Há um certo sentido em que
podemos dizer que o conflito que opõe a Renamo ao Governo é a expressão duma
crise política que me parece mais profunda do que estamos preparados para
aceitar. Moçambique é uma república, mas o que isso significa para cada um de
nós não me parece claro. Há uma noção “cafreal” de república que se pode
facilmente depreender de várias intervenções nos espaços de discussão. É
herdeira do discurso político da Frelimo gloriosa e consiste numa interpretação
literal do termo “República” (res publica, isto é, o que diz respeito a todos)
para servir de suporte à indignação como quando reclamamos que as riquezas do
país pertencem a todos – o cavalo de batalha da sociedade civil
profissionalizada – ou que devem ser distribuídas de forma equitativa, o
principal discurso político. Fora dessa noção não consigo vislumbrar nenhum
outro entendimento. Isso incomoda-me, pois parece explicar algumas das
dificuldades que temos com este conflito.
Nós temos a sorte de não
precisarmos de re-inventar a roda em muitas coisas. Isso não significa, porém,
que o único que nos resta seja apenas copiar fielmente o que os outros fizeram.
Claro que não. Mas uma boa parte do trabalho de construção dum Estado-Nação
consiste em adequar o que os outros inventaram as nossas condições. A ideia
republicana foi formulada no Império Romano e, ao que me parece, aperfeiçoada
pelos americanos e um pouco, talvez, pelos franceses na sua revolução. O que
caracteriza a república é a definição da liberdade como não-dominação. Essa liberdade
implica duas coisas. Implica, primeiro, que nenhuma pessoa livre pode estar
sujeita à vontade de outrem. Se para eu ser o que quero ser preciso do aval de
outra pessoa, ou duma instituição, não posso dizer que seja livre. Mesmo também
quando a pessoa que me podia impedir de ser o que quero ser não o faz por
benevolência não posso dizer que seja livre. Liberdade é uma vida sem
restrições, nem limitações. É claro que isto não é absoluto, pois essa
liberdade termina quando afecta a liberdade dos outros. A liberdade implica,
segundo, que tenho o direito de interpelar criticamente aquele que me governa.
Isto é, a minha participação na administração da vida pública é fundamental
para a minha liberdade. A protecção deste meu direito de interpelar criticamente
quem me governa dá qualidade a minha liberdade. Este é o sentido profundo de
“República”. Construir uma república é adaptar estes princípios fundamentais as
nossas condições. Construir o Estado-Nação em Moçambique é procurar saber que
tipo de instituições precisamos de ter para protegermos esta liberdade. Talvez
seja importante dizer que o republicanismo não é liberalismo. O liberalismo é
apenas uma interpretação do republicanismo.
Moçambique é uma República, mas
tem republicanos? Duvido. A Frelimo, pela sua história, nunca foi republicana
no sentido em que expus essa noção aqui. Havia um pouco de Rousseau na sua
ideia de “soberania popular”, mas devido ao Marxismo que adoptou infletiu mais
para uma concepção Hobbesiana duma liberdade que é produzida por um Suserano de
quem depende tudo o resto. O abandono oficial do Marxismo e a adopção duma
constituição republicana democrática não alterou muita coisa. Para já essa
adopção foi formal com o “copy and paste” de constituições europeias. Os que
defenderam o Marxismo com convicção continuam a achar que o país estaria melhor
se eles tivessem a prerrogativa de definir o que é a liberdade para cada um de
nós. Os que abandonaram o Marxismo continuam convencidos de que eles é que
corporizam a vontade do povo. Ainda não vi, no nosso país, nenhuma intervenção
de peso da parte de juristas, cientistas políticos ou filósofos – para já não
falar de políticos – que indique um compromisso mais sério com o espírito
republicano. Antes pelo contrário, muitas intervenções sugerem quase sempre ou
a ausência desse espírito ou então uma tremenda confusão. Muitas intervenções
que leio (de juristas contra ou a favor do governo) raramente revelam um
compromisso com este espírito. São, na maior parte das vezes, interpretações
técnicas de leis. Acho isto muito pobre, mas sintomático.
A Renamo, também pela sua
história, nunca foi republicana e está ainda mais longe de o ser do que a
Frelimo. O seu credo é o despotismo disfarçado em demagogia. Há um pouco de
Frelimo gloriosa na Renamo actual. Quando se presta atenção ao discurso e à
prática do seu líder, mas também aos discursos e às práticas dos seus
colaboradores, sobretudo no que diz respeito às funções do Estado, à atitude em
relação à sociedade, etc., nota-se imediatamente que “democracia” é um termo
funcional, não é um valor. Serve para produzir um mito fundador (pai da
democracia) e serve para reclamar um espaço específico na arena política e
económica nacional que não garante necessariamente a liberdade dos outros, mas
sim a prerrogativa do chefe de conceder liberdade aos outros. Uma prova muito
simples do compromisso democrático da Renamo é a sua hostilidade ao alargamento
do diálogo político a outras forças, os seus constantes insultos à liderança do
MDM e a instrumentalização do diálogo para ganhos políticos particulares (isto
é, só para a Renamo).
Não se explica que a Renamo nunca
tenha adoptado a postura de formar uma frente comum com todas as outras forças
políticas para contestar o que considera ser a perversão da democracia no país.
E isso não se explica porque a sua preocupação central não é a democracia, mas
sim as suas prerrogativas, ou mais especificamente, as prerrogativas do seu
líder. É só ver a forma como ele trata os seus próprios colaboradores e gere o
seu partido para perceber que democracia tem um outro sentido naquelas hostes.
E há “intelectuais” que caiem nisto, mas percebe-se. Em todo o intelectual há
aquele lado romântico que nos leva a crer, contra todas as evidências, na nossa
capacidade de domesticarmos um líder guerrilheiro. Alguns destes “intelectuais”
padeceram do mesmo mal em relação a Samora Machel e encontraram justificação
para todos os seus desmandos por causa do mesmo tipo de fascínio… Para mim não
há dúvidas de que o país, nas mãos da Renamo, seria um grande retrocesso
justamente porque não só não tem espírito republicano como também o seu
principal credo é o despotismo. A Frelimo, pelas suas clivagens internas, não
tem espaço para o despotismo, mas a cultura do poder absoluto pode, como
infelizmente pareceu fazê-lo no último mandato de Guebuza, criar condições para
que indivíduos com este tipo de motivação ganhem supremacia.
Em relação ao MDM não me ocorre
quase nada. O partido insiste em andar a reboque da Renamo, mesmo que seja
maltratado e humilhado, e para além de frases vazias de conteúdo como
“Moçambique para todos” não revela muito que possa consubstanciar um espírito
republicano. É o partido que está melhor posicionado para cultivar esse
espírito, pois não tem as tradições militares dos outros dois e a sua luta por
espaço no contexto nacional é, no fundo, a luta que todos os moçambicanos
travam pela liberdade. Não está à frente de nenhum movimento cívico – apesar de
se auto-intitular de “movimento” – em prol do espírito republicano e contra o
espírito anti-democrático do diálogo entre a Frelimo e a Renamo. Fica à espera
do que de lá sair para se posicionar. Acresce-se a este vazio de liderança
cívica a extrema incoerência de algumas pessoas que se consideram intelectuais
– sobretudo nos jornais ditos independentes – que confundem hostilidade à
Frelimo com posição pró-democracia. Ainda há pouco li um texto de Machado da
Graça, articulista do Savana – o mesmo jornal que coroou o líder da Renamo
figura do ano – em que critica, com certa legitimidade, a postura do governo em
relação ao diálogo político, mas não aproveita esse momento para se distanciar
claramente do recurso à violência, do incitamento à sessação e à rebelião, dos
insultos aos órgãos do Estado, nada. E essa omissão reforça a ideia de que os
fins justificam todos os meios, um princípio diametralmente oposto à ideia
republicana.
Portanto, somos uma república,
mas não temos republicanos. É aqui onde me parece residir a crise política no
país. É pelo menos uma pista… (Elisio Macamo in facebook)
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