e políticas. A este respeito, no seu
trabalho sobre geografia eleitoral e insurgência em Cabo Delgado, no âmbito do
programa de pesquisa do IESE acima mencionado, Brito (2020) mostra a ligação
entre o desenvolvimento da insurgência e as clivagens locais. Com base na
análise da dinâmica do voto nos distritos de Cabo Delgado, desde as primeiras
eleições multipartidárias em 1994, Brito sublinha que “a insurgência parece
desenvolver-se, em áreas e no seio de populações marginalizadas pelo Estado,
mobilizando sobretudo jovens em ruptura com o Estado, mas também com a
sociedade "tradicional", na medida em que adotam uma prática
fundamentalista do Islão” (Brito, 2020: 6). A literatura sobre a guerra civil
em Moçambique mostra como a Renamo mobilizou as clivagens locais em seu favor
(Geffray, 1990; Cahen, 2002; Morier-Genoud, Cahen & Rosario, 2018). Referindo-se
ao conflito em Cabo Delgado, Brito sublinha que “neste aspecto, parece estarmos
perante o mesmo tipo de dinâmica que caracterizou a guerra conduzida pela
Renamo: a chegada de um grupo armado, portador de um discurso de contestação da
ordem estabelecida, age como acelerador do descontentamento social e radicaliza
as clivagens sociopolíticas, por vezes históricas, que pré-existem localmente”
(Brito, 2020: 6). Isso permitiu aos Al-Shabaab encontrar um certo apoio por
parte de sectores mais marginalizados, particularmente os jovens, que, em
alguns casos, venderam o pouco que tinham e foram juntar-se ao grupo (Habibe,
Forquilha & Pereira, 2019). Graças a esse apoio, os Al-Shabaab conseguiram
montar uma eficiente rede de suporte logístico e de recolha de informação,
constituída por jovens repartidos em pequenos grupos, inseridos nas
comunidades, localmente conhecidos por “olhos do mato”.
De acordo com as nossas
entrevistas, além do suporte logístico, esses jovens efectuam vigilância e
mantêm os insurgentes informados sobre as movimentações das Forças de Defesa e
Segurança (FDS) na zona, facto que joga um papel importante no lançamento das
operações militares do grupo e no seu avanço no terreno. Neste sentido, tal
como aconteceu com a Renamo durante a guerra civil, pode-se dizer que os
Al-Shabaab conseguiram, de alguma forma, penetrar no tecido social das
comunidades locais, facto que permite ao grupo uma maior mobilidade no terreno
e eficiência nas operações militares. O segundo elemento, que nos parece
relevante mencionar, que nos remete às semelhanças com as dinâmicas da guerra
civil, é a estruturação da resposta do Estado.
A resposta do Estado
À semelhança do que aconteceu na fase inicial
da guerra civil, as evidências no terreno mostram que o Estado moçambicano
subestimou a real dimensão da ameaça que o fenómeno de Cabo Delgado
representava. Com efeito, a desvalorização pelas autoridades governamentais das
denúncias feitas pelas lideranças religiosas muçulmanas locais, bem antes do
primeiro ataque a Mocímboa da Praia (Nhampossa, 2020; Habibe, Forquilha &
Pereira, 2019; Chichava, 2020), o “ultimato” surrealista dado pela polícia
moçambicana aos insurgentes para entregarem as armas num prazo de uma semana (O
Pais, 2017), a insistência sistemática no discurso segundo o qual a insurgência
em Cabo Delgado “não tem rosto nem mensagem”, quando a realidade no terreno
apontava para a existência de jovens radicalizados no grupo dos atacantes,
sugerem que as autoridades governamentais encaravam os ataques como um simples
banditismo. Isso, no nosso entender, contribuiu para que a resposta do Estado
fosse pouco ajustada às exigências da real ameaça do fenómeno da radicalização,
privilegiando, muitas vezes, a tese da conspiração externa, em detrimento de
factores internos que alimentam a insurgência. Aliás, quando o Estado
moçambicano decidiu, publicamente, posicionar-se sobre o conflito em Cabo
Delgado, através do Conselho Nacional de Defesa e Segurança (CNDS), atribuiu a
autoria dos ataques ao Estado Islâmico e, por isso mesmo, considerou que o país
está em presença de “uma agressão externa” (Notícias, 2020).
Neste aspecto, a
semelhança com o que se passou relativamente à guerra civil é flagrante, na
medida em que, durante muito tempo, a Renamo foi vista como uma mera criação dos
regimes racistas minoritários brancos da região (Rodésia e mais tarde a África
do Sul) com a única finalidade de desestabilizar o Estado moçambicano e, por
conseguinte, a guerra não era mais do que “uma agressão externa”. No entanto, a
tese da “agressão externa”, embora verdadeira, escondia toda uma dinâmica
interna marcada por clivagens sociais, políticas e económicas, que
transformaram a “agressão externa” num conflito interno de grandes proporções e
consequências dramáticas. Relativamente a Cabo Delgado, seria importante que
Moçambique aprendesse dessa sua experiência da guerra civil.
Se é verdade que, nos
últimos tempos, a reivindicação dos ataques pelo Estado Islâmico denuncia
factores externos no conflito, também não é menos verdade que evidências do
terreno mostram que o desenvolvimento da insurgência em Cabo Delgado tem-se
alimentado consideravelmente de factores internos, cristalizados em múltiplas
clivagens locais. Negar isso seria perigoso para a própria resposta do Estado
relativamente a este conflito. Na verdade, seria um erro pensar que os
Al-Shabaab em Cabo Delgado são uma criação do Estado Islâmico. Aliás, a
arqueologia e a etnografia da insurgência em Cabo Delgado, acima referidas,
sugerem que as origens do grupo são locais, embora se possa falar de elementos
estrangeiros no seu seio (Morier-Genoud, 2019; Habibe, Forquilha & Pereira,
2019). Quando se olha para a literatura sobre os movimentos jihadistas
violentos em África e a sua relação com o terrorismo global, pode-se constatar
que o caso dos Al-Shabaab de Cabo Delgado não constitui uma excepção (Hansen,
2018; Oyewole, 2015; Forest & Giroux, 2011). Trata-se de grupos que
resultam das dinâmicas locais e, num certo momento, procuram uma conexão com o
terrorismo global prometendo lealdade. Todavia, tal como Hansen (2018)
sublinha, nessa conexão, é preciso não perder de vista a relevância da dimensão
local desses grupos, na medida em que as múltiplas clivagens locais é que
permitem que as insurgências se desenvolvam.
Por conseguinte, é importante que
a resposta do Estado moçambicano relativamente ao conflito em Cabo Delgado não
se estruture unicamente em função da dimensão externa, nomeadamente “a agressão
externa” protagonizada pelo Estado Islâmico. É preciso que a resposta do Estado
aborde e dê o devido lugar aos factores internos da violência armada,
cristalizados nas múltiplas tensões étnicas, sociais, políticas e económicas
que existem a nível local, para evitar que o conflito não só se intensifique,
como também, eventualmente, se alastre para outras zonas do Norte de
Moçambique.
(De Salvador Forquilha e João Pereira)
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