sexta-feira, agosto 07, 2015

Sobre os albinos

Vi dois „posts“ interessantes do Carlos Serra e da Cléo Mafu nos últimos dois dias. O primeiro solidarizava-se com os albinos que estão a ser vítima de violência no norte do País e a segunda mostrava-se inquieta em relação ao mesmo fenómeno. A leitura dos comentários lá postados suscitou algumas curiosidades em mim, sobretudo em relação à perplexidade com que costumamos abordar este tipo de assuntos. A maioria dos comentários agrupava-se em torno de dois temas principais. Um era sobre a necessidade de educar as pessoas e o outro era sobre uma maior preocupação com a AMETRAMO – a Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique – no sentido ou de limitar o seu raio de alcance, ou de a tornar mais presente.
“Educar” é, dum modo geral, a resposta de eleição para qualquer coisa que não entendemos. Isto é, nós próprios não entendemos uma coisa e a primeira coisa em que pensamos quando algumas pessoas fazem essa coisa é em educar essas pessoas. A questão é: quem vai ser o educador e educar em quê? É para irmos dizer às pessoas lá em Nampula que albinos são pessoas como nós os outros que padecem duma condição rara com uma explicação científica? É para irmos dizer que não é bom matar um ser humano? Que é irracional pensar que órgãos humanos possam trazer riqueza? Que magia é demência? Reparem que todas estas perguntas já têm uma descrição do problema que, por sua vez, já sugere uma resposta: o problema é que há pessoas que não sabem o que é um albino e que motivadas por crenças irracionais tiram a vida a albinos na vã expectativa de enriquecerem. É sob o pano de fundo desta descrição do problema que a educação aparece como solução. Se ensinarmos às pessoas que albinos são pessoas e que feitiçaria não funciona, a caça ao albino vai acabar. Pudera.
Isto, para mim, é sinal de perplexidade. É uma perplexidade que se alimenta de várias fontes. Uma fonte é a conversa sempre adiada com o que insistimos em chamar de cultura africana. Se for irracional do ponto de vista da ciência é cultura africana, é a nossa maneira de abordar o mundo. Quanto mais bizarro for, mais autêntico é. Espero que, já agora, o Américo Matavele (“maprovoco”), tradicionalista confesso, venha aqui defender a caça ao albino como manifestação da nossa cultura milenar. A conversa que temos adiado com a nossa cultura é a que nos permitiria formular um argumento coerente que explica porque certas práticas são aceitáveis e fazem parte da nossa cultura, e outras não. Idealmente, esse argumento devia conter princípios que nos permitam elaborar posições coerentes sobre qualquer prática que fira o nosso sentido ético ou mesmo científico. O que não me parece correcto é manter esta relação esquizofrénica com a cultura. Quando é bom – porque serve para defender alguma posição – dizemos que é nossa cultura; quando nos embaraça, ou não entendemos, dizemos que temos que educar as pessoas.
A outra fonte é a ressaca da guerra da Renamo. Apareceram no nosso país estudiosos a mostrarem que a adesão da população rural à Renamo explicava-se melhor com recurso às crenças metafísicas africanas e o papel que elas desempenharam na articulação da resistência às políticas colectivistas da Frelimo gloriosa. Esta perspectiva, a partir dos finais dos anos oitenta, virou uma autêntica praga nos meios académicos. Misturava a excitação compreensível do investigador estrangeiro que “descobre” uma lógica local que lhe permite entrar em comunhão com o moçambicano duma forma que nem o próprio investigador moçambicano é capaz de fazer porque membro da elite urbana, e os argumentos circulares que caracterizam os “estudos africanos”, particularmente na sua confusão metodológica e analítica entre explicação e justificação. De repente, a “cultura africana” ganhou conjuntura sob a forma da importância dada à autoridade tradicional. O Ministério da Administração Estatal, num “black-out” total de lucidez – mas impelido por alguns destes investigadores estrangeiros – santificou a coisa, introduziu uma bifurcação horrível e incoerente no nosso sistema administrativo e emulou categorias coloniais de classificação dos moçambicanos em “civilizados” e “indígenas” sem, naturalmente, usar estes nomes. Na ânsia de corrigir supostos erros do passado promoveu-se uma atitude acrítica em relação a instituições e formas de exercício de poder que eu considero retrógradas (para usar terminologia da Frelimo gloriosa).
Uma outra fonte foi a elevação do charlatanismo à condição de representante legítimo da racionalidade moçambicana. Esta frase é dura e injusta para aqueles que têm conhecimento de plantas medicinais e têm ajudado muita gente sem acesso à medicina formal. Mas ao criar uma categoria “medicina tradicional” sem um conhecimento claro e sistemático das suas práticas, capacidades e habilidades – apenas na base da crença na sua utilidade, já que existe… - promoveu-se uma tensão desnecessária entre a medicina formal e a tal medicina tradicional. Esta tensão atinge níveis de paroxismo quando algumas pessoas depois dizem que existem “realidades” ou “coisas” que só são acessíveis a esta forma de medicina. Bullshit. O que a gente chama de “medicina tradicional” não é prerrogativa dos africanos ou dos não-europeus. Eu que me interesso pela história social europeia – e mato essa sede lendo também romances históricos – fico espantado quando encontro crenças e práticas igualzinhas ao que nós teimamos em chamar de “racionalidade africana”. Ao invés de investirmos, como uma vez aconselhou o grande filósofo do Gana, Kwasi Wiredu, na integração das práticas terapêuticas africanas no grande sistema de medicina formal também como forma de as aprimorar e identificar o que é específico a elas (como, por exemplo, os chineses foram capazes de fazer) mistificamos o assunto desnecessariamente.
Então, quando pessoas começam a agredir agentes de saúde acusando-os de estarem a propagar a cólera, quando raparigas desmaiam nas escolas, ou quando as pessoas caçam albinos ficamos todos perplexos por causa desta esquizofrenia auto induzida. E queremos logo “educar” as pessoas sem nenhuma clareza sobre o que isso significa. Significa tirar as pessoas do “obscurantismo”? Significa dar aulas de moral e religião? Nesta questão específica dos albinos aposto que vão aparecer sabichões que nos vão aconselhar calma e com recurso a sua grande empatia com populações marginalizadas e seu profundo conhecimento de cosmogonias locais vão nos dizer com ar grave e erudito que é preciso primeiro perceber as lógicas locais. Não é irracional caçar albinos, vão dizer, é importante entender o sistema de valores e crenças que torna essa prática inteligível. Estou a caricaturar essa posição, claro, mas a situação é mais ou menos essa. Só que para mim este tipo de atitude “acadêmica” revela insuficiências metodológicas e analíticas, para já não falar de insuficiências epistemológicas. Muitas vezes as ciências sociais complicam o seu acesso à realidade por causa da sua maior preocupação em sempre se legitimarem perante as outras ciências. Sofrem dum complexo de inferioridade que as conduzem a abordagens muitas vezes problemáticas.
Por exemplo, o desafio que a caça aos albinos coloca às ciências sociais é simples. É o desafio de saber em que ela consiste. Só isso (bom, não bem, bem assim). Quantas pessoas já foram vítimas disto? Onde? Quais são as características socio-económicas desses lugares? Quais são as motivações que são dadas para isso por aqueles que foram apanhados? Qual é o perfil dessas pessoas que se envolveram nisso? São jovens do sexo masculino? Há alguma particularidade que os identifique? Etc. Precisamos de factos e não só de pegar na cabeça e gritarmos “nyandayeyo, estão a matar albinos, rápido, temos que educar o povo”. E o meu palpite é o seguinte: há maior probabilidade de atinar com a solução para este problema tentando encontrar resposta para a seguinte pergunta: que tipo de pessoa (ou, em que circunstâncias) estaria disposta a tirar a vida a alguém como forma de ganhar dinheiro? Só essa pergunta. Porque é evidente que não faz parte da nossa cultura matar gente para ganhar dinheiro, logo, haverá por aí gente muito especial com certa predisposição para isso. É essa gente que precisamos de entender, e não o sistema cultural ou sua irracionalidade.

Mas sei que isto, traduzindo literalmente uma expressão idiomática tsonga, é água em cima do pato… (é indiferente para quem devia pensar seriamente no assunto).(Elisio Macamo in Facebook)

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