Vi dois
„posts“ interessantes do Carlos Serra e da Cléo Mafu nos últimos dois dias. O
primeiro solidarizava-se com os albinos que estão a ser vítima de violência no
norte do País e a segunda mostrava-se inquieta em relação ao mesmo fenómeno. A
leitura dos comentários lá postados suscitou algumas curiosidades em mim,
sobretudo em relação à perplexidade com que costumamos abordar este tipo de
assuntos. A maioria dos comentários agrupava-se em torno de dois temas
principais. Um era sobre a necessidade de educar as pessoas e o outro era sobre
uma maior preocupação com a AMETRAMO – a Associação dos Médicos Tradicionais de
Moçambique – no sentido ou de limitar o seu raio de alcance, ou de a tornar
mais presente.
“Educar” é,
dum modo geral, a resposta de eleição para qualquer coisa que não entendemos.
Isto é, nós próprios não entendemos uma coisa e a primeira coisa em que
pensamos quando algumas pessoas fazem essa coisa é em educar essas pessoas. A
questão é: quem vai ser o educador e educar em quê? É para irmos dizer às
pessoas lá em Nampula que albinos são pessoas como nós os outros que padecem
duma condição rara com uma explicação científica? É para irmos dizer que não é
bom matar um ser humano? Que é irracional pensar que órgãos humanos possam
trazer riqueza? Que magia é demência? Reparem que todas estas perguntas já têm
uma descrição do problema que, por sua vez, já sugere uma resposta: o problema
é que há pessoas que não sabem o que é um albino e que motivadas por crenças
irracionais tiram a vida a albinos na vã expectativa de enriquecerem. É sob o
pano de fundo desta descrição do problema que a educação aparece como solução.
Se ensinarmos às pessoas que albinos são pessoas e que feitiçaria não funciona,
a caça ao albino vai acabar. Pudera.
Isto, para
mim, é sinal de perplexidade. É uma perplexidade que se alimenta de várias
fontes. Uma fonte é a conversa sempre adiada com o que insistimos em chamar de
cultura africana. Se for irracional do ponto de vista da ciência é cultura
africana, é a nossa maneira de abordar o mundo. Quanto mais bizarro for, mais
autêntico é. Espero que, já agora, o Américo Matavele (“maprovoco”),
tradicionalista confesso, venha aqui defender a caça ao albino como
manifestação da nossa cultura milenar. A conversa que temos adiado com a nossa
cultura é a que nos permitiria formular um argumento coerente que explica
porque certas práticas são aceitáveis e fazem parte da nossa cultura, e outras
não. Idealmente, esse argumento devia conter princípios que nos permitam
elaborar posições coerentes sobre qualquer prática que fira o nosso sentido ético
ou mesmo científico. O que não me parece correcto é manter esta relação
esquizofrénica com a cultura. Quando é bom – porque serve para defender alguma
posição – dizemos que é nossa cultura; quando nos embaraça, ou não entendemos,
dizemos que temos que educar as pessoas.
A outra
fonte é a ressaca da guerra da Renamo. Apareceram no nosso país estudiosos a
mostrarem que a adesão da população rural à Renamo explicava-se melhor com
recurso às crenças metafísicas africanas e o papel que elas desempenharam na
articulação da resistência às políticas colectivistas da Frelimo gloriosa. Esta
perspectiva, a partir dos finais dos anos oitenta, virou uma autêntica praga
nos meios académicos. Misturava a excitação compreensível do investigador
estrangeiro que “descobre” uma lógica local que lhe permite entrar em comunhão
com o moçambicano duma forma que nem o próprio investigador moçambicano é capaz
de fazer porque membro da elite urbana, e os argumentos circulares que
caracterizam os “estudos africanos”, particularmente na sua confusão
metodológica e analítica entre explicação e justificação. De repente, a
“cultura africana” ganhou conjuntura sob a forma da importância dada à
autoridade tradicional. O Ministério da Administração Estatal, num “black-out”
total de lucidez – mas impelido por alguns destes investigadores estrangeiros –
santificou a coisa, introduziu uma bifurcação horrível e incoerente no nosso
sistema administrativo e emulou categorias coloniais de classificação dos
moçambicanos em “civilizados” e “indígenas” sem, naturalmente, usar estes
nomes. Na ânsia de corrigir supostos erros do passado promoveu-se uma atitude
acrítica em relação a instituições e formas de exercício de poder que eu
considero retrógradas (para usar terminologia da Frelimo gloriosa).
Uma outra
fonte foi a elevação do charlatanismo à condição de representante legítimo da
racionalidade moçambicana. Esta frase é dura e injusta para aqueles que têm
conhecimento de plantas medicinais e têm ajudado muita gente sem acesso à
medicina formal. Mas ao criar uma categoria “medicina tradicional” sem um
conhecimento claro e sistemático das suas práticas, capacidades e habilidades –
apenas na base da crença na sua utilidade, já que existe… - promoveu-se uma
tensão desnecessária entre a medicina formal e a tal medicina tradicional. Esta
tensão atinge níveis de paroxismo quando algumas pessoas depois dizem que
existem “realidades” ou “coisas” que só são acessíveis a esta forma de
medicina. Bullshit. O que a gente chama de “medicina tradicional” não é prerrogativa
dos africanos ou dos não-europeus. Eu que me interesso pela história social
europeia – e mato essa sede lendo também romances históricos – fico espantado
quando encontro crenças e práticas igualzinhas ao que nós teimamos em chamar de
“racionalidade africana”. Ao invés de investirmos, como uma vez aconselhou o
grande filósofo do Gana, Kwasi Wiredu, na integração das práticas terapêuticas
africanas no grande sistema de medicina formal também como forma de as
aprimorar e identificar o que é específico a elas (como, por exemplo, os
chineses foram capazes de fazer) mistificamos o assunto desnecessariamente.
Então,
quando pessoas começam a agredir agentes de saúde acusando-os de estarem a
propagar a cólera, quando raparigas desmaiam nas escolas, ou quando as pessoas
caçam albinos ficamos todos perplexos por causa desta esquizofrenia auto
induzida. E queremos logo “educar” as pessoas sem nenhuma clareza sobre o que
isso significa. Significa tirar as pessoas do “obscurantismo”? Significa dar
aulas de moral e religião? Nesta questão específica dos albinos aposto que vão
aparecer sabichões que nos vão aconselhar calma e com recurso a sua grande
empatia com populações marginalizadas e seu profundo conhecimento de
cosmogonias locais vão nos dizer com ar grave e erudito que é preciso primeiro
perceber as lógicas locais. Não é irracional caçar albinos, vão dizer, é
importante entender o sistema de valores e crenças que torna essa prática
inteligível. Estou a caricaturar essa posição, claro, mas a situação é mais ou
menos essa. Só que para mim este tipo de atitude “acadêmica” revela
insuficiências metodológicas e analíticas, para já não falar de insuficiências
epistemológicas. Muitas vezes as ciências sociais complicam o seu acesso à
realidade por causa da sua maior preocupação em sempre se legitimarem perante
as outras ciências. Sofrem dum complexo de inferioridade que as conduzem a
abordagens muitas vezes problemáticas.
Por
exemplo, o desafio que a caça aos albinos coloca às ciências sociais é simples.
É o desafio de saber em que ela consiste. Só isso (bom, não bem, bem assim).
Quantas pessoas já foram vítimas disto? Onde? Quais são as características
socio-económicas desses lugares? Quais são as motivações que são dadas para
isso por aqueles que foram apanhados? Qual é o perfil dessas pessoas que se
envolveram nisso? São jovens do sexo masculino? Há alguma particularidade que
os identifique? Etc. Precisamos de factos e não só de pegar na cabeça e
gritarmos “nyandayeyo, estão a matar albinos, rápido, temos que educar o povo”.
E o meu palpite é o seguinte: há maior probabilidade de atinar com a solução
para este problema tentando encontrar resposta para a seguinte pergunta: que
tipo de pessoa (ou, em que circunstâncias) estaria disposta a tirar a vida a
alguém como forma de ganhar dinheiro? Só essa pergunta. Porque é evidente que
não faz parte da nossa cultura matar gente para ganhar dinheiro, logo, haverá
por aí gente muito especial com certa predisposição para isso. É essa gente que
precisamos de entender, e não o sistema cultural ou sua irracionalidade.
Mas sei que
isto, traduzindo literalmente uma expressão idiomática tsonga, é água em cima
do pato… (é indiferente para quem devia pensar seriamente no assunto).(Elisio Macamo in Facebook)
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