No último mês, assistimos à atabalhoadas manobras institucionais, da
parte do Estado moçambicano, com vista a munir-se de ferramentas para disputar,
com o Estado americano, a custódia de um dos mais preciosos arguidos (na
perspectiva interna) no puzzle das falcatruas financeiras que embandeiraram o
país nos mais baixos rácios de atractividade económica e para
investimentos. A competição pela “língua” do deputado detido na República
da África do Sul obrigou as nossas instituições a revelaram “todo” o seu
potencial e deu para entender com que linhas se coze o nosso “sistema” de
(in)justiça. Instituições historicamente dormentes e apáticas, salvo por
empreitadas marginais, emergiram da hibernação e encetaram démarches com
celeridade de matar de inveja os mais rápidos dos super-heróis das revistas em
quadrinhos.
A tão clamada
“celeridade processual” foi esgrimida com grosseria e atropelos (datas
futuristas, potenciais conflitos de interesse, atropelos aos dispositivos
normativos) no afã de assegurar o resgate, digo, “transferência”, ou melhor,
“extradição”, deixemos... pode ser devolução mesmo, do detido para a “pérola do
índico”. A depender da vontade do nosso “sistema”, “Tio Sam” não apanha nada!
Se bem que, por vezes, pela quantidade de gafes de processo e de estratégias,
fica parecendo que o essencial é erguer uma cortina de fumaça para não deixar
transparecer que o arguido esteja a ser sacrificado para prestar-se ao
simbolismo do insipidamente necessário ritual de purificação de fileiras.
Pretensa moeda de troca para a recuperação da minguante credibilidade do
“partidão”, em vésperas de mais uma competição eleitoral.
Seja como for, fica
evidente que as nossas instituições são relativamente mais fortes do que os
cidadãos (infelizmente, por um tiquinho, somente). Uma pena que assim seja.
Sendo uma sociedade em construção (ainda que mais pareça em
autodestruição), como cidadãos, sempre que julgarmos oportuno, devemos desafiar
as instituições. O objectivo não é, necessariamente, romper com elas ou
criar cisões (isso é demasiado convulsivo e de resultados imprevisíveis), mas
re-articular as formas de “sociação”, refundar (ou consolidar) os parâmetros
através dos quais nos governamos nas mais variadas dimensões (económica,
política, cultural), com ética e parâmetros partilhados de previsibilidade das
acções, em quadros normativos explícitos e implícitos, relativamente
consensuados.
Ainda que haja quem diga que não há revoluções às meias, senão meras
rebeliões, na actual conjuntura, não carecemos nem de “primaveras” e nem de
rebeliões senão de efectiva contribuição cidadã, das organizações
político-partidárias (inclusive do partido mais chamuscado com este imbróglio)
e organizações da sociedade civil para a transformação e aprimoramento das
instituições. Em termos de formas e normas há ajustes menores que podem
ser feitos com o intuito de consolidar as instituições. No que concerne à
performance e desempenho há muito a ser feito. Nestes nossos tempos, há toda
uma batalha atitudinal a ser feita e vencida para que se faça jus à padrões de
moralidade e de justiça, indispensaveis para um “re-encantamento” da
nossa sociedade para enfrentar os desafios económicos, sociopolíticos que
actualmente assumem contornos fraturantes.
O imbróglio das dívidas não deve ser visto como o “princípio” e ou
“fim” do nosso mundo. Mas é também verdade que o assunto tem potencial de
instigar rupturas em termos de atitudes de indivíduos, instituições e partidos
face a coisa pública. No mínimo, tem o potencial de contribuir para a
elevação da consciência colectiva sobre a importância da observância das normas
e roteiros institucionalmente estabelecidos e não tomar, ao desbarato, as
“ordens” presumivelmente “superiores”, como padrão normal, incondicionalmente
aceitável e ditame de actuação do provedor público.
Como bem disse a outra, “precisamos de parar com o autoflagelo”. Penso
que é possível e, o Conselho Constitucional, o Parlamento e demais instituições
privilegiadas para a lide com a matéria em questão continuam sendo as
instâncias com potencial de repor a legalidade e contribuir no restaurar da
incipiente confiança nas nossas fragilizadas instituições. Como na (des)crença
sobre feitiçaria, o sistema tem potencial auto-reparador, de protecção e de
reprodução de si. No limite, a competição eleitoral subsiste como um dos mais
radicais mecanismos de reparação, se não quisermos incluir as guerrinhas que são
ainda mais devastadoras.
Sim, não tenho
dúvidas sobre as mais completas teses sobre a “captura do Estado”. Parece até
contraproducente recorrer a essas mesmas instâncias, em princípio, “capturdas”
em busca de reparação. As instituições, como edifício social, são suscetíveis a
erosão e, não se vislumbrando uma “távola redonda”, a curto prazo, resta-nos
explorar, ao limite, as janelas e frestas que subsistem e através delas
procurar penetrar na estrutura do edifício e pavimentar os trilhos da reparação.
Metáforas à parte, na prática, há várias formas e possibilidades de
consolidação das instituições. Entre elas, o recurso aos parâmetros
institucionalmente estabelecidos para reivindicar ajustes e correções de
medidas tomadas fora do quadro normativo. Esta abordagem tem também a função
pedagógica de realçar a importância das instituições e as possibilidades
institucionalmente estabelecidas para dirimir potenciais incongruências
emanadas da operacionalização do aparato institucional. Incluindo a responsabilização
individual de actores políticos eleitos para administrarem certas dimensões
institucionais da vida em coletividade. Pois, não estão isentos do
escrutínio público ou da obrigação de “prestar contas” para as constituências
que representam.
Já que, no nosso caso, a instituição não tem a cultura de pressionar-se
mutuamente de forma complementar e menos ainda de forma competitiva para a
materialização do desiderato que lhes define, a actuação do cidadão, por mais
inconveniente que pareça aos olhos dos que usufruem dos benefícios que as
instituições também oferecem, tem potencial transformativo. Quando os três
poderes compactuam com desvios normativos óbvios e, em conluio, secundam-se nos
esforços para sustentar e institucionalizar suas (im)posturas é caso de
dizer-se que os actores sociais abrangidos (no caso, vitimados) por essa
postura devem reservar-se o direito de articular todos os dispositivos
legalmente estabelecidos para sinalizar para a gravidade do desvio
institucionalmente incorrido e o potencial desestruturante de persistir-se
nessa senda. Não obstante a aspiração de perenidade e de longevidade de
muitos dos acordos assumidos, pactos sociais são suscetíveis à radicais
alterações de vontades (e humores) dos pactuantes e podem demandar rearticulações
e ajustes para manterem-se relevantes e funcionais. A capitalização das
ferramentas de governação dos pactos talvez seja a maior expressão de
compromisso com os princípios que norteiam o pacto e a salvaguarda da
integridade dos pactuantes. Neste sentido, a petição que os cidadãos
assinam, deve ser lida como expressão maior de compromisso com o todo, com o
interesse colectivo e com o bem comum.
Formalmente,
exige-se duas mil assinaturas para que eventuais peticionários sejam acolhidos
pelo Conselho Constitucional de modo a que o objecto da petição seja
considerado. A deliberação do CC é soberana, irrecorrível e irrevogável. O CC é
a instância mãe, de reposição das nossas mais sublimes aspirações. Os Senhores
e Senhoras que habitam aquela instância são (ou deveriam ser) os guardiões da
constitucionalidade, do interesse colectivo, acima de eventuais disputas de
facções e das constituências (grupos de interesse) que povoam este espaço comum
que chamamos Moçambique. Na cadeia hierárquica de instituições a que se pode
recorrer o CC é a última nos termos da legalidade estabelecida. Depois disso,
nirvana ou, pela nossa índole histórica, sem querer ser determinista, o caos!
Ora, mas também existem as instâncias internacionais multilaterais, algumas das
quais se afirmam pela defesa de direitos humanos e outros. Ainda que
sejam negativamente conotadas como “mão-externa”, essas entidades também tem o
potencial de pressionar e influenciar o curso de políticas e decisões internas.
No presente caso, tratando-se de fraude de proporções multinacionais, o recurso
a tais entidades não deve ser descartado.
Em 2016, a Sociedade Civil submeteu uma petição requerendo a
ilegalização das dívidas contraídas pela ou em nome da EMATUM, posteriormente
inscritas no orçamento do Estado. Na altura, o argumento apresentado
centrava-se na não observância da lei orçamental, que preconiza que os avales
atribuídos à EMATUM só poderiam ter sido atribuídos mediante aprovação da
Assembleia da República. Faz hoje 581 dias sem resposta! A fragilidade e
lentidão do CC não deve desestimular os peticionários. Pelo contrario, devem
persistir na pressão e incentivo ao CC para assumir as suas funções e dar
resposta estruturada e fundamentada sobre o seu parecer/decisão.
Mais recentemente, as novas revelações sobre os contornos do
endividamento e as detenções realizadas mundo à fora, começam a lançar
luz à inquietantes zonas de penumbra encobertas por actos deliberados de
sonegação de informação, por parte de actores e instituições implicadas,
concorrendo para o esvaziamento da auditoria mandatada pelo nosso próprio
governo, mas arquitectada para não encontrar matérias a auditar, na vã
expectativa de dissipar o diferendo e voltarmos a cair nas graças dos
“parceiros de cooperação” doadores” e outras “facções" da chamada
“mão-externa”, a que historicamente recorremos para peditórios, negócios ou
negociatas.Uma vez mais, as instituições da sociedade civil recolheram cerca de
duas mil e quatrocentas assinaturas para secundar a petição pela revogação das
dívidas da PROINDICUS e MAM, empresas atreladas ao imbróglio atuneiro, cada vez
mais associado a aventuras ilícitas, salvo por melhor apuramento das entidades
internas e externas de investigação.
Nosso desafio, como
cidadãos, é contribuir para o fortalecimento das instituições, um jargão
amplamente propalado, mas raramente evidenciado e ou experimentado nos nossos
debates ou troca de farpas públicas. As instituições não se fortalecem por si
só, pela vontade dos detentores do poder, alguns dos quais tem se revelado
renitentes subvertores das frágeis instituições de que dispomos. Assim
como já houve contribuições consideradas produtivas da parte do cidadão ou das
organizações da sociedade civil, como aquando do desenvolvimento da lei da família,
lei de imprensa e outros, o acto de os cidadãos demandarem um posicionamento
por parte de instituições que deveriam ser relevantes, evidencia o ampliar da
consciência sobre a importância da utilização dos espaços de diálogo entre os
cidadãos, seus constituintes e as instituições. O fortalecimento das
instituições passa por um diálogo permanente entre os cidadãos organizados, nos
moldes institucionalmente estabelecidos, como este de agregar 2000 assinaturas
e a reação dos órgãos estabelecidos para funcionarem como interlocutores.
Independente da reação das instituições, o importante é que não se quebre e nem
se violem os espaços constitucionalmente inscritos para interlocução e
que as instituições se posicionem como entidades capazes de satisfazer as
demandas dos cidadãos ou interlocutores, se quisermos usar expressões ainda
mais conciliatórias.
Como se pode depreender, com o engajamento (organizado) na mobilização
e recolha das mais de 2000 assinaturas requeridas, da parte dos cidadãos, não
há fraqueza em observar os trilhos institucionalmente legalizados. Neste caso,
cabe às instituições demonstrarem que existem e que são suficientemente
competentes para cumprirem, com a autonomia que lhes deveria ser devida, com o
seu mandato. Infelizmente, até aqui, o CC tem insistido em permanecer em
ensurdecedor mutismo, defraudando seu próprio mandato e propósito. Enquanto
isso, a consciência e a capacidade organizativa e dialógica do cidadão vai se
consolidando, deixando a nú o deficit operacional que caracteriza o nome das
instituições que indivíduos vestem em prossecução de interesses que a olhos de
muitos cidadãos não são defensáveis no quadro de promoção e proteção do
interesse colectivo.
Não sou dos que acreditam que todo e qualquer cidadão vive competindo
pela governação das instituições do Estado e que qualquer mobilização social
seja uma forma de escamotear o desejo de poder e não necessariamente advogar
por acções que complementem as funções do Estado e aprimorem o capital
institucional e, consequentemente, consolidem-se paramentos que concorram para
a melhoria da qualidade da governação. É preciso descansar as azagaias dos que
acreditam que todos os que questionam eventuais desmandos no quadro
institucional estão sedentos por desfrutar das benesses do Estado. Nos seus
modestos e imodestos postos, a maioria dos cidadãos batalha pelo seu pão,
aspira apenas pela estabilidade e transparência nas regras do jogo, igualdade
de oportunidades, ética na política e na gestão da coisa pública. Nada mais!
(Por Cristiano Matsinhe in facebook)
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