Num artigo de opinião publicado no semanário sul-africano SUNDAY INDEPENDENT, o jurista André Thomashausen considerou que a África do Sul foi “mais uma vez enganada” por Moçambique no caso de extradição do ex-ministro das Finanças Manuel Chang, detido há dois anos por fraude financeira a pedido dos Estados Unidos da América.
O jurista e académico emérito da Universidade da África do Sul (UNISA, na sigla em inglês), escreve, no semanário Sunday Independent, que “só as pessoas condenadas ou acusadas em julgamento podem ser extraditadas” à luz do Tratado de Extradição sul-africano com os Estados Unidos da América (EUA), de 1999, e do Protocolo de Extradição da SADC [Comunidade de Desenvolvimento da África Austral], de 2002.
“E é aqui que a África do Sul foi mais uma vez enganada por Moçambique”, sublinha André Thomashausen no artigo de opinião hoje publicado no semanário sul-africano. O ex-ministro das Finanças de Moçambique Manuel Chang, detido na África do Sul a aguardar extradição para os EUA ou para Moçambique, foi indiciado num processo criminal nos EUA por alegadamente defraudar cidadãos e empresas norte-americanas que investiram em obrigações do tesouro de Moçambique para financiar os empréstimos de mais de 2 mil milhões de euros, segundo o analista.
“Na base desse processo, Chang
foi detido na África do Sul em dezembro de 2018, para ser extraditado para os
EUA”, explica o jurista, sublinhando que os “requisitos” dos acordos de
extradição “não se espelham mutuamente”, tal como argumentado recentemente pelo
ministro da Justiça sul-africano, Ronald Lamola, salientando que “as
disposições do Tratado com os EUA devem prevalecer, se o princípio do direito
internacional da Observância dos Tratados ("Pacta sunt servanda") for
respeitado”.
“Os tratados anteriores nunca são
invalidados por tratados subsequentes celebrados por terceiras partes”,
adianta.
Na ótica do analista sul-africano, “a nacionalidade das vítimas dos alegados crimes de Chang é a Americana, o pedido dos EUA precede o pedido moçambicano (de qualquer forma submetido incompleto e inválido) e por causa da proibição na Constituição de Moçambique (Art 67 alínea 4) de extraditar os nacionais, uma extradição para Moçambique iria frustrar definitivamente uma extradição subsequente para os EUA, e assim por completo o pedido de extradição feito pelos Estados Unidos”.
“O que ambos os tratados de
extradição têm em comum, no entanto, é que potenciais testemunhas nunca se
qualificam para um pedido de extradição”, sublinha, salientando que “as
formulações reais das disposições referidas revelam diferenças gritantes”.
“O Tratado com os EUA exige, em primeiro lugar, que as datas dos pedidos concorrentes, bem como a nacionalidade das vítimas dos crimes devem ser considerados, e em segundo lugar, que a possibilidade de posterior extradição entre os respetivos Estados devem instruir a decisão de escolha entre pedidos concorrentes. O Protocolo da SADC, no entanto, centra-se na nacionalidade da pessoa a extraditar e nos interesses dos respetivos Estados”, refere o jurista sul-africano.
Em 23 de agosto, o porta-voz do ministério da Justiça sul-africano, Chrispin Phiri, anunciou à Lusa que a África do Sul decidiu extraditar para Moçambique o ex-ministro das Finanças Manuel Chang, decisão que foi contestada dois dias depois na Justiça sul-africana pelo Fórum para a Monitoria do Orçamento (FMO), de Moçambique, que pretende impedir a extradição do antigo governante para o seu país.
O porta-voz
do ministro da Justiça sul-africano explicou que Manuel Chang é
"considerado extraditável" nos termos do artigo 10.º (1) da Lei de
Extradição sul-africana, acrescentando que “será entregue às autoridades
moçambicanas para ser julgado ao abrigo da lei moçambicana por abuso de posição
e função, violação de leis orçamentais, fraude, desfalque, corrupção passiva,
lavagem de dinheiro e associação criminosa”. Todavia, o jurista André
Thomashausen sublinha que “em fundamento dessa decisão, o novo diretor-geral do
Ministério da Justiça [da África do Sul], um Senhor Mashabane, num depoimento
jurado com data de 26 de Agosto de 2021, declarou falsamente que as disposições
relativas aos pedidos de extradição concorrentes constantes do Tratado de
Extradição Sul-africano com os EUA, de 1999, e do Protocolo de Extradição da
SADC, de 2002, "são imagens de espelho", quer dizer, idênticas umas
das outras e sendo assim a África do Sul estaria livre de escolher como melhor
achasse”. O analista acrescenta que “na sua declaração ao tribunal de Justiça
em 31 de agosto de 2021, o ministro Lamola baseia-se no que assume ser verdade,
nomeadamente que Chang agora já seria um "acusado" perante a lei
moçambicana”.
“Isto é falso, as diligências de
processos-crime ao abrigo do Código de Processo Penal de Moçambique de 1929 são
desconhecidas no processo penal sul-africano”, salienta, acrescentando que “o
antigo Código Penal português, no atual processo em Maputo aplicado como Código
Penal moçambicano, distingue entre pessoas que são suspeitos ou suspeitas,
arguidos e acusados, por vezes referidos como réus”.
“Chang caracteriza-se nos
documentos apresentados por Moçambique como um "arguido" em duas
investigações criminais, números de processo 1/PGR/2015 e 58/GCCC/2017/EP.
Estas investigações não foram admitidas a julgamento e, muito provavelmente, nunca
chegarão à fase de transitar para julgamento”, refere o jurista sul-africano.
O especialista em Direito Internacional sublinha ainda que “o julgamento em curso em Maputo é o caso número 18/2019/C e nele Chang não é réu nem arguido. Apenas foi convocado como testemunha (ou “declarante” na terminologia utilizada pelo Tribunal), para ser ouvido como tal.” De acordo com Thomashausen, qualquer pessoa “familiarizada” com a lei e os procedimentos judicias em Moçambique poderia ter informado o ministro da Justiça sul-africano, que um “arguido” em Moçambique “é simplesmente uma pessoa suspeita ou indiciada que ainda não é acusado em julgamento”.
“O arguido deve ser apresentado
com qualquer prova que lhe seja apresentada, e ao contrário de uma testemunha
tem o direito de permanecer em silêncio, de não responder a qualquer pergunta
que possa incriminá-lo, e não arrisca enfrentar uma ação judicial por ter
mentido”, refere.
“O mais importante, é que uma
pessoa que tem estatuto de arguido (ainda) não é formalmente acusada de ter
cometido um crime”, salienta.
“Em suma, Chang não é acusado e
não tem estatuto de réu em nenhum julgamento em Moçambique e assim não está
qualificado para uma extradição ao abrigo do Protocolo de Extradição da SADC.
Uma vez que se trata de uma questão de direito internacional, devem ser
apresentadas provas nesse sentido no processo em curso no Tribunal Superior,
conclui o jurista André Thomashausen.
É a segunda vez que a África do
Sul decide entregar o ex-governante moçambicano às autoridades, em Moçambique,
mas desta vez acontece quando o Tribunal Judicial da Cidade de Maputo iniciou o
julgamento de 19 arguidos acusados de envolvimento no caso das dívidas ocultas.
Em 27 de agosto, o Tribunal Superior de Gauteng, em Joanesburgo, adiou para 17
de setembro a audição de uma contestação do Fórum para a Monitoria do Orçamento
(FMO) à extradição do ex-ministro das Finanças Manuel Chang para Moçambique.
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