“A FAMÍLIA só ficou a saber que a rapariga havia interrompido a
gravidez quando ela estava já a morrer. Quando a levaram ao hospital
descobriram que o útero estava danificado e a infecção já tinha invadido os
outros órgãos vitais do seu organismo”.Foi neste cenário sinistro que Ricardo
João, estudante, descreveu a forma como uma menina, sua vizinha de 18 anos,
perdeu a vida devido ao aborto feito fora do hospital e por uma pessoa não
qualificada.Esta jovem mulher, que residia na cidade de Maputo, não é a única
que morreu devido ao aborto inseguro no nosso país e no mundo. A Organização
Mundial da Saúde estima que, em cada um minuto, uma mulher perde a vida, a
nível mundial, devido a complicações relacionadas à gravidez ou ao parto,
o equivalente a cerca de 1.600 óbitos por dia.Em Moçambique, mais de 400
mulheres perdem a vida por 100 mil nascimentos vivos. Desses óbitos, 11 por
cento estão ligados ao aborto feito fora do hospital. Estes são dados
conhecidos, prevendo-se a ocorrência de mortes fora da unidade sanitária que
não são registadas no sistema de saúde. “O número de mortes maternas
equivale ao despenho de quatro em quatro horas de uma aeronave Boeing 747 (um
dos maiores do mundo). Quando o avião despenha o assunto é falado por todos, é
notícia na imprensa. Mas, esta tragédia silenciosa (aborto inseguro) que
acontece diariamente, não se fala”, observa Nafissa Osmar, médica
gineco-obstetra e presidente da Associação Moçambicana de Obstetras e
Ginecologistas (AMOG).Nafissa Osmar falava há dias num fórum onde se reflectia
sobre como intensificar a campanha “Por uma lei que descriminaliza a
interrupção voluntária da gravidez”, actividade realizada, em Maputo, à margem
das comemorações do Dia Global de Acção para o Acesso ao Aborto Seguro e Legal,
assinalado a 28 de Setembro. O debate foi organizado pela Rede de Defesa dos
Direitos Sexuais e Reprodutivos.
A Lei moçambicana proíbe a prática do aborto. Contudo, as mulheres
não deixam de fazê-lo. “Não há nenhuma Lei que conseguiu impedir que as
mulheres não façam o aborto”, refere Nafissa Osmar. Por falta de alternativas,
quando se vêem numa gravidez indesejada, as mulheres abortam às escondidas e em
condições deploráveis, usando métodos que colocam em risco as suas vidas.As que
não morrem ficam com sequelas graves, algumas por toda a vida devido ao tipo de
instrumento ou meio que usam para abortar. Há aquelas que ingerem ervas,
lixívia, gasolina, pólvora e café. Outras introduzem nos órgãos genitais,
instrumentos e raízes, folhas de plantas e medicamentos tais como o
permanganato de potássio.Em 2012, só a cidade de Maputo registou mais de mil
admissões de mulheres com complicações devido ao aborto inseguro. Do total, dez
perderam a vida devido a sepsia e dois por hemorragias. Estes dados excluem o
Hospital Central de Maputo (HCM), o maior do país.Devido à gravidade das
lesões, algumas mulheres lhes são tiradas o útero, outras ficam sem
possibilidade de voltar a engravidar o que aumenta a sua discriminação na
sociedade por não conseguirem conceber, explica a socióloga Maria José Arthur.As
principais vítimas de aborto inseguro são mulheres de todas as idades,
sobretudo raparigas, e com poucos rendimentos, residentes, na sua maioria, em
zonas rurais e, com desconhecimento do uso de contraceptivos modernos, uma vez
que as que têm mais meios podem ter acesso aos serviços de aborto seguro em
clínicas privadas e com todas as condições, fez notar Nafissa Osmar. “Não
estamos a favor do aborto. O ideal seria que todas as mulheres conseguissem
prevenir a gravidez indesejada. Mas a nossa realidade é outra. As mulheres
estão a morrer e temos que fazer algo para evitar essas mortes”, aponta a
gineco-obstetra, Nafissa Osmar. Em 1989, o Dr. Pascoal Mocumbi, na altura
ministro da Saúde, aprovou um regulamento interno que autorizou a prestação de
serviços de interrupção da gravidez, a pedido das mulheres que assim o
desejassem, o que contribuiu para salvar vidas. Contudo, esta norma não está a
ser respeitada em todas as unidades sanitárias do país porque não vai de acordo
com o que está no Código Penal.“Há directores de hospitais que são sensíveis à
questão da morte de mulheres e permitem a interrupção voluntária da gravidez no
hospital, mas há outros que não, por questões pessoais, religiosos e morais”,
aponta Maria José Arthur.
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