A
Liazzat Bonate, uma moçambicana que estuda o Islão e trabalha na Universidade
de West Indies, compartilhou recentemente um vídeo duma conferência realizada
em Washington sobre o “Extremismo no Norte de Moçambique”. Houve várias
intervenções interessantes. A dela por dar uma perspectiva histórica que
desdramatiza o conflito ao mostrar, se bem a entendi, que conflitos sobre o
Islão no seio da comunidade fazem parte da maneira como ele se constitui; a de
Yussuf Adam, historiador da UEM, que mostrou várias linhas de conflitualidade –
entre cristãos e muçulmanos, entre o estado e madereiros ilegais oriundos do
estrangeiro, entre as populações e as concessões, e entre grupos étnicos;
finalmente, a da Zenaida Machado, da Human Rights Watch, que se debruçou sobre
a conduta das forças de defesa e segurança e seus excessos na abordagem do
problema. Perante este quadro, ficou claro para mim que a conferência não era
sobre “extremismo”, pois este conceito, rigorosamente falando, descreve uma
postura política ou religiosa extrema, algo que a julgar pelos depoimentos
ainda não está assente como explicação para o que está a acontecer em Cabo
Delgado.
A
pressa em “enquadrar” fenómenos é inimiga do rigor analítico. Pode conduzir o
nosso olhar para certas coisas ao mesmo que desvia a nossa atenção do que
realmente conta. A violência em Cabo Delgado é um desafio muito grande para as
ciências sociais moçambicanas – e, felizmente, temos pessoas de calibre a lidar
com o assunto – mas é também interessante por tudo aquilo que ela nos diz sobre
a maneira como a política funciona no nosso País. É isso que me interessa
reflectir aqui. A forma perplexa como o Estado moçambicano reage à violência em
Cabo Delgado não mostra apenas as dificuldades que ele tem de lidar com este
assunto. Mostra também uma condição estrutural do nosso País que, compreendida,
pode ajudar a abordar melhor os problemas. É o problema da fragilidade do
Estado. Não me refiro à fragilidade no sentido em que o conceito é usado na
sociologia política africana – “estado frágil”, isto é incapaz de agir como
estado – mas sim a uma outra fragilidade tão bem descrita por um matemático
americano-libanês, Nicholas Nassim Taleb, no seu penúltimo livro com o título
“Antifragile”.
Ele
propõe três tipos de condições: frágil, robusto e antifrágil. Frágil é a
condição do que é vulnerável e pode ser destruído por choques externos. Robusto
é a condição do que resiste a esses choques. Antifrágil é a condição daquilo
que se fortalece com choques externos, portanto, o oposto do frágil. O problema
da nossa maneira de fazer política reside na nossa insistência em querermos
tornar o País robusto, algo que pela história colonial, estrutura económica
mundial e localização no continente africano dificilmente lograremos. Por causa
dessa insistência, tornamos o País cada vez mais frágil e, portanto,
vulnerável. O que devíamos fazer era ver como torná-lo antifrágil, o que
significaria sermos mais judiciosos na acção política. Ao invés de insistirmos
na ideia de que compete ao Estado resolver os problemas do povo, devíamos
apostar num Estado moderador das coisas, um Estado que cria condições, não
resolve directamente, e devolve a responsabilidade aos indivíduos e
comunidades.
Este
desiderato é difícil de alcançar por causa de quatro obstáculos: a própria
política, a academia, a sociedade civil e a esfera pública. A política não
ajuda porque não tem consciência das suas limitações. Já estamos em
pré-campanha e há um barulho ensurdecedor que vem das hostes da Frelimo a
celebrar feitos inexistentes, a criar, pelo abuso dos meios do Estado,
condições para que os resultados eleitorais sejam de novo motivo de conflito, a
ignorar problemas sérios que todos os partidos enfrentam, nomeadamente a
ausência gritante duma visão coerente de Estado, o que faz com que o campo
político se constitua como espaço de satisfação de interesses particulares.
Numa altura em que se desespera e morre em Cabo Delgado, o Presidente da
República parece muito empenhado em resolver um problema que se resolveu por si
próprio – com a morte de Dhlakama – esquecendo que essa “paz” não valerá sequer
uma quinhenta se a violência de Cabo Delgado fizer escola. Não se ouve, da
Frelimo, qualquer pronunciamento sério sobre o que esta violência significa
para o devir do País, que déficit político é que ela revela e que medidas
institucionais precisam de ser tomadas. Nada. Está tudo obcecado com o
desarmamento e integração dos homens armados, portanto, na fragilização do
Estado através de promessas que dificilmente serão mantidas sem recursos
próprios.
A
academia também não ajuda por duas razões. A primeira é que há uma incapacidade
evidente dos nossos intelectuais – incluo-me nesse grupo – de se tornarem
relevantes não pelas “soluções” que trazem aos problemas do País, mas sim pela
contribuição que fazem para um melhor entendimento dos seus problemas. Cada um
de nós insiste naquilo que aprendeu durante a formação e através duma
interpretação à letra estamos mais preocupados em mostrar que quem não pensa
como nós é burro e que, modo geral, o governo é composto por gente burra. A
segunda é que não existe a consciência de que o desafio não consiste em
encontrar soluções que funcionam num mundo ideal, mas sim soluções que têm em
conta a maneira como o País é. Porque a gente se frusta com isso, a gente
torna-se indiferente através de abordagens cínicas. Se a política nos perguntar
o que deve fazer em relação a Cabo Delgado, aposto que muitos de nós vamos
dizer que é preciso acabar com a corrupção e proteger as populações das
multinacionais. Nada, portanto.
A
sociedade civil que poderia ser um poder importante sucumbiu à sua própria
economia política. Ao invés de ser a voz dos interesses que compõem a
sociedade, ela transformou-se, efectivamente, num corpo social que se reproduz
a partir da instrumentalizaçao da indignação. A sua dependência de meios e de
discursos de fora tornou-se na sua principal razão de existência, razão pela
qual ela insiste em discursos moralizantes que reduzem os desafios enfrentados
pelo País a meros desafios técnicos – se a mentalidade dos governantes fosse
outra... A sua visão do País consiste nas narrativas coerentes que cada um de
nós pode construir a partir dos vocábulos da indústria do desenvolvimento se
tiver uma imaginação suficientemente fértil. Não revela nenhuma postura
política assente na promoção de princípios que viabilizem a nossa sociedade. É
tudo ao sabor do momento, razão pela qual as mesmas pessoas que lutam pela
integridade – supostamente porque ela seria essencial à consolidação da
democracia – não têm nenhum problema em emular líderes autoritários noutros
cantos de África.
Finalmente,
a esfera pública também ajuda pouco. Existem aqueles que se instalaram no
debate nacional por via das oportunidades criadas pelas redes sociais para que
cada opinião seja ouvida. Mesmo sem competência para se pronunciarem sobre
determinados fazem-no e com o côro de vozes de outros indivíduos perplexos que
lhes dão palmadinhas nas costas vão fazendo um nivelamento por baixo. Depois há
os militantes de partidos políticos que reduzem a sua participação no debate
público não só à defesa do seu partido – algo que é legítimo – mas à celebração
irresponsável de mérito onde ele não existe. O Presidente ofereceu uma
embarcação marítima a uma comunidade aflicta, por exemplo, ao invés de
reflectirem sobre esta maneira de “resolver” os problemas no País, se ela é
sustentável, põem-se a festejar – há quem festeje por razões profissionais,
isto é por ser pago para fazer esse trabalho de festejar, mas há muitos que o
fazem por um sentido problemático de militância. Esquecem que com isso cimentam
justamente uma das coisas que tornam o País frágil, nomeadamente esta ideia de
que o Chefe, não as condições que ele cria, é a solução para os problemas do
povo. Existem ainda os “independentes”, aqueles, portanto, que odeiam
visceralmente o partido no poder, mas não têm a coragem – ou vontade – de se
juntarem a um partido da oposição e, por isso, encontraram o seu destino na
reprovação militante de tudo que o governo faz. São meros amplificadores da
indignação. Não se interessam pela história, vivem num presente permanente que
faz de tudo o que aconteceu função das suas convicções actuais.
Acho
que o País precisa duma concepção de política como aprendizagem. Aconteceu o
desastre das dívidas ocultas. Muito bem: o que aprendemos dele? O que a Frelimo
aprendeu dele? Que medidas tomou para que isso não aconteça mais ou, se
acontecer, os efeitos sejam menos graves? Aconteceu o Idai e o Kenneth. Muito
bem: o que aprendemos desses ciclones? O que falhou para que os estragos fossem
desse tamanho? Como organizar a relação entre Estado e autoridade local?
Aconteceu a rejeição dos resultados eleitorais que conduziu a graves
escaramuças. Muito bem: o que aprendemos desse conflito? O que precisamos de
melhorar? Em cada uma destas coisas, lamento constatar, não aprendemos nada. A
Frelimo usou as dívidas ocultas para diabolizar alguns dos seus membros; o
governo usou o Idai para voltar a insistir num erro que já vem da primeira
República, nomeadamente aquela ideia de que uma operação técnica gigantesca é o
que precisamos para resolver o problema da vulnerabilidade aos desastres
naturais; sobre o conflito pós-eleitoral preferimos transformar o Estado numa
vaca leiteira para quem reclamou, mas continuamos a abusar do poder de Estado
para criar ressentimentos. O triste espectáculo do Presidente da República que
viaja pelo País – de certeza com recursos do Estado – em pré-campanha eleitoral
configura novos conflitos, pois a propalada “desorganização” da oposição é
directamente proporcional ao abocanhamento dos recursos pelo partido no poder.
Enfim...
(Professor Elísio Macamo)
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