Já
que a figura que dirigia o país na altura em que o país se endividou é histórica
na Frelimo, participou na luta armada de libertação nacional, é um camarada das
trincheiras, a sua possível penalização não pode criar ruptura no seio da
Frelimo?
É
previsível que provoque ruptura, porque Guebuza tem muitos apoiantes
nos vários níveis da governação, que ele colocou lá e que beneficiavam da ligação
com ele. Creio
que é por isso que o governo actual insiste em assumir a responsabilidade
pelos desmandos do
governo de Guebuza, e recusa responsabilizá-lo. A minha opinião é: se
a ruptura acontecer, que venha. Preparemo-nos para enfrentá-la. Somos a
maioria, uma maioria consciente, engajada e não comprometida com
interesses sórdidos. Um fenómeno que me deixa intrigado: como
foi possível que um camarada, que deu provas de nacionalismo e
patriotismo, a certa altura se deixe dominar pela ganância e desgrace o seu país
e o seu povo? Estes apetites já existiam nele quando se engajou na luta,
ou surgiram mais tarde? Não sei a resposta. Mas em certa medida nós próprios
somos responsáveis, por
não termos reagido quando começámos a detectar esses comportamentos. Por medo, estávamos sempre
a elogiá-lo e a considerar certo tudo o que ele fazia. Até encorajávamos. Por
exemplo, considerávamos
normal e desejável que a nossa televisão transmitisse constantemente, de hora
em hora, programas
de elogio ao chefe: “as realizações de Armando Emílio Guebuza” está ainda
fresca na nossa memória. Ou a
transmissão em directo da festa do seu aniversário pela TVM, durante 7 horas
seguidas. Para alimentar o
ego insuflado do chefe. Preocupa-me notar que alguns de nós estamos a fazer o
mesmo com o Presidente
Nyusi. Ouvimos frequentemente elogios como - “sob a sua sábia direcção, o nosso
país avança rumo a um
progresso nunca sonhado”, etc. Esta era uma ladainha obrigatória no reinado de Guebuza. Qualquer
ser humano, ao ouvir estes elogios constantemente repetidos, tende a acreditar e a considerar-se
infalível. Torna-se arrogante e não aceita ser criticado. Espero que o
Presidente Nyusi tenha o bom senso suficiente para não se deixar influenciar. Ainda
sobre o Presidente Nyusi, Samora dizia que o chefe deve saber usar o martelo,
deve saber exercer o poder. Deve consultar, mas não ficar amarrado à opinião dos
outros. Há sinais de que o Presidente Nyusi tenta impor a sua autoridade como
Chefe de Estado, tenta libertar-se das influências que o manietam. Uma prova
parece-me ser a sua decisão recente de retomar o diálogo com a Renamo, nomeando
uma equipa e, creio, dando-lhe orientações claras. O ponto de vista do homem da
rua é este: temos de decidir: queremos desmantelar a Renamo? Temos
meios para isso? Então desmantelemos. Não temos força suficiente ou achamos que não é a solução
adequada, porque vai provocar muitas mortes e destruição e não conduz a uma paz duradoura? Então
engajemo-nos num diálogo sério para chegar a um compromisso. O que não pode continuar é a
situação dúbia actual, porque permite a continuação do conflito, mata pessoas
todos os dias, provoca
desespero, enfraquece o prestígio do Estado e mina a confiança da sociedade na
capacidade dos seus governantes Temos consciência de que o trabalho desta
equipa será muito difícil, já foi ensaiado um exercício semelhante durante mais
de dois anos que não produziu nenhum resultado. Confiemos que agora resulte.
Desde a
Independência nacional que o poder político está entregue à “geração da luta
armada”. Porém, de 2015 a
esta parte, o poder foi transferido para a chamada “geração de 8 de Março”. Que avaliação faz dessa
transição? Está a corresponder às expectativas? Os jovens estão a conseguir
tomar conta do recado?
A “geração 8 de
Março” cumpriu a missão que recebeu de Samora em 1977, a de criar os alicerces
da reconstrução de Moçambique após a independência. Para alguns, talvez muitos,
foi um processo violento porque
contrariava a sua vocação e anseios. Forçar alguém a aceitar ser professor
quando o seu sonho
era ser médico ou
engenheiro não é fácil. Mas a maioria compreendeu e engajou-se nessa nova
tarefa e fê-lo
com alto sentido de
responsabilidade e patriotismo. A “geração de 8 de Março” deu lugar a outra
geração chamada da viragem, conforme proclamação
do então Presidente Armando Guebuza em 2009. Esta é uma geração que
está perdida porque ainda não sabe para onde virar-se. Não recebeu orientações do chefe que
anunciou a sua criação, ele limitou-se a dizer que é a geração que luta contra
a pobreza. Mas todas as
chamadas gerações lutaram contra a
pobreza. Hoje diz-se que há uma crise de valores na nossa
juventude. Eu concordo, e isto acontece
porque os modelos que deviam servir-lhe de referência, a começar pelo chefe que
os mandou “virarem-se” não lhes inspiram confiança, e é por isso que os jovens ainda
buscam referências em Samora. A pátria chama por nós – foi assim que Samora
exortou os jovens. Este chamamento é
também necessário hoje. Devia aparecer alguém com a estatura moral de Samora (na fotografia com M.Santos,Jorge Rebelo e J.Veloso) para engajar os jovens nesta nova tarefa de limpar a casa e restituir a
credibilidade ao nosso país.
Como é que avalia a
Frelimo de hoje?
Podemos analisar
a dois níveis. A Frelimo como aparelho: ele é eficaz e eficiente e é ele que
tem permitido à Frelimo ganhar
as eleições. A Frelimo como organização, que se rege por princípios e valores
justos, identificada com
os anseios e aspirações do povo: aqui está muito deteriorada. Por isso há quem diga:
se Samora ressuscitasse hoje morreria de desgosto no segundo seguinte.
Disse que a Frelimo
se desviou dos princípios e valores justos, identificados com os anseios e
aspirações do povo. Logo a Frelimo mudou? Qual é, hoje, a ideologia da Frelimo?
Peço que não me
faça perguntas que não posso ou tenho grande dificuldade em responder. Eu sou membro da Frelimo
há 53 anos, portanto, cabe-me alguma responsabilidade pelos seus erros e defeitos. Há
algum tempo venho criticando o que considero errado quando tenho oportunidade,
mas com poucos
resultados. O problema é que a Frelimo anda ao sabor das lideranças: quando
temos um bom líder, como
Samora, ela assume valores justos, ganha a confiança do povo, torna-se forte.
Quando o líder é
medíocre ou mau, ela fica desacreditada porque esses líderes desligam-se dos
interesses do povo,
apropriam-se de tudo o que é riqueza no país, fecham-se a qualquer opinião
discordante e reprimem os que os
denunciam. Não vale a pena especular mais: talvez a Frelimo que temos, com os
seus defeitos e algumas virtudes, seja a Frelimo possível nos dias de hoje.
Quanto à ideologia, eu também já não sei qual é. Os Estatutos do Partido dizem
que a Frelimo luta em defesa dos interesses do povo moçambicano. Contentemo-nos
com isto.
Há ou não pessoas
ambiciosas dentro da Frelimo que para satisfazer seus apetites até se envolvem no crime organizado?
Quero acreditar
que não. Pessoalmente não conheço ninguém. Há gananciosos e que se aproveitam
do poder e influência
para enriquecerem, mas daí até ao crime organizado vai uma grande distância.
Um membro fundador da Frelimo veio a público dizer que o
povo não se devia preocupar com a dívida porque, quem iria pagar é o Governo e que nenhum cidadão
iria tirar directamente o seu dinheiro para pagar os empréstimos. Qual é o seu comentário?
Gostei. Porque
sempre tinha ouvido dizer que o dinheiro do governo provém dos impostos que ele cobra ao povo, isto é,
a nós outros. Se o governo tem outra fonte onde vai buscar dinheiro, devemos
felicitá-lo
e regozijarmo-nos. (SAVANA
por Raul Senda)
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