Quando, no mês passado, Donald Trump concluiu o seu
primeiro périplo pelo estrangeiro — marcado por uma série de controvérsias e
que acabaria por levar ao isolamento dos Estados Unidos após o Presidente
decidir retirar os EUA do Acordo do Clima de Paris — vários analistas,
inclusivamente muitos liberais críticos do líder republicano, assumiram que a
grande vitória da atual administração foi o acordo multimilionário de armamento
assinado com a Arábia Saudita. Na sua primeira visita oficial a Riade — antes
de viajar até Israel, ao Vaticano, a Bruxelas para uma cimeira da NATO e à
Sicília para um já famigerado encontro do G7 — Trump alardeou o acordo de armas
com os sauditas como um testamento às suas capacidades de fechar grandes
negócios, que foram a base da sua campanha eleitoral para "fazer a América
grande outra vez".
Contudo, um homem que trabalhou 30 anos para a CIA
e que, desde 2006, integra o painel de especialistas do Instituto Brookings,
garante que esse acordo "não existe" — pelo menos não nos moldes em
que foi publicitado pelo Presidente norte-americano."Falei com os meus
contactos na área da Defesa e no Capitólio e todos dizem a mesma coisa: não
existe nenhum acordo de 110 mil milhões de dólares" (88,7 mil milhõesde
euros), escreveu ontem Bruce Riedel no seu blogue, no site daquele think tank.
"Em vez disso, há uma série de cartas de interesse ou de intenções, mas
nenhum contrato. Muitos são ofertas que a indústria da Defesa acha que podem
vir a interessar aos sauditas um dia destes. Mas até agora, nada foi entregue
ao Senado para revisão. A Agência de Cooperação de Segurança e Defesa, o braço
de venda de armas do Pentágono, chama-lhes 'vendas planeadas'. Nenhum dos
acordos identificados até agora são novos, todos começaram com a administração
Obama.""Para além disso", continua Riedel, "é improvável
que os sauditas possam pagar um acordo de 110 mil milhões de dólares, por causa
dos baixos preços do petróleo e da guerra de dois anos no Iémen. O Presidente
Obama vendeu ao reino 112 mil milhões de dólares em armamento ao longo de oito
anos, a maioria deles integrados num único e grande acordo negociado em 2012
pelo então secretário da Defesa Bob Gates... Com a queda dos preços do
petróleo, os sauditas têm tido dificuldades em cumprir os pagamentos desde
então."
"As façanhas [de Trump] parecem estar a ficar
mais audazes", escreve a "New York Magazine" em reação às
alegações de Riedel. "É precisa muita chutzpah [palavra com raiz no
iídiche que significa 'insolência'] para apresentar uma lista de possíveis
acordos de armas criados pela administração Obama como um acordo histórico que
vai criar 'muitos milhares', senão 'muitos milhões' de postos de trabalho [nos
EUA]. E não foi só isso que Trump diz ter trazido da sua visita a Riade. O
Presidente também alega que convenceu as monarquias do Golfo a pararem de
financiar fações radicais do Islão."
A última parte desta análise remete para dois
tweets que Donald Trump publicou na terça-feira, nos quais pareceu gabar-se de
ter espoletado a decisão da Arábia Saudita e de outras nações do Golfo Pérsico,
a par do Egito e do governo sunita do Iémen, de cortarem relações com o vizinho
Qatar, acusando o emirado de patrocinar e financiar grupos terroristas como o
autoproclamado Estado Islâmico (Daesh) e a Al-Qaeda e de apoiar o Irão, o grande
rival regional dos sunitas."Tão bom ver que a [minha] visita à Arábia
Saudita com o rei e outros 50 países já está a render", escreveu Trump no
Twitter na terça-feira. "Eles disseram que iam assumir uma postura dura
contra o financiamento do extremismo e que tudo aponta para o Qatar. Talvez
este seja o início do fim do horror do terrorismo!"
No seu texto, o ex-funcionário da CIA também cita a
atual crise no Golfo, alinhando-se com outros especialistas nas críticas ao
Presidente norte-americano por estar a dar força à recente decisão dos sauditas
e de outras nações árabes de isolar totalmente o Qatar, o país que, em 2022, vai
receber o Mundial de Futebol."Tal como o acordo de armas não é aquilo que
tem sido publicitado, também a muito alardeada campanha unida dos muçulmanos
contra o terrorismo não o é", escreve Riedel. "Em vez disso, os
Estados do Golfo viraram-se contra um dos seus. A Arábia Saudita orquestrou uma
campanha para isolar o Qatar. Este fim-de-semana, a Arábia Saudita, os Emirados
Árabes Unidos, o Bahrain e o Egito cortaram relações com o Qatar. Aliados dos
sauditas como as Maldivas e o Iémen juntaram-se de imediato. E a Arábia Saudita
fechou a sua fronteita terrestre com o Qatar."Este não é o primeiro
conflito entre aqueles países, refere ainda o analista do Brookings, "mas
é o mais perigoso". "Os sauditas e os seus aliados estão ansiosos por
castigar o Qatar por apoiar a Irmandade Muçulmana [no Egito], por causa da
Al-Jazeera e por manter relações diplomáticas com o Irão. Em vez de uma frente
unida para conter o Irão, a cimeira de Riade [na qual Trump participou depois
de assinar o suposto acordo de armas com o reino saudita] resultou no exacerbar
de tensões políticas e sectárias na região."
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