quarta-feira, setembro 11, 2019

Do catolicismo ao pandza


Resultado de imagem para papa em mocambiqueTratando-se de Catolicismo é sempre bom começar com uma confissão. Estive contra a visita do Papa nesta altura de eleições. Pareceu-me, e continua a me parecer, não só inoportuna como também uma grande falta de respeito pelo País. Como sugeri numa entrevista recente, talvez o Vaticano precisasse mais de Moçambique do que o contrário se tivermos em conta a pressão que os evangélicos exercem sobre todas as confissões religiosas que em tempos classifiquei como “éticas”, portanto o Catolicismo assim como o Protestantismo não profético, nem pentecostal. A visita, que não iria deixar de acontecer só porque eu tenho reticências, foi útil numa coisa: mostrou, se é que ainda era necessário, o que pode estar errado connosco. Mostrou até que ponto o tipo de moral ao qual respondemos como pessoas é uma moral bombástica.
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Uma moral bombástica consiste em dois elementos centrais. Um é aquela postura assente na convicção de que as falhas morais dos outros fazem de quem as constata um ser moralmente superior. Dito doutro modo, quando alguém comete um erro moralmente repreensível como, por exemplo, não prestar ajuda a um necessitado, quem não cometeu esse erro porque nunca se encontrou numa situação que, potencialmente, pudesse o colocar perante o desafio de agir também moralmente, acha-se ser superior. E toca daí a julgar pelo simples prazer de julgar. O outro elemento consiste em pensar que todo o ensinamento moral é uma indirecta para os outros, não uma mensagem dirigida a nós como seres morais porque, prontos, nós somos por natureza moralmente íntegros. Notei, por exemplo, que muitas das platitudes morais que o Papa foi enunciando durante a sua estadia foram repercutidas como indirectas para terceiros, de preferência para os nossos governantes.
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Ora, a moral bombástica revela o que pode haver de errado em nós por uma razão complexa. Ela parece-me sintomática dum equívoco político. Este assenta na ideia de que política precisa de moral para ser boa. Avaliamos a acção política na base de padrões morais absolutos que, conforme já sugeri, sempre se referem à acção dos outros, não à nossa. Assim, condenamos a “corrupção” dos outros na base duma ideia absoluta da natureza imoral da “corrupção” e sem referência à vida política que é tudo menos compatível com esse tipo de moralismo absoluto. Infelizmente, o Papa repetiu esse equívoco num dos seus discursos. O que ele e os da moral bombástica ignoram é que constitui um erro analítico grave reduzir a uma questão moral o que é disfuncional num aparato institucional. O Vaticano, como instituição, tem sido regularmente sacudido por escândalos de vária ordem – e que merecem o rótulo da “corrupção” – mas ninguém em plena posse das suas faculdades mentais iria achar que falta “integridade moral” aos portadores de batinas.
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O Papa insistiu muito – e, repito, política e analiticamente foi infeliz, ainda que essa seja a sua missão – na superioridade da moral sobre a política. Por exemplo, o que ele disse no encontro com os jovens pareceu-me extremamente problemático como mensagem política. Para não ser mal entendido, não estou a dizer que a sua intenção tenha sido essa, isto é fazer uma comunicação política, mas pelo que me foi dado a entender nas citações feitas pelo Facebook fora isso é o que se entendeu. Aquele papo todo de empatia, compromisso com os menos favorecidos, compromisso por uma sociedade melhor, etc. em mãos fanáticas é receita para a tirania. Todos os regimes autoritários e totalitários que passaram pela face da terra não cometeram as atrocidades que cometeram por falta desses valores morais. Foi justamente o compromisso ferrenho com esses valores aliado ao poder que essas atrocidades foram possíveis. O Apartheid aqui ao lado foi defendido com unhas e garras por religiosos que usaram, para citar o próprio Papa, Jesús como árbitro...
Imagem relacionadaO nosso País tem exemplos que bastem disso, desde a tirania das boas intenções “revolucionárias” à orgia violenta da Renamo que, curiosamente e do ponto de vista intelectual – pelo menos aqui no Facebook – encontra os seus maiores defensores em redutos católicos cheios de ódio pela Frelimo. Não estou a dizer que um bom católico não possa fazer política ou ser militante da Renamo – ou da Frelimo. Estou a dizer que um bom católico tinha que ser capaz de se distanciar completamente da Renamo que foi responsável pelas atrocidades por todos conhecidas e destacar isso na sua acção política se acha que, apesar de tudo, a Renamo o representa melhor do que outros partidos. Mas essa é a moral bombástica. Ao invés de as pessoas se demarcarem claramente do que fere os seus princípios – se é que os têm – preferem quase sempre escudar-se no princípio dos fins que legitimam os meios. Este princípio, na verdade, é justamente aquilo que torna a moral absoluta incompatível com a política.
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Portanto, o papo do Papa foi até um certo sentido um papo furado. Não só ele não disse nada que fosse diferente do que vários pastores andam aí a pregar todos os dias, incluíndo os Cutanes deste mundo, como também transmitiu uma mensagem política potencialmente perigosa por abrir o caminho ao fanatismo moral. Mas aqui intervém outro factor interessante. É curioso notar a forma como muitos estavam preparados a dar ao Papa o benefício da dúvida simplesmente por ele ser Papa, mas um benefício da dúvida que não dão aos seus próprios compatriotas. Eu gracejava num comentário aí que se tivesse sido o Papa a dizer que capim que cresce mais alto que outro vai ser ceifado, muita gente teria repetido isso como uma verdade profunda. Isto é, a verdade, entre nós, vale pelo portador, não pela sua própria qualidade. Não é que a idoneidade de quem fala não seja importante, mas quando fazemos depender a profundidade do pensamento do seu portador tornamo-nos vulneráveis ao populismo como está a acontecer um pouco por todo o mundo.
Resultado de imagem para papa em mocambiqueOs assessores do Papa fizeram-no estabelecer uma comparação factualmente equivocada e que a ter saído da boca de Nyusi ou Momade teria provocado condenações morais. Ele disse que a marrabenta é música tradicional moçambicana que foi enriquecida por outras influências para produzir o pandza. Não é verdade. A marrabenta é igualzinha ao pandza na medida em que é um produto urbano nascido, diriam os puristas, da “decadência” moral. O protestantismo moçambicano inspirou-se muito na condenação desta “decadência” e no desejo genuíno de muitos dos seus crentes de se afastarem dela para ganhar o grande ímpeto que o Protestantismo teve, sobretudo nas zonas urbanas. Mas isso pouco importa. Se tivesse sido um moçambicano a dizer isso, teria sido triturado pela tirania da moral bombástica que corrói o nosso tecido político.
Imagem relacionadaA moral bombástica também tem pouco interesse por razões estruturais. Por exemplo, o Papa falou da igualdade de oportunidades – citando-se a si próprio – como garantia duma sociedade mais justa. É verdade, mas para o contexto de Moçambique incompleto. O desafio político em Moçambique não é apenas garantir a igualdade de oportunidades. É como fazer isso num mundo global estruturalmente injusto e que não mereceu nenhuma referência por parte do Papa. As riquezas que Moçambique não consegue explorar para o bem do seu próprio povo falam dum mundo que foi feito à imagem de outros que, hoje, fazem tudo o que podem para impedir que países como Moçambique realizem o seu potencial. Era tão bom se o problema fosse apenas de vontade da parte da classe política. Infelizmente não é. Uma pessoa com a autoridade “moral” do Papa deve ter a coragem de também falar sobre isso quando estiver a dar licções de moral aos nativos roubados da sua história também com o conluio da instituição que ele representa.
Em suma, depois desta visita vale Mateus 22:21 – a César o que é de César... – e sem Romanos 13:1, pois a autoridade que conta no mundo político é a autoridade histórica que consiste no nosso compromisso com uma moral que dialoga com a experiência. (Prof.Elísio Macamo IN facebook)

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