Tratando-se de
Catolicismo é sempre bom começar com uma confissão. Estive contra a visita do
Papa nesta altura de eleições. Pareceu-me, e continua a me parecer, não só
inoportuna como também uma grande falta de respeito pelo País. Como sugeri numa
entrevista recente, talvez o Vaticano precisasse mais de Moçambique do que o
contrário se tivermos em conta a pressão que os evangélicos exercem sobre todas
as confissões religiosas que em tempos classifiquei como “éticas”, portanto o
Catolicismo assim como o Protestantismo não profético, nem pentecostal. A
visita, que não iria deixar de acontecer só porque eu tenho reticências, foi
útil numa coisa: mostrou, se é que ainda era necessário, o que pode estar
errado connosco. Mostrou até que ponto o tipo de moral ao qual respondemos como
pessoas é uma moral bombástica.
Uma moral bombástica
consiste em dois elementos centrais. Um é aquela postura assente na convicção
de que as falhas morais dos outros fazem de quem as constata um ser moralmente
superior. Dito doutro modo, quando alguém comete um erro moralmente
repreensível como, por exemplo, não prestar ajuda a um necessitado, quem não
cometeu esse erro porque nunca se encontrou numa situação que, potencialmente,
pudesse o colocar perante o desafio de agir também moralmente, acha-se ser
superior. E toca daí a julgar pelo simples prazer de julgar. O outro elemento
consiste em pensar que todo o ensinamento moral é uma indirecta para os outros,
não uma mensagem dirigida a nós como seres morais porque, prontos, nós somos
por natureza moralmente íntegros. Notei, por exemplo, que muitas das platitudes
morais que o Papa foi enunciando durante a sua estadia foram repercutidas como
indirectas para terceiros, de preferência para os nossos governantes.
Ora, a moral
bombástica revela o que pode haver de errado em nós por uma razão complexa. Ela
parece-me sintomática dum equívoco político. Este assenta na ideia de que
política precisa de moral para ser boa. Avaliamos a acção política na base de
padrões morais absolutos que, conforme já sugeri, sempre se referem à acção dos
outros, não à nossa. Assim, condenamos a “corrupção” dos outros na base duma
ideia absoluta da natureza imoral da “corrupção” e sem referência à vida
política que é tudo menos compatível com esse tipo de moralismo absoluto.
Infelizmente, o Papa repetiu esse equívoco num dos seus discursos. O que ele e
os da moral bombástica ignoram é que constitui um erro analítico grave reduzir
a uma questão moral o que é disfuncional num aparato institucional. O Vaticano,
como instituição, tem sido regularmente sacudido por escândalos de vária ordem
– e que merecem o rótulo da “corrupção” – mas ninguém em plena posse das suas
faculdades mentais iria achar que falta “integridade moral” aos portadores de
batinas.
O Papa insistiu
muito – e, repito, política e analiticamente foi infeliz, ainda que essa seja a
sua missão – na superioridade da moral sobre a política. Por exemplo, o que ele
disse no encontro com os jovens pareceu-me extremamente problemático como
mensagem política. Para não ser mal entendido, não estou a dizer que a sua
intenção tenha sido essa, isto é fazer uma comunicação política, mas pelo que
me foi dado a entender nas citações feitas pelo Facebook fora isso é o que se
entendeu. Aquele papo todo de empatia, compromisso com os menos favorecidos,
compromisso por uma sociedade melhor, etc. em mãos fanáticas é receita para a
tirania. Todos os regimes autoritários e totalitários que passaram pela face da
terra não cometeram as atrocidades que cometeram por falta desses valores
morais. Foi justamente o compromisso ferrenho com esses valores aliado ao poder
que essas atrocidades foram possíveis. O Apartheid aqui ao lado foi defendido
com unhas e garras por religiosos que usaram, para citar o próprio Papa, Jesús
como árbitro...
O nosso País tem
exemplos que bastem disso, desde a tirania das boas intenções “revolucionárias”
à orgia violenta da Renamo que, curiosamente e do ponto de vista intelectual –
pelo menos aqui no Facebook – encontra os seus maiores defensores em redutos
católicos cheios de ódio pela Frelimo. Não estou a dizer que um bom católico
não possa fazer política ou ser militante da Renamo – ou da Frelimo. Estou a
dizer que um bom católico tinha que ser capaz de se distanciar completamente da
Renamo que foi responsável pelas atrocidades por todos conhecidas e destacar
isso na sua acção política se acha que, apesar de tudo, a Renamo o representa
melhor do que outros partidos. Mas essa é a moral bombástica. Ao invés de as
pessoas se demarcarem claramente do que fere os seus princípios – se é que os
têm – preferem quase sempre escudar-se no princípio dos fins que legitimam os
meios. Este princípio, na verdade, é justamente aquilo que torna a moral
absoluta incompatível com a política.
Portanto, o papo do
Papa foi até um certo sentido um papo furado. Não só ele não disse nada que
fosse diferente do que vários pastores andam aí a pregar todos os dias,
incluíndo os Cutanes deste mundo, como também transmitiu uma mensagem política
potencialmente perigosa por abrir o caminho ao fanatismo moral. Mas aqui
intervém outro factor interessante. É curioso notar a forma como muitos estavam
preparados a dar ao Papa o benefício da dúvida simplesmente por ele ser Papa,
mas um benefício da dúvida que não dão aos seus próprios compatriotas. Eu
gracejava num comentário aí que se tivesse sido o Papa a dizer que capim que
cresce mais alto que outro vai ser ceifado, muita gente teria repetido isso
como uma verdade profunda. Isto é, a verdade, entre nós, vale pelo portador,
não pela sua própria qualidade. Não é que a idoneidade de quem fala não seja
importante, mas quando fazemos depender a profundidade do pensamento do seu
portador tornamo-nos vulneráveis ao populismo como está a acontecer um pouco
por todo o mundo.
Os assessores do
Papa fizeram-no estabelecer uma comparação factualmente equivocada e que a ter
saído da boca de Nyusi ou Momade teria provocado condenações morais. Ele disse
que a marrabenta é música tradicional moçambicana que foi enriquecida por
outras influências para produzir o pandza. Não é verdade. A marrabenta é
igualzinha ao pandza na medida em que é um produto urbano nascido, diriam os
puristas, da “decadência” moral. O protestantismo moçambicano inspirou-se muito
na condenação desta “decadência” e no desejo genuíno de muitos dos seus crentes
de se afastarem dela para ganhar o grande ímpeto que o Protestantismo teve,
sobretudo nas zonas urbanas. Mas isso pouco importa. Se tivesse sido um
moçambicano a dizer isso, teria sido triturado pela tirania da moral bombástica
que corrói o nosso tecido político.
A moral bombástica
também tem pouco interesse por razões estruturais. Por exemplo, o Papa falou da
igualdade de oportunidades – citando-se a si próprio – como garantia duma
sociedade mais justa. É verdade, mas para o contexto de Moçambique incompleto.
O desafio político em Moçambique não é apenas garantir a igualdade de
oportunidades. É como fazer isso num mundo global estruturalmente injusto e que
não mereceu nenhuma referência por parte do Papa. As riquezas que Moçambique
não consegue explorar para o bem do seu próprio povo falam dum mundo que foi
feito à imagem de outros que, hoje, fazem tudo o que podem para impedir que
países como Moçambique realizem o seu potencial. Era tão bom se o problema
fosse apenas de vontade da parte da classe política. Infelizmente não é. Uma
pessoa com a autoridade “moral” do Papa deve ter a coragem de também falar
sobre isso quando estiver a dar licções de moral aos nativos roubados da sua
história também com o conluio da instituição que ele representa.
Em suma, depois
desta visita vale Mateus 22:21 – a César o que é de César... – e sem Romanos
13:1, pois a autoridade que conta no mundo político é a autoridade histórica
que consiste no nosso compromisso com uma moral que dialoga com a experiência. (Prof.Elísio Macamo IN
facebook)
0 comments:
Enviar um comentário