terça-feira, junho 18, 2019

Frágil, robusto e antifrágil


A Liazzat Bonate, uma moçambicana que estuda o Islão e trabalha na Universidade de West Indies, compartilhou recentemente um vídeo duma conferência realizada em Washington sobre o “Extremismo no Norte de Moçambique”. Houve várias intervenções interessantes. A dela por dar uma perspectiva histórica que desdramatiza o conflito ao mostrar, se bem a entendi, que conflitos sobre o Islão no seio da comunidade fazem parte da maneira como ele se constitui; a de Yussuf Adam, historiador da UEM, que mostrou várias linhas de conflitualidade – entre cristãos e muçulmanos, entre o estado e madereiros ilegais oriundos do estrangeiro, entre as populações e as concessões, e entre grupos étnicos; finalmente, a da Zenaida Machado, da Human Rights Watch, que se debruçou sobre a conduta das forças de defesa e segurança e seus excessos na abordagem do problema. Perante este quadro, ficou claro para mim que a conferência não era sobre “extremismo”, pois este conceito, rigorosamente falando, descreve uma postura política ou religiosa extrema, algo que a julgar pelos depoimentos ainda não está assente como explicação para o que está a acontecer em Cabo Delgado. 
Resultado de imagem para Extremismo no Norte de Moçambique
A pressa em “enquadrar” fenómenos é inimiga do rigor analítico. Pode conduzir o nosso olhar para certas coisas ao mesmo que desvia a nossa atenção do que realmente conta. A violência em Cabo Delgado é um desafio muito grande para as ciências sociais moçambicanas – e, felizmente, temos pessoas de calibre a lidar com o assunto – mas é também interessante por tudo aquilo que ela nos diz sobre a maneira como a política funciona no nosso País. É isso que me interessa reflectir aqui. A forma perplexa como o Estado moçambicano reage à violência em Cabo Delgado não mostra apenas as dificuldades que ele tem de lidar com este assunto. Mostra também uma condição estrutural do nosso País que, compreendida, pode ajudar a abordar melhor os problemas. É o problema da fragilidade do Estado. Não me refiro à fragilidade no sentido em que o conceito é usado na sociologia política africana – “estado frágil”, isto é incapaz de agir como estado – mas sim a uma outra fragilidade tão bem descrita por um matemático americano-libanês, Nicholas Nassim Taleb, no seu penúltimo livro com o título “Antifragile”.

Ele propõe três tipos de condições: frágil, robusto e antifrágil. Frágil é a condição do que é vulnerável e pode ser destruído por choques externos. Robusto é a condição do que resiste a esses choques. Antifrágil é a condição daquilo que se fortalece com choques externos, portanto, o oposto do frágil. O problema da nossa maneira de fazer política reside na nossa insistência em querermos tornar o País robusto, algo que pela história colonial, estrutura económica mundial e localização no continente africano dificilmente lograremos. Por causa dessa insistência, tornamos o País cada vez mais frágil e, portanto, vulnerável. O que devíamos fazer era ver como torná-lo antifrágil, o que significaria sermos mais judiciosos na acção política. Ao invés de insistirmos na ideia de que compete ao Estado resolver os problemas do povo, devíamos apostar num Estado moderador das coisas, um Estado que cria condições, não resolve directamente, e devolve a responsabilidade aos indivíduos e comunidades. 

Este desiderato é difícil de alcançar por causa de quatro obstáculos: a própria política, a academia, a sociedade civil e a esfera pública. A política não ajuda porque não tem consciência das suas limitações. Já estamos em pré-campanha e há um barulho ensurdecedor que vem das hostes da Frelimo a celebrar feitos inexistentes, a criar, pelo abuso dos meios do Estado, condições para que os resultados eleitorais sejam de novo motivo de conflito, a ignorar problemas sérios que todos os partidos enfrentam, nomeadamente a ausência gritante duma visão coerente de Estado, o que faz com que o campo político se constitua como espaço de satisfação de interesses particulares. Numa altura em que se desespera e morre em Cabo Delgado, o Presidente da República parece muito empenhado em resolver um problema que se resolveu por si próprio – com a morte de Dhlakama – esquecendo que essa “paz” não valerá sequer uma quinhenta se a violência de Cabo Delgado fizer escola. Não se ouve, da Frelimo, qualquer pronunciamento sério sobre o que esta violência significa para o devir do País, que déficit político é que ela revela e que medidas institucionais precisam de ser tomadas. Nada. Está tudo obcecado com o desarmamento e integração dos homens armados, portanto, na fragilização do Estado através de promessas que dificilmente serão mantidas sem recursos próprios.
Imagem relacionadaA academia também não ajuda por duas razões. A primeira é que há uma incapacidade evidente dos nossos intelectuais – incluo-me nesse grupo – de se tornarem relevantes não pelas “soluções” que trazem aos problemas do País, mas sim pela contribuição que fazem para um melhor entendimento dos seus problemas. Cada um de nós insiste naquilo que aprendeu durante a formação e através duma interpretação à letra estamos mais preocupados em mostrar que quem não pensa como nós é burro e que, modo geral, o governo é composto por gente burra. A segunda é que não existe a consciência de que o desafio não consiste em encontrar soluções que funcionam num mundo ideal, mas sim soluções que têm em conta a maneira como o País é. Porque a gente se frusta com isso, a gente torna-se indiferente através de abordagens cínicas. Se a política nos perguntar o que deve fazer em relação a Cabo Delgado, aposto que muitos de nós vamos dizer que é preciso acabar com a corrupção e proteger as populações das multinacionais. Nada, portanto.

A sociedade civil que poderia ser um poder importante sucumbiu à sua própria economia política. Ao invés de ser a voz dos interesses que compõem a sociedade, ela transformou-se, efectivamente, num corpo social que se reproduz a partir da instrumentalizaçao da indignação. A sua dependência de meios e de discursos de fora tornou-se na sua principal razão de existência, razão pela qual ela insiste em discursos moralizantes que reduzem os desafios enfrentados pelo País a meros desafios técnicos – se a mentalidade dos governantes fosse outra... A sua visão do País consiste nas narrativas coerentes que cada um de nós pode construir a partir dos vocábulos da indústria do desenvolvimento se tiver uma imaginação suficientemente fértil. Não revela nenhuma postura política assente na promoção de princípios que viabilizem a nossa sociedade. É tudo ao sabor do momento, razão pela qual as mesmas pessoas que lutam pela integridade – supostamente porque ela seria essencial à consolidação da democracia – não têm nenhum problema em emular líderes autoritários noutros cantos de África.
Finalmente, a esfera pública também ajuda pouco. Existem aqueles que se instalaram no debate nacional por via das oportunidades criadas pelas redes sociais para que cada opinião seja ouvida. Mesmo sem competência para se pronunciarem sobre determinados fazem-no e com o côro de vozes de outros indivíduos perplexos que lhes dão palmadinhas nas costas vão fazendo um nivelamento por baixo. Depois há os militantes de partidos políticos que reduzem a sua participação no debate público não só à defesa do seu partido – algo que é legítimo – mas à celebração irresponsável de mérito onde ele não existe. O Presidente ofereceu uma embarcação marítima a uma comunidade aflicta, por exemplo, ao invés de reflectirem sobre esta maneira de “resolver” os problemas no País, se ela é sustentável, põem-se a festejar – há quem festeje por razões profissionais, isto é por ser pago para fazer esse trabalho de festejar, mas há muitos que o fazem por um sentido problemático de militância. Esquecem que com isso cimentam justamente uma das coisas que tornam o País frágil, nomeadamente esta ideia de que o Chefe, não as condições que ele cria, é a solução para os problemas do povo. Existem ainda os “independentes”, aqueles, portanto, que odeiam visceralmente o partido no poder, mas não têm a coragem – ou vontade – de se juntarem a um partido da oposição e, por isso, encontraram o seu destino na reprovação militante de tudo que o governo faz. São meros amplificadores da indignação. Não se interessam pela história, vivem num presente permanente que faz de tudo o que aconteceu função das suas convicções actuais.
Imagem relacionada 
Acho que o País precisa duma concepção de política como aprendizagem. Aconteceu o desastre das dívidas ocultas. Muito bem: o que aprendemos dele? O que a Frelimo aprendeu dele? Que medidas tomou para que isso não aconteça mais ou, se acontecer, os efeitos sejam menos graves? Aconteceu o Idai e o Kenneth. Muito bem: o que aprendemos desses ciclones? O que falhou para que os estragos fossem desse tamanho? Como organizar a relação entre Estado e autoridade local? Aconteceu a rejeição dos resultados eleitorais que conduziu a graves escaramuças. Muito bem: o que aprendemos desse conflito? O que precisamos de melhorar? Em cada uma destas coisas, lamento constatar, não aprendemos nada. A Frelimo usou as dívidas ocultas para diabolizar alguns dos seus membros; o governo usou o Idai para voltar a insistir num erro que já vem da primeira República, nomeadamente aquela ideia de que uma operação técnica gigantesca é o que precisamos para resolver o problema da vulnerabilidade aos desastres naturais; sobre o conflito pós-eleitoral preferimos transformar o Estado numa vaca leiteira para quem reclamou, mas continuamos a abusar do poder de Estado para criar ressentimentos. O triste espectáculo do Presidente da República que viaja pelo País – de certeza com recursos do Estado – em pré-campanha eleitoral configura novos conflitos, pois a propalada “desorganização” da oposição é directamente proporcional ao abocanhamento dos recursos pelo partido no poder.

Enfim...

(Professor Elísio Macamo)

0 comments: