As declarações do
Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, na ilha de Gorée a querer
sublinhar uma falsa excepcionalidade portuguesa na abolição da escravatura, o
caso da Cova da Moura com a acusação a 18 de polícias da esquadra de Alfragide
de “racismo, agressões, tortura, sequestro, falsificação de autos e ocultação
de provas”, as declarações racistas de André Ventura sobre a comunidade cigana
e as recentes declarações de Pedro Passos Coelho sobre a nova lei de imigração
revelaram a natureza ideológica deste debate.
E revelaram
sobretudo quão armadilhado o querem aqueles que, de repente, se puseram em
campo para negar o carácter estrutural do racismo na sociedade portuguesa,
procurando acantoná-lo a uma dimensão moral e não política.
Este debate
torna-se o pretexto para ressuscitar uma cruzada pela defesa da
excepcionalidade lusitana quanto ao racismo. Os seus combatentes enfileiram-se
na defesa de uma narrativa segundo a qual Portugal não é um país racista. Um
verdadeiro exercício de negação.

Enquanto isso, no
espaço mediático, posicionam-se tutores de uma certa visão histórica — entre os
quais os historiadores João Pedro Marques e Rui Ramos — tentando impor uma
leitura higiénica do passado colonial racista para deslegitimar a possibilidade
de o relacionar com as suas consequências no presente.
Esta armada tem
“senadores” da República como Pacheco Pereira e António Barreto a insurgirem-se
contra a ditadura do politicamente correcto. O argumento é que o “policiamento
do discurso” sobre “os problemas sociais” nas comunidades negras e ciganas
estaria a impedir uma discussão profícua e uma abordagem serena da questão
racial em Portugal.
A argumentação
oscila entre fazer crer que o politicamente correcto serve para impedir que se
fale com abertura dos problemas causados por sujeitos racializados e, com isso,
perpetuá-los porque, no fundo, não existe vontade de os denunciar; por outro
lado, afirma que os sujeitos racializados são também racistas e que parte
substancial do discurso anti-racista é enviesado e não corresponde à realidade.
Daqui resulta uma estratégia simultaneamente de negação do racismo e de
culpabilização das vítimas de racismo.
De entre todos os
discursos, estes são os mais perigosos e com maior alcance ideológico. É
abjecta a generalização segundo a qual, entre as comunidades negras e ciganas
haveria sempre muita gente que, não só não cumpriria a lei, como representaria
um custo social elevado para a sociedade. Só que ela impõe uma leitura do
racismo como mera questão moral entre indivíduos e não uma questão
profundamente política.
É um discurso que
se inscreve numa lógica de banalização do racismo, pois desconsidera o seu
carácter estrutural, optando por nunca falar do trajecto histórico das relações
de poder — alavanca do racismo — e, consequentemente, da exclusão e da
marginalização socioeconómica destas comunidades.
Quando José
Pacheco Pereira diz que André Ventura tem razão quando acusa a comunidade
cigana de “viver de subsídios e acima da lei”, quando Rui Ramos ou José Manuel
Fernandes se insurgem contra o politicamente correcto e defendem que as
declarações de Passos Coelho nada têm de xenófobas, quando João Pedro Marques
se insurge contra a “ditadura da memória”, quando António Barreto diz que
“Portugal não é um país racista, mas há racistas”, entre eles “africanos e
ciganos”, o que está em causa é uma tentativa de deslegitimar a luta contra o
racismo e a afirmação ideológica de que Portugal não é um país racista.

Nenhum destes
defensores da excepcionalidade lusitana incorpora na sua análise dados
quantitativos e qualitativos relativos à segregação territorial, à violência
policial racista, à discrepância no trajecto escolar e académico entre a
maioria da sociedade e estas comunidades, à diferença abissal da taxa de
encarceramento observada entre estas comunidades e o resto da sociedade, às
diferenças salariais entre os sujeitos racializados e a maioria da sociedade, à
sua ausência nos espaços de poder real ou simbólico, e também não fazem uma
análise das representações racistas e colonialistas nos manuais
escolares.
Na verdade, a
agenda desta armada da negação nunca foi discutir o racismo nem reconhecer a
sua existência e consequências na vida de quem o sofre. Foi sim construir uma
hegemonia cultural capaz de produzir o consenso social da banalização do
racismo. O que António Barreto e companhia não querem admitir é que o racismo
de Estado é uma besta escondida no racismo estrutural institucional e constitui
o lado sombrio da República pois, como ainda sentencia Mbembe, “a raça
constitui a região selvagem do humanismo europeu, a sua besta”.
Quanto mais esta
nossa elite se agarra à abstracta retórica de um universalismo imaculado, mas
cujos prolongamentos históricos ainda se traduzem na marginalização social ou
na repressão policial, mais ela permitirá um estado repressivo, um nacionalismo
envergonhado, profunda e estruturalmente racista!

A efervescência
deste debate tem de ter consequências práticas na produção legislativa de
combate contra o racismo e na implementação de políticas públicas dirigidas aos
problemas concretos com que se confrontam os sujeitos racializados. Quero
acreditar que as recentes declarações públicas do ministro adjunto, Eduardo
Cabrita, sobre a necessidade de políticas direcionadas às comunidades negras e
ciganas, abrindo a janela para a recolha de dados étnico-raciais, seja o início
de uma nova centralidade politica do racismo na governação. A Década dos
Afrodescendentes, decretada pela ONU em 2014, não pode ser uma oportunidade
perdida, senão a fábula de um país com racistas sem racismo perdurará e todos
teremos a perder.
O autor MAMADOU BA escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
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