Quando o
país passou para o multipartidarismo, coube a Brazão Mazula presidir a primeira
Comissão Nacional de Eleições (CNE) que geriu as eleições de 1994. Docente de
carreira, Brazão Mazula passou de presidente da CNE para reitor da Universidade
Eduardo Mondlane (UEM) cuja biblioteca central leva seu nome. Depois de cargos
politicamente sensíveis, Brazão Mazula parece estar já à vontade para colocar
os pontos nos is.
O país, Professor, não está bom. Ou está?
O país não
está bom por várias situações, mas eu relevo muito a situação de guerra porque
o cidadão não se sente à vontade de circular pelo país, anda com receio e medo
de ser morto. Sente- -se retraído a fazer investimentos porque numa situação de
guerra o investimento é praticamente uma perda. A guerra dificulta o avanço em
vários sectores como turismo, agricultura, extracção de recursos naturais e
mesmo em sectores sociais como educação e saúde. Mas o país não está bom também
pelo custo de vida. A inflação é alta, o metical está a derrapar, os produtos
estão a encarecer. Os nossos bolsos estão sem recursos, mas temos famílias, a
educação dos filhos e a saúde custam dinheiro. Mas relevo a guerra porque estou
convencido que sem ela a situação seria muito mais favorável ao cidadão. Sem
guerra não haveria esta economia de guerra que hoje estamos a assistir e que
obriga o desvio dos poucos recursos financeiros para ela. Estou a falar isto da
parte do Governo, mas também da Renamo porque a gente se pergunta onde é que
estas duas forças encontram dinheiro para fazer guerra porque a guerra carcome
a economia e as poucas finanças que há no país. Temos de terminar a guerra,
rapidamente, até porque até hoje não vejo a sua razão.
O Professor sempre defendeu que faltou uma reconciliação verdadeira entre
os moçambicanos que permitisse que todos se sentassem à mesma mesa e comessem
juntos. O que acha que proibiu que os moçambicanos se reconciliassem depois do
AGP? A reconciliação
nacional não é assinatura, nem um acto de pouca duração. A reconciliação
nacional é um gesto, uma atitude, e um compromisso permanente. O que falhou
foram duas coisas. Primeiro a monitoria permanente da implementação do AGP.
Segundo a definição de métodos para a reconciliação, nomeadamente, como é que a
reconciliação nacional seria feita. O único lugar que se fez foi um pouco no
exército e, na altura, um pouco no Conselho Constitucional e na CNE, mas essas
são instituições com um cariz próprio, mas faltou definir como é que se faz a
reconciliação, por exemplo, num Ministério da Educação ou da Indústria e
Comércio, na economia, num país de grandes recursos naturais, mas sobretudo o
homem.
Nós somos um país de muitas culturas, então, como é que se faz então a
reconciliação nessas condições? Quando a África do Sul passou
para a democracia, Nelson Mandela definiu que em todas as instituições
públicas, ao menos, deviam estar representadas as três raças do país: negros,
brancos e indianos. Espero que com estas negociações não cometamos a mesma
falha, OU SEJA, que se defina como se faz a reconciliação no dia-a-dia em todos
os sectores, por exemplo, na rádio, na escola, na cultura, turismo, na justiça.
Está a falar de partilha de poder e de inclusão? Estou a
falar de tudo. Reconciliação significa não excluir a ninguém por nenhum motivo.
Por exemplo, esta situação de guerra a que chegamos é o problema de exclusão
social. Mesmo numa família, os pais devem conviver com todos os filhos da mesma
maneira.
Em Moçambique quem está excluir a quem? Todos se
excluem, mas o Governo é mais responsável. Todo o partido que estiver no
Governo é mais responsável porque ele é que gera o bem público. Quando se exige
que para alguém ter uma oportunidade seja membro de um partido, isso é exclusão
e há muita gente que se queixa disso. Eu conheço empresários, que não posso
dizer nomes, que dizem “Doutor, nós temos de ser assim porque senão não vamos
ter dinheiro no banco”. Eu estive com uma grande empresa neste país, que também
não vou dizer o nome, que me disse “Doutor, nós temos orienta- ção em como só
devemos admitir membros do partido Frelimo”. Foi um empresário estrangeiro e
ele não inventou isso. Portanto, a Constituição é boa, mas a prática é
diferente, então, quando estou a falar de exclusão, não estou a falar de ânimo
leve e estou convencido que este (guerra) é um problema de exclusão social.
Vê uma Frelimo, um partido libertador, preparada para essa partilha de
poder, essa inclusão ousada? Nem é a Frelimo como tal, talvez alguns dirigentes, mas
aí cabe ao partido no poder, neste caso a Frelimo, que espera agora o próximo
congresso, que reflicta seriamente sobre o seu papel na dinamização social, na
integração do cidadão na sociedade, na reconciliação porque são todos moçambicanos,
mas o mesmo também a Renamo terá de repensar se este (guerra) é o mé- todo de
resolver os problemas. Eu não concordo que seja um método racional de
reivindicar direitos. A Renamo tem de enveredar por métodos políticos e que ela
pró- pria assinou no AGP.
Para além da exclusão que apontou como a principal causa desta guerra, a
Renamo sempre evocou fraude eleitoral. Ora, foi o primeiro presidente da
Comissão Nacional de Eleições e a pergunta é: o sistema eleitoral moçambicano
permite fraudes? A fraude é um desvio intencional aos procedimentos que a
Lei eleitoral estabelece. É necessário provar que, de facto, houve uma intenção
deliberada para desviar o que a Lei eleitoral diz. Segundo, há erros e falhas.
Nós, em 94 cometemos falhas, mas não como acções deliberadas. Não digo que não
haja fraude, até porque a pró- pria Lei define quando é que há fraude. O
problema é que todo o político e todos os partidos políticos quando vão às
eleições querem ganhar. Que erros cometeram nas elei- ções de 1994? Por exemplo
incumprimento de datas. A Lei eleitoral estabelecia datas, mas pelas
dificuldades de comunicação e transporte, não era possível em algumas acções,
mas a Lei eleitoral previa que a CNE recorresse à Comissão Permanente do
Parlamento que estava sempre atenta tivemos uma grande colaboração nesse
sentido. Terá na altura, enquanto presidente da CNE, recebido alguma pressão
para ir a uma direcção e não a outra? Confesso que em nenhum momento. Primeiro
porque na CNE havíamos decidido que em todo o momento íamos integrar todos os
partidos, por isso, sabiam o que estava a acontecer e, às vezes, antes de
tomarmos algumas decisões, ouvíamos os partidos todos. Nós também tínhamos
educação cívica entre nós mesmos membros da CNE e do STAE, ou seja, mostrar que
éramos obrigados, por uma questão de consciência e responsabilidade, a sermos
verdadeiramente imparciais.
Em 2014 concedeu uma entrevista ao Diário da Zambézia, em Quelimane, na
qual dizia que estávamos perante uma guerra e não tensão político-militar como
se tenta suavizar a situação; uma guerra que, estamos a citá-lo, beneficiava
algumas pessoas e serve de acumulação de riqueza, daí que esses poucos defendem
que a guerra prevaleça. Dois anos depois, mantém esse entendimento? E quem são
essas pessoas que ganham com o sofrimento de todo um povo?
Lembro muito bem dessa afirmação e ainda a retomo. As populações que estão a
morrer não querem guerra, as crianças não querem guerra, a mulher grávida ou
que está no hospital doente não quer guerra. Só uma minoria é que quer a
guerra. Não digo que todos os que vão à guerra, mas os que mandam fazer guerra
são os que beneficiam. O soldado é enviado, mas ele tem de cumprir, mas não
quer dizer que ele quer guerra. A história da humanidade mostra que os grandes
generais não são aqueles que mandam fazer guerra, são aqueles que antes de
decidir pela guerra, fazem todo o esforço para evitar a guerra. A última
hipótese, mas é mesmo a última hipótese. Não vou muito longe. Eduardo Mondlane,
na altura, tentou todos os meios possíveis para que houvesse negociações com o
Governo colonial português. Foram viagens imensas, mas só em última hipótese é
que decidiu ir à luta armada. Eu pergunto-me: esta guerra era a última decisão
para resolver estes problemas. Não era. Há pessoas que querem a guerra porque
dela tiram benefícios, aumentam a riqueza, tiram oportunidades, mas tenho certeza
que esses beneficiários não é o povo moçambicano. Disse, no início desta
entrevista, que a reconciliação não é uma questão de assinatura, mas sim de uma
acção permanente.
Como é que tem acompanhado os desenvolvimentos do diálogo entre o Governo e
a Renamo com mediação internacional? Vê ali alguma luz no “O Governo e a
Frelimo devem ser muito frontais e muito corajosos se quiserem continuar a
governar” fundo do túnel? Alimento grande esperança porque é a única via para
solucionar um problema. A segunda razão é que vejo seriedade quer nas duas
delegações, quer também nos mediadores. É claro que uma mediação tem de criar
confiança de ambas as partes que já perderam, de maneira que ao assinar o
futuro acordo ninguém duvide sobre o que o outro pode fazer e trair. É claro
que todos nós estamos já impacientes porque estamos a sofrer a guerra, mas é necessário
confiar neles e eu tenho esperança de que haverá uma luz para a saída, mas nós
também temos de apoiá-los, cada um a seu nível, e não atrapalhá-los. O que lhe
parecem os resultados até aqui alcançados na mesa negocial? Percebi que há três
passos. O primeiro é entre as delegações e os mediadores que chegaram a alguns
entendimentos que ainda não é um acordo final, mas sim uma base para o
presidente da República e o presidente da Renamo poderem conversar. Depois daí
tem de ser ratificados pela Assembleia da República. Portanto, neste momento,
ainda não houve consensos, há bases porque o que os negociadores e os
mediadores estão a fazer é criar bases de entendimento e só no fim porque até
lá pode haver algumas alterações desses entendimentos parciais, o que é normal.
E o que acha da actual Lei eleitoral em que quem vence leva tudo? Os partidos
políticos, através da Assembleia da República, acordaram uma Lei e têm de
cumprir essa Lei. Se a Lei eleitoral diz que aquele que ganha leva tudo, tem de
se cumprir essa Lei. Pode se discutir se, perante os problemas que sempre
surgem, essa lei deve ou não continuar. A legislação eleitoral tem de ser
repensada. Se no fim de todas as eleições há conflitos que até chegam à guerra
e a razão for a Lei, então que se repense se de facto deve ser assim ou não.
Acha que é coisa doutro mundo a nomeação de governadores da Renamo como o
partido de Afonso Dhlakama exige e, aliás, condicionando a paz a este partida? Aí
há duas coisas. Uma se a reivindicação da Renamo é ou não justa e eu diria não
está de acordo com a Lei. Dói à Renamo ouvir isso, mas tem de saber que as Leis
eleitorais até aqui foram para eleição do presidente da República, aquele que
ganha no total de votação no país. Tendo mais simpatizantes numa província e
menos noutra, mas é nesse somatório de 50+1 que o presidente ganha. Não está a
dizer a Lei que quem tiver mais votação numa província ganha. A outra questão é
se Moçambique deverá continuar assim. Voltou à primeira questão. Se esta for a
causa de conflitos pós-eleitorais, então que se repense na Lei, mas não deve
através da guerra, tem de se discutir mecanismos próprios e no fim a Assembleia
da República tem de aprovar uma Lei…há países… talvez isso vai escandalizar
muita gente, mas eu penso que o futuro de Moçambique é uma Federação. Uma
República Federal ou Federativa porque Moçambique é um país multicultural. Cada
província é uma realidade que depende de outra província. São culturas
diferentes, são visões diferentes, então, na minha perspectiva, nada impede que
amanhã Moçambique opte pelo Federalismo que acho que seria uma solução. Isto é,
um país em que as províncias nomeiam os seus governadores, como agora os
deputados das Assembleias provinciais e os governadores poderá ser por eleição
directa ou via Assembleia provincial, mas depois havia também uma legislação
que garanta a unidade do país. O facto de ser um país Federado não significa
que cada província ou Estado é uma República. Eu penso que é uma solução porque
enquanto não for Federação, Moçambique vai sempre continuar com estes
conflitos.
Então faz sentido a criação de autarquias provinciais em Moçambique? Sim,
faz sentido. Proposta pela Renamo? Eu não digo proposta pela
Renamo, mas a Constituição não recusa autarquias provinciais, abre
possibilidades para autarquias provinciais mas tem depois de ser legislado por
uma legislação complementar. A ideia de um Moçambique Federado não é nada menos
que uma descentralização do poder. Ora, a história recente deste país lembra-nos
uma Frelimo a chumbar, sem A nem B, um projecto da Renamo para as autarquias
provinciais… É diferente de Federação. Em Federação, na prática, cada província
é um Estado. Há uma Constituição nacional que rege todo o território, mas há
algumas áreas que só a estrutura central pode realizar. Por exemplo, a defesa
da pátria não pode estar entregue a qualquer Estado ou província. Algumas
relações internacionais não podem ser entregues a qualquer província, mas
também a estrutura central do país tem de velar pelo equilíbrio de crescimento
e desenvolvimento económico porque cada província ou Estado são diferentes em
termos de recursos naturais. E depois é a contribuição de cada Estado, cada
província, para as finanças centrais. A Federação obriga a que a província
produza e faça receitas e estabelece-se uma quota que a província tem de enviar
para o poder central, não é como agora em que a província envia tudo ao poder
central que é que depois divide o bolo. Depois a província cria a Assembleia e
a Assembleia tem a sua Constitui- ção e Legislação local, mas que não pode ir
contra a Constituição geral da Nação. É descentralização ao mais alto nível. O
que determina a Federação é a diversidade cultural de um país. Isso é
importante. De qualquer das formas, a Federação nos remete mais uma vez à
questão da inclusão.
Temos condições para embarcarmos numa Federação tendo em conta o conceito
de inclusão que enunciou há pouco, uma inclusão em tudo?
Tudo se aprende. E é uma questão também de boa vontade política. Aceitar
primeiro discutir essa questão, não como um tabu porque nós estamos com receio
e medo de que uma iniciativa dessas (Federalismo) é contra a unidade nacional.
Não, não é contra a unidade nacional, pelo contrário consolida a unidade
nacional porque todos se sentem integrados na mesma pátria.
Enquanto não avançamos para essa profunda transformação da organização do
poder político, o que pode ser feito “ontem”, para devolver a paz aos
moçambicanos? Aquelas duas questões: definir mecanismos reais de
reconciliação e monitora desse processo.
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