Tinha prometido que o texto de ontem seria o último a reflectir sobre a governação. Quebro a promessa por causa dum artigo assinado por Joseph Hanlon e Anastasya Eliseeva que levanta questões importantes de governação, mas também por causa da exortação feita por Guebuza na palestra de ontem sobre a importância do conhecimento baseado na pesquisa. Segundo os autores, a violência em Cabo Delgado não tem muito a ver com o Estado Islâmico. É uma guerra civil alimentada pela pobreza e desigualdade dentro dum contexto político em que as elites políticas nacionais estão apostadas em se apropriarem das riquezas nacionais para seu próprio benefício.
Acho a análise
bastante pobre.
Eu próprio já
havia, há semanas, recorrido à ideia do Estado Islâmico como franquia para
alertar para a necessidade de não se perder muito tempo e energia com estudos
circulares sobre a pertinência da religião como variável que pudesse explicar a
violência. Nisso, portanto, estamos de acordo. Já não concordo com os autores
quando reduzem a violência totalmente à corrupção da elite política como se
fosse possível estabelecer sem nenhuma dificuldade uma linha recta entre
pobreza e desigualdade, dum lado, e violência. Este é um problema analítico que
tem a sua origem em dois equívocos metodológicos.
O primeiro
equívoco parece-me prática assente na análise social feita de forma artesanal.
O pesquisador tira uma conclusão qualquer e depois junta informação que a
confirma. O artigo em questão tem como base de argumentação escândalos
financeiros conhecidos, suposições sobre a conduta das eleições, palpites sobre
os níveis de descontentamento da população, casos comiserados semelhantes
noutros países, etc. A colação desses casos todos torna plausível a conclusão
tirada antes do estudo. Ao invés de usar a informação para pôr a conclusão à
prova, o pesquisador usa os elementos dessa informação que podem ajudar a
sustentar a sua conclusão. Chega a ser desonesto. O segundo equívoco, também
recorrente na análise social artesanal, é a fraca sensibilidade para a relação
que conceitos têm com a realidade. Conceitos são caixas negras. Eles encerram
várias coisas dentro de si de tal modo que o recurso a um conceito para
explicar seja o que for pode ser vago e não dizer absolutamente nada.
Por exemplo,
quando alguém diz que a pobreza e a desigualdade alimentam a violência, ele
propõe-nos três conceitos densos – pobreza, desigualdade e violência – que num
primeiro momento escondem, mais do que revelam, informação. A pobreza é
relativa, absoluta, situacional, geracional, rural, urbana, etc. Que tipo
exacto de pobreza é responsável pela violência e como é que isso ocorre?
Suponho que a relação entre pobreza e violência seja mediada pela radicalização
de jovens. Ok, que tipo de jovens se radicalizam ao ponto de pegar em armas?
Porque outros jovens igualmente pobres não se radicalizam, ou quando se
radicalizam, não chegam ao ponto de pegar em armas? Ademais, qual é a relação
exacta entre a pobreza, dum lado, e a corrupção das elites políticas? A teoria
que enquadra esta análise tem que partir do princípio de que a pobreza gera
violência. Porque é que, por enquanto, só há violência em Cabo Delgado? Acima
de tudo, para que é necessária a corrupção das elites políticas para explicar a
violência sabido que é que é possível ser pobre mesmo sem corrupção das elites
políticas?
A relação que
estabeleço entre governação e valorização do conhecimento baseado na pesquisa
baseia-se nestas poucas perguntas que acabo de formular. Tenho acompanhado,
atento, vários escritos, webinares e comentários sobre Cabo Delgado. Não sou
especialista da área, nem do tema, mas aprendi metodologia e dou muito valor a
ela. Há cada vez menos contribuições que me convencem. Cada especialista
agarra-se à sua conclusão e junta dados para a proteger. Guebuza falava num
outro contexto, mas tem razão. Temos que valorizar o conhecimento baseado na
pesquisa. Isso significa que muitos têm de aprender a avaliar a produção
científica para não ficarem reféns da análise social artesanal. Só num sentido
metafórico é que podemos falar de “guerra civil” em Cabo Delgado. A violência
que assola partes da província é sintomática duma constelação particular de
factores sociais, culturais, económicos e políticos que têm como pano de fundo
a fragilidade do processo de consolidação da autoridade estatal em países como
os nossos. Análises 4X4 que simplificam as coisas com recurso à corrupção das
elites políticas desviam a nossa atenção do essencial. Nada disto quer dizer
que o aproveitamento individual que pessoas bem situadas no poder político
fazem dos recursos não seja um problema. Nem que a pobreza ou desigualdade não
sejam problemas. Tudo isso é problema, mas até a gente entender como se
articulam para produzir o tipo de violência que produzem vai uma grande
distância. Vai ser necessário trabalho científico mais sério do que tem havido.
Mas é por isto
tudo que tenho criticado o governo, sobretudo a relutância do Presidente em
falar abertamente sobre Cabo Delgado. Essa relutância faz parte dum quadro
geral de inépcia política na abordagem dos desafios de governação. Enquanto os
investigadores se perdem nas suas análises artesanais, o Presidente anda atrás
de bodes expiatórios misturados com teorias de conspiração – “não nos querem
ver a beneficiar dos nossos recursos” – que manifestam a sua falta de vontade –
ou capacidade (?) – em abordar os desafios da governação de forma política.
Cabo Delgado mostra as deficiências da nossa estrutura política. E isso vai
desde a relação entre FDS e cidadão, passa pelos mecanismos locais de interpelação
do poder, mas também de protecção e promoção da cidadania, até à relação entre
poder central e poder local. Convocar gente abalizada para reflectir sobre isto
e estimular debates na esfera pública sobre os desafios políticos que a
província nos coloca é fundamental para a elaboração duma melhor abordagem. Não
sei de nenhuma iniciativa do Conselho Nacional de Defesa e Segurança para
reunir os vários especialistas que temos para ajudarem a reflectir sobre o
assunto. Na Alemanha e na Suíça é assim que se fazem as coisas, mesmo sabendo
que essas instituições dispõem elas próprias de gente abalizada.
Embora em
minha opinião o governo nao seja directamente responsável pela violência lá em
Cabo Delgado, a sua inépcia tem contribuído muito para a escalada. Dói dizer
isto, mas tudo indica que o Presidente Nyusi vai legar nao só a violência de
Cabo Delgado ao seu sucessor, como também o rastilho que ela representa para o
resto do País. O acordo com a Total parece-me o pontapé de saída para a
militarização irresponsável dum problema político. Preparemo-nos para o cenário
igual ao norte do Mali. (Elisio Macamo in facebbok)
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