Na ressaca do debate acerca da constitucionalidade ou não da decretação do novo ciclo de estado de emergência, o chancelar da Universidade Politécnica, Lourenço do Rosário, questiona o que estiveram a fazer os assessores do Presidente da República (PR) e do Governo durante 120 dias do estado de emergência ao ponto de deixá-lo numa situação embaraçosa e que hoje divide a sociedade.
Em entrevista , em que fala de vários
assuntos, o académico diz que a banalização da Constituição pode levar a
tentações de musculação do exercício de poder, deixando a democracia mitigada.
Diz que os conselheiros do PR devem ter capacidade de fazer leituras dos
cenários. Aponta que as redes clientelares podem estar a minar a selecção de
quadros mais capazes – a favor daqueles que dizem “agora é a nossa vez” - e
levar à má governação. Indica que é necessário coragem para extirpar o mau
desempenho, começando pela Comissão Política (CP) do partido, que não deve ser
composto por “clientes” especializados em louvores ao PR, a quem passam o tempo
a tratar como “filho mais querido do povo”, tal como fizeram com Guebuza.
Lourenço do Rosário é de opinião que o simples facto de o PR ressuscitar a
agenda da corrupção nos seus discursos e não na acção, já no segundo mandato,
dá a sensação de que a guerra está perdida. “Todo o sistema montado de
governação deste país é um sistema de clientelismo”, rematou o académico,
fazendo notar que o que mais se ouve é “chegou a minha vez, tenho que arranjar
a minha vida”.
Moçambique entrou semana finda num novo ciclo de estado de
emergência. Que balanço faz dos primeiros quatro meses de decretação do estado
de emergência?
O Presidente da
República disse que Moçambique começou a tomar medidas de precaução e prevenção
antes de decretar o EE que veio a acontecer depois, porque, de facto, não
estávamos a ver o que estava a acontecer ao nível não só da Europa, da Ásia
como na América, e perante um fenómeno completamente desconhecido, não havia
ninguém esperto que pudesse dar um veredicto objectivo sobre como lidar com
esta situação. Acho que nesse aspecto Moçambique agiu bem e permitiu que
tivéssemos um percurso para que não entrássemos em pânico. Ao longo do tempo,
notou-se alguma hesitação, alguma desorientação, na tomada de determinadas
medidas que se misturaram com dois tipos de discursos de politização desta
situação. O debate não está a ser científico, a nível da comunicação social.
Quem está lá não são cientistas que, podem, eventualmente, debitar alguma
investigação daquilo que está a acontecer no mundo. São comentadores, alguns
profissionais e outros ao serviço do regime para justificar algumas medidas.
Isto retira mérito àquilo que são as boas medidas que o Governo tomou, porque,
quando politizamos um problema que todos nós queremos que seja uma agenda
nacional, retiramos unanimidade, depois dividimos a sociedade e começa a haver
grupos de pressão que enfraquecem o acto governativo.
Há correntes que defendem que o estado de emergência expôs as
nossas fragilidades. Concorda?
Sem dúvidas. Do ponto
de vista económico, somos um país completamente esfacelado, neste momento, e
que isso pode ter consequências na paz social, a prazo. Do ponto de vista
sanitário, há um medo terrível que este aumento exponencial possa pôr a nu a
fragilidade da rede sanitária. O EE pós a nu a fragilidade do sistema
educativo, porque quando se ensaiou o regresso às aulas, verificou-se que,
efectivamente, nós tínhamos um sistema educativo e infra-estrutural
completamente desmantelado, em ruínas. Em conversa com responsáveis de tutela
diziam que o grande problema não era do Estado investir na área da educação, o
problema está na gestão da infra-estrutura. Não se faz manutenção ou reparação,
só se constrói. Isso acabou politizado e criando grupos de pressão e debates
sobre a abertura ou não das escolas, o que dividiu o país e aumentou o
sentimento de exclusão. Numa entrevista à Lusa dizia que o Estado tinha que
encontrar um equilíbrio entre a segurança sanitária e alimentar para ajudar as
populações desfavorecidas.
Tendo em conta os vários empregos perdidos será que isso se
materializou?
Como é que o Estado
pode ajudar, se não tem condições financeiras para poder fazer grandes
investimentos nessa perspectiva. As populações, sobretudo, a nível familiar,
estão entregues a si próprias. Neste momento, estamos a verificar que o
“Sustenta” está a tentar fazer uma reinvenção dos grandes projectos anteriores
da agricultura no país. Vamos ver se dá certo, está a começar. Escassearam
iniciativas académicas para tomarem a dianteira neste assunto. Das academias,
sobressaiu mais o debate da propinas.
Ressalvando o conflito de interesse que possa ter, acha que as
academias deram o seu contributo?
Foi a comunicação
social que agitou os pais e encarregados de educação dos alunos das
instituições privadas de ensino. Pessoalmente, procurei estar longe desse
debate, não por causa de conflitos de interesse, mas, fundamentalmente, porque
achava que era um não problema. Era essencialmente uma temática que agradava a
audiência e desviava- -nos de um problema essencial que era como congregar
academias para poder debater esta situação. Com excepção da entrevista do Dr.
Hélder Martins e membros do Governo, durante este tempo todo não vi nenhumas
faculdades de Medicina, Ciência, Biologia, e temos várias, os seus mestres
serem chamados a comunicação social para debater estas questões. Só vi
juristas, deputados e analistas políticos a debater o problema da Covid-19.
O PR anunciou a retoma
das aulas. Mas antes tivemos dois reitores de instituições públicas que
disseram que a retoma das aulas não pode ser uma aventura e que a saúde pública
não se negoceia. Qual é a sua opinião.
Uma coisa não anula
a outra. Temos que nos sentar e perceber
que não podemos ficar escondidos dentro de casa, permanentemente, porque existe
a Covid-19. Vamos pensar em microcosmos, as populações que vivem nos parques
sabem que os leões e elefantes estão lá, mas não ficam escondidos dentro de
casa, vão às machambas correndo perigo de ser atacadas. Essa é uma forma urbana
de lidar com a situação, porque temos uma geleira recheada, temos um
dinheirinho guardado no banco e podemos sobreviver alguns meses. Não podemos de
forma alguma pressionar a quem tem que dirigir para que tenha essa atitude. Não
se pode negociar saúde, sim, mas também não se pode ficar fechado em casa o
tempo todo, temos que encontrar forma de lidar com esta situação chamada “o
novo normal”. O novo normal é saber como é que se pode evitar essa doença. Tudo
tem a ver com a gestão da nossa rede patrimonial. Se a gestão das nossas
escolas fosse boa, a nossa rede de transportes fosse boa, se a nossa rede
sanitária e de água fossem boas, este problema não existiria. Que saídas? Como
é que fazemos? Fechamos às chaves? Você tem um sistema que está montado em que
a ministra da Educação e Desenvolvimento Humano diz que se não retirar os
alunos que este ano estão na primeira classe, no próximo ano, terá três milhões
de crianças nessa classe. Você resolve o problema? Não resolve. Há quem propõe
a anulação do ano lectivo...
Alguém estudou como isso funciona, trouxe propostas concretas e
será que no próximo ano não entra ninguém no sistema?
É um debate que tem
que ser feito de modo que não sejamos como os países europeus que fizeram um
“lockdown” completo. Não podemos imitar. O grande problema de nós os académicos
é que como não produzimos o nosso saber indígena pensamos muito pela cabeça de
outros.
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