Um documento do
famigerado Serviço Nacional de Segurança Popular (SNASP), obtido pelo Ikweli-Centro
de Jornalismo Investigativo (Ikweli-CJI) sugere que os mais altos responsáveis do
antigo Comité Político Permanentedo Partido Frelimo
foi quem “orientou” a execução extrajudicial de presos políticos mantidos no
campo de reeducação de M’telela na província do Niassa. Dos membros desse órgão
do Partido Frelimo mencionados no documento, apenas
Sebastião Marcos Mabote é que faleceu. Os restantes ainda encontram-se entre
nós – Armando Emílio Guebuza, Alberto Joaquim Chipande e Marcelino dos Santos. Barnabé
Lucas Nkomo, autor do livro “Uria Simango: um homem, uma causa”, considera que
foi “encontrada a prova cabal” e que as “dúvidas começam a ficar dissipadas” sobre
aquilo que é considerado o crime mais bárbaro cometido pela direcção da
Frelimo, pouco depois da proclamação da independência nacional. Até hoje, a
direcção do Partido Frelimo tem-se pautado por uma posição ambígua quanto à
responsabilidade pelas execuções sumárias dos presos políticos moçambicanos. primeira
legislatura do Parlamento pluripartidário, SérgioVieira admitiu
publicamente que os presos políticos haviam sido executados por ‘traição’, para
anos depois atribuir as execuções a terceiros que agiam à revelia
do poder executivo moçambicano. Seja como for, os restos mortais dos rotulados
“reaccionários” sumariamente executados no Niassa não foram entregues
aos familiares para, como mandam os costumes eas tradições,
realizarem os funerais dos seus entes queridos.
Do documento de
acordo com o documento na nossa posse, a Direcção de Segurança dos Responsáveis
(DSR) do SNASP emitiu, a 8 de Novembro de 1978, a ordem de serviço Lga- N/78
SECRETO, onde informa os Serviços de Segurança dos Responsáveis (SSR), da
província do Niassa, do seguimento em viagem de Armando Guebuza, Marcelino dos
Santos, Alberto Chipande,Sebastião Marcos
Mabote (já falecido), para aquele ponto do país. Todos eles eram membros do
Comité Político Permanente do Partido Frelimo, órgão máximo daquela organização
durante o regime monolítico e totalitário. O mesmo documento informa ainda que
na delegação vinham incluídos Lagos Lidimo e Manuel Jeremias Chitupila. Quem
assina o documento é o director da DSR, Mateus Óscar Kida, hoje titular do
pelouro dos Combatentes do consulado de Armando Guebuza. Aos SSR cabia, de
acordo com o documento “...a missão de fazerem a protecção aos responsáveis do partido
e das FDS (NR: Forças de Defesa e Segurança) que irão orientar o acto da
transferência dos elementos mantidos no centro de reeducação dos
políticos”(Sic). O autor de “Uria Simango: um homem, uma causa” relata no seu ‘best-seller’
que quem conduziu os presos ao local das execuções sumárias foi o comissário
político do Ministério da Segurança- SNASP, Major Abel Assikala. Este integrava
uma delegação de alto nível que se deslocou propositadamente a M’telela em
viaturas oficiais do governo provincial de Niassa, na altura dirigido por
Aurélio Manave, entretanto, ele também já falecido. As ordens terão sido transmitidas pelo
então vice-ministro da Segurança, Salésio Teodoro Nalyambipano, em
cumprimento de uma decisão tomada pelo Comité Político Permanente
do Partido Frelimo. Nalyambipano é hoje presidente da Comissão de Títulos
Honoríficos e Condecorações, tendo desempenhado as funções de embaixador extraordinário
e plenipotenciário de Moçambique em Luanda por incumbência do Presidente
Chissano. De facto, o documento obtido pelo Ikweli-CJI diz que “o responsável máximo
da DP vai representar este Serviço...” Segundo apurámos, o Major Abel Assikala
era esse responsável. O autor de “Uria
Simango: um homem, uma causa” relata na sua obra que, aquando da sua abertura em
1976, o centro de reeducação de M’telela tinha cerca de três mil e seiscentos
presos políticos e quando este encerrou, nos inícios da década de oitenta, só
restavam cerca de quatrocentos detidos. Estes dados sugerem o extermínio de
mais de três centenas de nacionais.
É sabido que as
execuções das vítimas do conhecido Processo de Nachingwea tiveram lugar nas
cercanias da estrada que liga M’telela a Chiputo, no Niassa. A não ser que venha
a ser possível negar a autenticidade do documento a que temos vindo a fazer
referência, ficam dissipados os rumores e encontradas as datas precisas em
que se decidiu sobre o destino a dar ao grupo composto por Uria Simango, Joana Simeão,
Lázaro Nkavandame, Padre Gwengere, Raul Casal Ribeiro. Por esclarecer na sua
plenitude as execuções de Celina Simango, Lúcia Casal Ribeiro, Paulo Gumane,
Adelino Gwambe, Basílio Banda, Eugénio Zitha, entre outros. Quando a notícia de
que os denominados “reaccionários” haviam sido extrajudicialmente executados
corria o mundo, o governo de Samora Machel, através do Ministério da Segurança,
emitiu a ordem de acção 5/80 (ver caixa desta
matéria), para se justificar de tão ignóbil acção. Desde a eclosão deste
dossiê, que ao mais alto nível do partido Frelimo, o silêncio parece ter sido o
pacto assinado entre todos os actores envolvidos directamente no morticínio de
M’telela. Nunca ninguém quis assumir a sua parte na paternidade do plano macabro.
Fernando dos Reis Ganhão, primeiro reitor da Universidade Eduardo Mondlane
(UEM) e membro do Comité Central da Frelimo, disse nos últimos dias da sua vida,
em entrevista ao autor da obra “Uria Simango: um homem, uma causa”, que “a
ordem tinha sido de Aurélio Manave”. Ganhão transferia deste modo a
responsabilidade das execuções
sumárias para Manave, alegadamente por este ter ficado aborrecido com um ‘moço
que namorava com a sua filha’. Em “Memórias indeléveis dos ‘anos da peste’”,
(SAVANA, edição de 19 de Maio de 1995), Pita Filipe relata em pormenor o
episódio do tal moço, mas só que não existe qualquer relação entre este caso e as
execuções sumárias dos presos políticos mantidos em
M’telela.O “moço” que namorava a filha Anabela (falecida numa emboscada da
Renamo a caminho da Namaacha), era Manuel (Manolo) Cabral, irmão do fotógrafo
Ze Cabral, ainda vivo e residente em Maputo que de facto foi à reeducação, mas
parece que não tem nada a haver com M’telela). Com o documento que o SAVANA hoje
publica, fica clara a responsabilidade da direcção máxima do Partido Frelimo no
destino final dado a dissidentes políticos, fuzilados extrajudicialmente depois
de um julgamento popular em Nachigwea, nas vésperas da independência de Moçambique.O Ikweli-CJI foi
ouvir Barnabé Lucas Nkomo, o pesquisador moçambicano que escreveu sobre os
factos decorridos em M’telela. Para Nkomo, “com esta prova documental que me
parece autêntica, cai por terra a tese de que as figuras do topo da Frelimo
não sabiam de nada”. De acordo com a fonte ficam dissipadas as dúvidas sobre o ano
da execução dos ‘reaccionários’. “Foi em 1978, não tenho dúvidas”, disse Nkomo.
Em entrevista
concedida ao canal STV em 2010, Sérgio Vieira confirmou a autenticidade da
Ordem de Acção assinada por Jacinto Veloso, contrariando assim Óscar Monteiro
que, em entrevista a mesma estação televisiva considerara o documento de
“fictício”. Seja como for, não restam dúvidas de que a ordem de
execução dos presos políticos partiu da direcção máxima do Partido Frelimo. Numa
entrevista concedida à comunicação social moçambicana em Janeiro de 1991, o
então Presidente Joaquim Chissano afirmava: “em qualquer país a revolução tem
as suas regras e normas e é normal que esses indivíduos (os referidos presos políticos)
tenham sido tratados de acordo com essas normas”, tendo acrescentado: “neste
momento, em que queremos criar a unidade e harmonia seria bom que não
abríssemos esses dossiês.” Marcelino dos Santos, o número dois da hierarquia da
formação política no poder em Moçambique por altura das alegadas execuções em
1978, confirmou ao canal TVM que as execuções sumárias haviam sido ordenadas
pela direcção máxima do Partido Frelimo. Em entrevista concedida a Emílio Manhique
(programa «Singular» de 19 de Setembro de
1997), Marcelino dos Santos afirmava ter havido “a tentativa do inimigo de
buscar elementos moçambicanos descontentes, em particular aqueles que pudessem
ser-lhes bastantes úteis.” Na mesma entrevista, Marcelino dos Santos frisou:
“sobreveio aquela consciência que nós tínhamos inicialmente de que são
traidores e que, portanto, deveriam ser executados.” Segundo o investigador
britânico, Alex Vines, existiu um plano da Renamo para se desencadear um
assalto ao centro de reeducação onde se encontravam os dissidentes políticos
moçambicanos. Ao que apurámos, a Frelimo teve conhecimento desse plano, como
confirma Marcelino dos Santos, e que
visava transformar os presos
políticos, uma vez libertados do cativeiro, numa direcção legítima da oposição
moçambicana. Isto, quando a Renamo ainda dava os primeiros passos e não
dispunha de nomes sonantes a enquadrar a sua acção política, que a distanciasse
da paternidade rodesiana. A opção por um assalto ao campo de M’telela terá
surgido uma vez esgotadas as diligências feitas junto de Domingos Arouca para
que este assumisse a direcção da Resistência Nacional Moçambicana, o que não
aconteceu devido a divergências entre o líder da FUMO e Orlando Cristina.
*
Texto de Luís Nhachot-Coordenador da Ikweli-Centro de Jornalismo
Investigativo
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