terça-feira, outubro 06, 2020

Porta-vozes inoficiais

Chegou à minha caixa de correio um texto curioso de Gustavo Mavie sobre a presciencia do nosso Chefe de Estado. Segundo o autor, o Presidente da República, ainda Ministro da Defesa em 2011, teria previsto o que está a acontecer em Cabo Delgado. Em vários discursos que se seguiram a esse, ele teria insistido na tecla de que a descoberta de recursos nutre animosidades e invejas.

Ele apelava aos soldados, mas também à região e a todo aquele que o quisesse ouvir para estarem atentos e precavidos. Há três anos que essa profecia se confirma em Cabo Delgado. O texto termina com a informação segundo a qual o PCA da Total estaria a apelar à União Europeia para encarar a violência em Moçambique como um problema do terrorismo internacional. Especula sobre um possível patrulhamento da costa moçambicana pela marinha francesa e indica o forte interesse dos EUA, através do Zimbabwe, de virem a Moçambique para combater o terrorismo.

Achei o texto curioso por várias razões. A primeira razão é o sentido que faz dar destaque à “profecia” duma pessoa que é ministra da defesa. Só me parece haver duas situações em que faz sentido destacar isso. Uma é se as nossas FDS tivessem derrotado estrondosamente os insurgentes porque foram dotadas de meios e preparadas para esta eventualidade. Aí o grupo de pressão pró-Presidente podia vir à esfera pública celebrar as qualidades visionárias do líder. A outra situação seria se ele, como ministro da defesa e depois como Presidente, tivesse tentado dar meios à defesa, mas não tivesse conseguido por causa de potenciais traidores da pátria e que hoje estivéssemos entregues a uma violência contra a qual ele quis realmente fazer alguma coisa. Sendo esse o caso, o que o texto estaria a sugerir é que existem pessoas nas FDS que estão contra o Presidente, não o ajudam e sabotam o trabalho que ele faz. Não sei se é isto que o articulista quer mesmo dizer. Se vivêssemos num País onde existe ética e honra profissional, este seria o momento de os militares virem a público dizer da sua verdade.

 

A segunda razão para achar o texto curioso prende-se à mensagem que ele pretende transmitir às populações vítimas desta violência. Um amigo abalizado nestas questões de segurança chamou a minha atenção para este pormenor ontem em conversa. Eu se fosse população de Cabo Delgado, obrigado (como me conta com lágrimas nos olhos um amigo de lá que vive na diáspora e que recebe notícias dos seus familiares a contarem o seu sofrimento, a viver com os seus haveres nas mãos para correr pela vida), havia de me sentir insultado pelo Presidente da República. Então você sabia que isso ia acontecer e mesmo assim deixou que a situação chegasse até este ponto? Havia de me sentir abandonado por todas as pessoas de bem – dentro do partido no poder, mas também na oposição – que não dizem nada, que não cobram ao Presidente o que ele fez, ou está a fazer, para evitar o que acontece em Cabo Delgado. O silêncio está a transformar os moçambicanos em cúmplices da incompetência.

A terceira razão é a lógica que estrutura todo o pensamento. Parece que o autor propõe uma causa da violência que coloca o assunto fora da responsabilidade de quem governa. Estamos a ser vítimas duma conspiração internacional. Não há dúvidas de que a violência em Cabo Delgado tem elementos externos importantes. Não há dúvidas, também, que existem elementos internos. Nenhum dos elementos explica a violência cabalmente. A forma explosiva como eles se articulam, contudo, mostra fragilidades gritantes de liderança – portanto, não basta ter qualidades proféticas para ser líder. O nosso sistema político falhou e não conseguiu evitar a escalada. Reflectir sobre como tornar o sistema político mais robusto devia ser a prioridade de quem tem como responsabilidade lidar com a violência em Cabo Delgado. O problema não é apenas de violência militar. É um problema de fragilidade política que exige a procura duma solução em que a opção militar seria apenas uma variável de entre muitas. A variável militar devia estar subordinada à variável política.

A quarta e última razão é o estranho entusiasmo com o qual o articulista, sempre hostil ao imperialismo ocidental, parece saudar a possibilidade do envolvimento de franceses e americanos na violência em Cabo Delgado. Aposto que se não estivesse tão aflito como está agora, havia de reagir a essa sugestão com slógans do tipo “não queremos uma Somália em Moz”. O que este entusiasmo aparente revela, porém, pode ser a perplexidade em relação à situação. Este pessoal não sabe o que fazer, por isso, ajuda, qualquer ajuda, é bem vinda. Esta é, na verdade, a principal razão para eu achar o texto curioso. Re-escrito diz o seguinte: “O nosso actual Presidente tem qualidades visionárias extraordinárias. Há muitos anos, ele previu que haveria guerra em Moçambique por causa dos nossos recursos. Por isso, ele cruzou os braços e ficou à espera da oferta de ajuda de franceses e americanos. Grande líder, o nosso!”


Há males que vêm por maldade mesmo. Textos como este são um exemplo disso. A minha suspeita é de que alguns porta-vozes inoficiais começam a dar as costas ao líder. Já estão a prestar serviço duvidoso para dizerem ao próximo que eles viram que com este não ia dar certo. Não quero acreditar que uma pessoa com tanta leitura como o autor do texto em questão possa ter escrito isto em apoio ao Presidente. Se o tiver feito, é pior ainda, pois mostra quão fundo batemos em matéria analítica. E se por acaso o pensamento exposto neste texto reflectir a sensibilidade que o nosso governo tem em relação à violência em Cabo Delgado, bom, boa noite, caros compatriotas. Estamos entregues. Até 2024 Cabo Delgado vai se estender do Rovuma até ao Save.

Eu acho que ele devia se concentrar na ética. Esse pode ser o seu forte, contrariamente ao que todos pensávamos. (E.Macamo)

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