O PR decretou mais um ciclo de EE, no meio forense há debates sobre a constitucionalidade ou não do acto. Mesmo não sendo jurista não resisto a perguntar-lhe. Como recebeu essa decretação?
O Governo não tinha um instrumento legal para gerir esta situação e
havia um vazio legal para poder pôr a funcionar as suas medidas restritivas.
Então, aqui vamos ter que perguntar o seguinte: O que é que aqueles que
aconselham o PR e o Governo andaram a fazer durante quatro meses para não criar
um instrumento legal que pudesse substituir o EE e colocar o chefe de Estado,
neste furacão, a dividir uma vez mais a sociedade? Não discuto se é ou não
constitucional. O problema é aqueles que estão próximos do PR e pertencem ao
fórum que pode produzir propostas de lei só se lembrarem de submeter à AR a
modificação da lei das calamidades, simultaneamente, no momento em que o PR
estava a ser coagido a renovar o EE. O erro está aí. Tinha que haver uma medida
legal e este vazio obrigou o PR a decretar um EE. Não é constitucional para os
juristas, mas também o que é que faria o PR nesta situação? Atropelar a CRM é
um mau precedente. É preciso que haja conselheiros do governo e da presidência
que tenham leituras com visão do que pode acontecer. Temos a Covid-19, mas
também pode trazer outras consequências e como é que isso vai ser gerido.
Daquilo que leio de juristas mais abalizados, a banalização da CRM pode levar a
tentações de musculação do exercício de poder e a democracia fica mitigada.
A falta de antecipação dos
conselheiros do PR e do Governo nesta matéria remete-nos ou não aos discursos
dos doutores Óscar Monteiro e Rui Baltazar sobre a necessidade de nomear
pessoas capazes e a altura de modo a não confundir a meritocracia e
mediocracia?
Nós sabemos que o panorama partidário modificou-se
muito depois da morte de Dhlakama. A Frelimo acaba por ganhar espaços largos, o
que dá fôlego enorme de poder pensar e acredito que será assim, que vai
permanecer no poder durante muito tempo, porque não vejo uma Renamo que possa
bater-se com a Frelimo em qualquer pleito eleitoral nos próximos tempos. A
partir do momento que se tem essa percepção dentro da Frelimo aparecem os
clientes. Essa história de dizer que é nossa vez, antes era restrita, agora
começa a alargar-se. Como a fasquia do poder aumentou, os clientes também
começam a aumentar e esta prática cultural que se esconde por detrás de “quem
está connosco e quem não está connosco” é uma pergunta que se faz e esconde o
clientelismo. Você não fala, não critica, é um sim senhora e tem lugar garantido.
Isto vai permanecer por muito tempo. Há um drama terrível e espero que o PR
Nyusi não passe por isso, porque os presidentes Joaquim Chissano e Armando
Guebuza passaram pelo drama de que nos últimos dois anos dos seus mandatos as
pessoas começavam a olhar para quem vem a seguir. Esta coisa é cultural dentro
do partido.
Quais as consequências que
isso acarreta?
O preço a pagar é a má governação do Estado e da nação. O que os doutores Monteiro e Baltazar estavam a dizer têm por detrás exactamente esta questão. Neste momento, procura-se olhar para a militância do que para a competência.
É possível erradicar?
Pode se extirpar de
duas maneiras: uma vaga de fundo, em termos das bases que dizem “chega, não
pode ser assim” e começar a varrer de era baixo para cima. Ou há um líder com
carisma suficiente que começa a varrer de cima para baixo. Não se pode de forma
nenhuma conviver com isto permanentemente.
O PR Nyusi tem carisma para
tal?
A agenda do actual
Presidente da República é vasta. Acho que os chefes de Estado anteriores
tiveram agendas também complicadas, mas a agenda do Presidente Nyusi, do ponto
de vista de política interna, é muito grande. Nessa passagem de testemunho dos
antigos combatentes para esta nova geração ele herdou um país e foi terrível
desde o início. Tendo uma agenda vasta, como Presidente da República, não tem
fôlego suficiente de ao mesmo tempo, como presidente do partido, olhar para
isso. Mas também ele teria que ter, a nível do “staff ” imediatamente a seguir
a ele, o secretário- -geral, o secretariado do partido e na Comissão Política
(CP) pessoas que não fossem clientes, que fossem pessoas que pudessem ajudar o
líder a varrer. Não podemos continuar com aquele tipo de agendas. Ontem Guebuza
era “o filho mais querido da nação”,
hoje Nyusi é isto ou aquilo, não é isto que se pretende. Ele não precisa de ser
louvado pela sua CP e isso não faz sentido. Não é aquele o papel da CP. Sou
membro da Frelimo e nunca escondi, mas não partilho dessas ideias. Minha
relação com Dhlakama foi nessa base, porque ele dizia eu sei quem tu és. Uma CP
é um estado-maior do presidente do partido que deve ajudá-lo a resolver o
problema que eu disse.
Quando um presidente se
deixa influenciar não é porque gosta? Por exemplo, ele não se identificou com o
tractor do Francisco Mabjaia no XI congresso e enxovalhou-o.
Será que tem espaço para negar? O tractor foi um acto público. Depende da estrutura da pessoa. Neste ambiente partidário é complicado, que a Frelimo se apercebeu que é uma força hegemónica, o exercício de poder é de muitos equilíbrios e o líder quando é, ao mesmo tempo, chefe de Estado tem que gerir a agenda do Estado e de cada um dos membros do partido. Ou seja, dos interesses de cada membro do partido, pois todos eles querem ser qualquer coisa no Estado. Eu entro no partido e faço uma boa militância, porque tenho interesse em ter algum lugar no Estado. Como é que um líder pode gerir uma coisa destas? Tem que ter estas segundas linhas, como secretariado e a CP muito bem alinhados com a agenda do seu Presidente. Alinhado com o Presidente não é dizer que você é bonito. Criou-se um clima psicológico colectivo que não ajuda o líder a mexer a cabeça dele e dizer isto não está bem, não pode. Quando isso acontece é extremamente complicado, o problema não é do PR resolver esta situação, ele não tem condições de resolver todos os problemas, porque a sua agenda é carregada como chefe de Estado e o partido.
Na passada quinta-feira, assinalou-se o primeiro aniversário do
Acordo de Paz e Reconciliação Nacional. Acha que agora estão criadas as
condições para se enterrar em definitivo o machado da guerra no país, no
contexto governo e Renamo?
Gostaria de dizer que
sim, mas não estou convencido.
Porquê?
Estamos a lidar com duas questões, de um lado a paz e doutro a reconciliação. Em 1992, o Presidente Joaquim Chissano assinou o primeiro acordo e geriu a paz durante 20 anos. Não conseguiu gerir a reconciliação, no entanto, conseguiu esconder. Quando apareceu outro protagonista, o Presidente Armando Guebuza, não conseguiu gerir e o conflito estoirou. Agora tens um processo que foi bem conduzido, do meu ponto de vista, entre Nyusi e Dhlakama. Azar é que este último morreu. Com a sua morte, a Renamo foi ao congresso e Ossufo Momade ganha as eleições e não se apercebeu que estava perante um desafio grande de promover a coesão da Renamo por carisma, tal como Dhlakama fazia, ou por via de política de integração. Ossufo Momade dividiu o partido e perdeu o apoio dos militares. Querendo como não, Mariano Nyongo era o braço direito de Afonso Dhlakama. Aquando do cerco da casa de Dhlakama na Beira, foi Mariano Nyongo quem assinou o termo de entrega das armas e não Dhlakama. Isto significa a importância que aquele homem tinha dentro do aparato militar que havia dentro da ala militar da Renamo na Gorongosa com Dhlakama. Provavelmente, Ossufo, mal-aconselhado, não se apercebeu disto e criou um problema político terrível. Ossufo Momade diz que Nyongo é um problema do Estado, a Frelimo diz que é da Renamo.
Então, como acabar com isto de uma vez por todas?
Politicamente, o problema do Nyongo é da Renamo. Do ponto de vista de segurança do Estado, claro que é o Presidente da República. Há vozes que dizem que o Presidente da República deve se encontrar com Nyongo e eu digo não, porque ele não é problema de rebelião contra o Estado. Nyongo sempre disse que a rebelião dele é contra Ossufo. A divisão da Renamo que fez menção tem a ver com as remodelações de Ossufo ou causas tribais, tendo em conta que o epicentro é Sofala? A questão tribal seria neutralizada, se houvesse papel carismático de congregação e Ossufo não soube gerir. Não é o facto de se ter deslocado a presidência da Renamo de Sofala para Nampula que isso provocou divisão dentro da Renamo. Não houve gestão da coesão. Não há justificações daquela purga que ele fez de uma estrutura que tinha sido montada por Dhlakama de um momento para o outro. Acho que ele devia ter ido, pelo menos, até às eleições com aqueles dirigentes, porque ninguém contesta que foi eleito e é legítimo. Ele não manteve aquela estrutura de transição e substituiu um por um conforme a sua estratégia, desmontou tudo e montou uma nova máquina, então disseram vai sozinho.
Falta pouco tempo para iniciar o debate de sucessão do Presidente Filipe Nyusi. Qual é a marca da governação que vai deixar?
Primeiro, é a passagem de testemunho, uma
coisa importante é que a Frelimo desse um sinal de que os antigos combatentes
saíram e que vinha uma nova geração. Isto liberta-nos do peso dos antigos
combatentes que parecia um fardo que tínhamos que carregar até desaparecerem na
história pela lei da vida. É uma marca extremamente importante, porque trás um
jovem para o poder com 50 e tal anos e trás novas ideias. Segundo, a atitude
que ele teve, não sendo antigo combatente, de lidar com Dhlakama do modo como
lidou, mesmo nos primeiros meses após a sua eleição. Foi criticado pela
Comissão Política e pelo pre- sidente do
partido de então, que era Guebuza. Foi uma atitude de muita humildade, que
devia ser estudada quando se estudar a vida e obra de Nyusi durante os dois
mandatos. Um chefe de Estado tem que ser humilde para dar vazão ao seu discurso
de que o povo é patrão. Teve também marcas de catástrofes, problemas de
corrupção. Por fim, essa coisa de dizer, que tal um terceiro mandato contra as
leis que existem no país não é correcto. Guebuza tentou um terceiro mandato
para fechar aquilo que não conseguiu em dois, oxalá que o Presidente Nyusi não
embarque neste canto de sereia.
E como viu esses problemas
de corrupção?
Não gostei de ouvir o Presidente da República, nas últimas semanas, a dizer que o combate à corrupção é irreversível. Isto é um disco já riscado, porque de facto a corrupção é endémica. Todo o sistema montado de governação deste país é um sistema de clientelismo. “Chegou a minha vez, tenho que arranjar a minha vida”. Ninguém ou são muito poucos os que lutam, mas esses poucos quando começam a arranjar alguma coisa são atacados por todo o lado e vão buscar na vida privada, se possível. Acho que quando o Presidente da República, já no segundo mandato, faz um discurso em que a corrupção volta como agenda dá sensação de guerra perdida, do meu ponto de vista. Reveja os discursos da PGR e Presidente da AT dos últimos dias foram no mesmo diapasão.
Como é que vê a situação de
Cabo Delgado?
O problema de Cabo
Delgado foi mal gerido. Quando foi do surgimento da Renamo, em 1977, e chamava-
se MRN, também se dizia que eram uns bandidos armados, a gente despreza sempre
e isso começa a crescer. Como presidente do Fórum Nacional do MARP, desde o
início, fui avisando a quem tinha que avisar que aquilo em Cabo Delgado é muito
sério e que era preciso, de facto, ser encarado com seriedade e como diz
Samora: ´o crocodilo mata-se ainda pequeno e na margem`, porque, quando cresce,
vai para o fundo do rio e é difícil. Durante dois anos, não me foram dados
ouvidos e só este ano conseguimos como MARP colocar o terrorismo de Cabo
Delgado na agenda da União Africana.
Para o general Jacinto
Veloso estamos diante de uma operação que visa bloquear projectos de gás e diz
que a entrada de uma força externa é oportuna. Qual é a sua leitura?
O general Veloso é um estratega de segurança
internacional e antigo ministro, conhece muito bem esses meandros. Eu estou
ciente de que estamos diante de uma agressão internacional, estamos a ser
vítimas. Penso que estamos a ser agredidos internacionalmente para desertificar
Cabo Delgado, tirar o poder do Estado daquele lugar e permitir que haja um
garimpo total das nossas riquezas. Se o objectivo é bloquear os projectos de
gás aí não estou tão de acordo. Ninguém bloqueia as multinacionais em Cabinda,
Nigéria, nem na Síria.
(SAVANA)
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