Foi um dos convidados de cartaz para o seminário
sobre Corrupção e Justiça Criminal, organizado pela Associação Moçambicana de
Juízes (AMJ) e pelo Centro de Integridade Pública (CIP). Coube a ele a primeira
oração do evento que discutiu a eficácia e a garantia de justiça criminal no
tratamento da corrupção. Rafael Marques, o destemido activista e jornalista
angolano, iniciou a sua intervenção com golpes de mestre que electrizaram a
plateia. “Quando recebi o convite da Associação Moçambicana de Juízes para
falar neste seminário, julguei tratar-se de um engano, ou mesmo uma armadilha.
Até hoje, a minha relação com juízes tem se limitado a processos de julgamentos
e a condenações, precisamente, pelo facto de eu denunciar actos de corrupção e
as consequentes violações dos direitos humanos”, estava iniciada a locução que
viria a durar 24 minutos. Vinte e quatro horas depois da palestra, na qual
disse também que o sistema judicial angolano é apenas o prolongamento da
cleptocracia vigente no país onde quem se demarca de fazer parte do sistema é
ostracizado ou excluído e quem combate a corrupção, a má gestão pública e os
abusos de poder é punido pelas autoridades, Marques deu entrevista ao SAVANA.
Nela, desaconselha Moçambique a aplicar a chamada solução angolana,
nomeadamente, a eliminação física de Afonso Dhlakama, o presidente da Renamo,
tal como aconteceu em 2002 com Jonas Savimbi da UNITA, na oposição em Angola.
Alerta que o modelo angolano de extravagância, esse depois vai gerar problemas
muito mais sé- rios no país. “Sirvam o povo e não precisarão de matar ninguém”,
aconselha o autor do “Diamantes de Sangue: Tortura e Corrupção em Angola”, um
livro que denuncia envolvimento de Generais das Forças Armadas angolanas em
assassinatos e torturas no negócio de diamantes.
A 11 de Novembro próximo, Angola vai completar 41
anos da independência. Acha que Angola de hoje é o país porque os nacionalistas
angolanos se bateram contra o colonialismo português? Os nacionalistas tinham
uma visão para o país cuja implementação dependia e depende sempre das gera
ções seguintes. Milhares de Angolanos deram a sua vida pela causa da independência
nacional e só poucos assumiram-se como os libertadores da Nação. Mas o povo, ou
seja, muitos se engajaram na luta pela libertação e hoje são esquecidos. A
questão fundamental é lembrar que temos tudo para construir um país diferente,
isto é, a realização do sonho angolano. Neste momento, temos um país que é
gerido à medida do presidente e das suas necessidades pessoais e da sua
família. Cabe aos angolanos conscientes lutarem pelo sonho colectivo de um país
onde todos caibamos, onde acima de tudo haja respeito pela dignidade humana e
serviço público dedicado ao cidadão e não aos dirigentes. Depende da capacidade
daqueles que querem o bem imporem-se sobre aqueles que continuam a praticar o
mal. Quando vivemos numa sociedade onde os membros do governo são venais,
extremamente corruptos e pouco dados ao respeito pelos cidadãos, então, é uma
questão daqueles que querem o contrário, que querem promover a moral pública, o
respeito pelo cidadão, a elevação do cidadão através de uma educa- ção de
qualidade, da provisão de serviços que permitam a este cidadão ter emprego, ter
acesso a uma saúde de qualidade, lutarem pela integridade, moral pública,
afirmarem e exigirem a prática do bem na sociedade porque hoje em África temos
vergonha de assumir o bem. Somos conduzidos pelo mal, por corruptos,
incompetentes, indivíduos ineptos e temos medo deles, mas temos escárnio pelas
pessoas que procuram promover um certo sentido de dignidade entre os cidadãos e
de probidade. Aqui em Moçambique, anos atrás, aqueles que se batiam contra a
corrupção, pelas boas práticas, eram considerados e chamados de leprosos.
Então, ser um cidadão íntegro, cívico, chega a ser leproso. Aquele que rouba,
tem um carro bonito, tem um fato bonito e tem acesso a uma vida de luxo, este é
o modelo que os cidadãos querem seguir. É isto que está errado nas nossas
sociedades e é isso que devemos combater com todas as nossas energias. Não
precisamos roubar nem castigar ninguém para sermos ricos, termos um bom fato,
para ter o que os homens gostam em África – muitas mulheres – para viajarmos,
para comprarmos casa em Portugal ou na África do Sul. Não precisamos pisotear o
pobre, não precisamos espoliar o pobre, antes pelo contrário, devemos garantir
que o pobre tenha um bom emprego para que seja um consumidor e gerador de
riqueza.
O presidente José Eduardo dos Santos, que sempre
criticou, foi, de acordo com a história oficial angolana, um dos nacionalistas
que um dia lutou pelos princípios de independência. Sente alguma perda, pelo
presidente angolano, desses valores de independência e liberdade do homem? É
preciso esclarecer que a luta pela independência teve grandes nacionalistas e
lutadores e José Eduardo dos Santos não foi um deles. Ele juntou-se à luta como
se juntaram muitos outros, mas não teve nenhum papel relevante na luta pela
independência de Angola. Muitos o fizeram, como Mário Pinto de Andrade, Holden
Roberto, Viriato da Cruz e muitas outras figuras que hoje não são reconhecidas
em Angola, precisamente, porque foi preciso abafar os melhores filhos para
elevar a mediocridade que hoje governa Angola.
Então, 24 anos depois da introdução do sistema
democrático em Angola, que democracia é que há no país? Nós temos o que hoje
muitos teóricos chamam de democracia eleitoral, que é um regime que se auto-legitima
por via das urnas, mas sem necessariamente ser democrático. Basicamente nós
temos um regime autoritário.
Em verdadeiras democracias,o poder político
encontra, necessariamente, o seu fundamento na aceitação popular, até porque a
democracia, como diz a literatura, é o governo do povo, pelo povo e para o
povo. Se não tem aceitação popular, como já disse noutras ocasi- ões, então, em
que base assenta o poderio do regime angolano? Assenta na corrupção. O Estado hoje foi tornado
numa lotaria para aqueles que apoiam o presidente ou que o queiram apoiar para
ter acesso a emprego. Até nas escolas, os professores para serem promovidos têm
de apresentar cartões de militantes do MPLA (Movimento Popular de Libertação de
Angola, partido no poder) para serem promovidos ou mesmo para ter emprego
efectivo. Há toda uma série de manipulações que obrigam o cidadão a juntar-se
ao MPLA e apoiar o presidente para poder sobreviver e é preciso quebrar isso.
Apesar de terem sido libertos, há três meses,
nesta entrevista é inevitável falarmos da detenção dos 15+2 jovens acusados de
tentativa de golpe de Estado.
Aquilo demonstrou já o nível de infantilismo
político do regime do presidente José Eduardo dos Santos, quando prende miúdos
para acusá-los de tentativa de golpe de Estado tudo para justificar a sua
manutenção no poder. Isso significa que ele já chegou a um ponto que já não
sabe mais o que fazer para justificar as suas acções. A única coisa que fizeram
foi dizer que o presidente está há mais tempo no poder, já expirou o seu prazo
e deve ir embora. O país não é do José Eduardo dos Santos. Qualquer cidadão tem
o direito de dizer está na hora de o senhor ir embora e por isso é que até há
votos para os cidadãos dizerem “não queremos mais o senhor, queremos outro”.
Mas em Angola a Constituição foi alterada para impedir o cidadão escolher,
directamente, o presidente. O presidente não é eleito, nem pelo parlamento, nem
pelo povo, é o primeiro nome da lista partidária que ganha elei- ções que se
torna presidente e ele eliminou essa escolha porque sabe que o povo
directamente não o votaria. Ele não gosta do povo e sabe também que o povo não
gosta dele, só os corruptos é que o gostam, e os candidatos ou aspirantes a
corruptos e aqueles que, por ignorância, seguem cegamente o MPLA, mas qualquer
cidadão consciente não pode estar de acordo com José Eduardo dos Santos.
Pareceu um exagero quando dizia, no seminário
sobre Corrupção e Justiça Criminal, que o regime angolano valoriza mais bois
que pessoas.
Ainda bem que me fazem lembrar isso. Eu gostaria que vocês
ouvissem para depois me dizerem que estou a exagerar ou não. Aqui está o vídeo:
[… no Cunene…tivemos o infeliz infortúnio de falecerem algumas pessoas; o
governo da República de Angola, através do seu programa “Água para Todos”, conseguiu
fornecer água para os criadores de gado, estamos a falar de uma população
essencialmente pastorícia, para salvar, primeiro, o gado que é o principal
elemento de trabalho dessas populações e depois salvar grande parte da
população…]. Desculpem, exagerei? Está aqui António Luvualu de Carvalho
(embaixador itinerante de Angola em Portugal).
Bem, ainda no seminário dizia que o regime
angolano encarna a corrupção que, na verdade, é o único acto de transparência
em Angola. Como é que isso se manifesta? O presidente nomeia a sua filha para
presidente do Conselho de Administração de uma empresa pública. Em Moçambique
vocês aceitariam que Filipe Nyusi nomeasse o seu filho Florindo para gerir a
maior empresa pública do vosso país. Achariam isso normal? E digo mais: a
corrupção é um acto de transparência porque a Lei é clara em relação a isso, é
nepotismo, é corrupção. Os dirigentes violam todos os dias as Leis. O
governador do Cuenne, esta mesma província que está em seca, é detentor de 80
por cento das acções de um banco e é presidente da Assembleia-geral desse
banco. Vocês aqui em Moçambique aceitariam?
E onde é que está o poder judicial angolano para
travar a corrupção? É tão corrupto quanto é parte do sistema da corrupção. Esse
é que é o problema, não podemos esperar uma justiça que também alinha nos
esquemas todos de corrupção.
Rafael Marques, quando pára, lê os cenários,
repara o futuro, vê alguma saída rumo ao sonho angolano? Claro que vejo, por
isso é que estou na linha da frente. O futuro não cairá do céu. O futuro é
aquilo que nós fazemos hoje e se reflecte no amanhã.
É uma luta com muitos espinhos… Todas as lutas
para que eu me torne num mau cidadão ou num cidadão desengajado fazem-me lutar
mais porque temos de reconquistar o Estado e devolvê-lo ao seu soberano que é o
povo. E temos de ajudar de forma pedagógica, a educar o povo. E é um privilégio
para mim estar na primeira linha da frente nessa luta pela afirmação da
dignidade do cidadão angolano. Não é um sacrifício, é um privilégio e faço por
vontade própria e de acordo com a minha própria consciência. Ninguém me pediu,
ninguém me obriga e se ganho ou não ganho com isso, é uma questão que não me
preocupa porque sinto-me bem a agir como bom cidadão. Não tenho vergonha de
fazer o bem, de lutar contra a corrupção. Vergonha devem ter os bandidos, os
corruptos, eu não. Eu tenho honra e não me devo sentir intimidado. Não me devo
sentir discriminado por ser uma pessoa honrada.
Muitas vezes quando caem críticas sobre altos
dirigentes, há quem diz que não, vamos discutir a floresta e não as árvores”. É
possível dissociar o presidente Angolano dos problemas que o país enfrenta?
Vamos agora ver a floresta: desde a instauração do sistema multipartidário em
Moçambique já houve três presidentes. Angola continua a ter o mesmo presidente.
Eu era criança quando José Eduardo dos Santos chegou ao poder, já tenho filhos
e daqui há bocado terei netos e ele continua lá. Então, aqui o problema é do
indivíduo que representa todo esse sistema. Está tudo amarado ao poder do
presidente e, obviamente, ele tem os seus representantes, através dos quais
exerce o poder, mas com a sua saída esses indivíduos terão de sujeitar-se a
novas regras políticas porque a sociedade e eles próprios, internamente, já não
tolerarão que Angola tenha outro presidente por 37 ou 40 anos. Qual é a
justificação para se dizer que os angolanos que são 24 milhões, de facto, não
têm cabeça, só um indivíduo tem cabeça para ser presidente. Precisamos de novas
ideias e a forma como o presidente gere o Governo, enquanto chefe do Executivo,
é destrutiva para a maioria dos angolanos, é benéfica para si e para o
interesse estrangeiro e não para os angolanos.
Alguma vez esteve com o presidente dos Santos?
Estive com ele uma vez.
A tratar assuntos do país? Se sim, o que ficou
assente? Foi há mais de 20 anos e foi por ocasião das primeiras eleições em
Angola em 1992. O presidente não é um indivíduo dialogante que promova encontro
com críticos. Antes pelo contrário procura sempre corrompê-los ou silenciá-los,
exclui-los ou eliminá-los.
Pessoalmente já sofreu tentativas de corrupção?
Sabemos que de ameaças, sim. Já passei por tudo que se pode imaginar. E
mantenho-me firme.
Se pudesse estar com o presidente José Eduardo dos
Santos, que conselho lhe daria? Senhor presidente, limpe a casa, limpe o
palácio, entregue o poder e vá descansar com a sua família e negoceie, enquanto
ainda é tempo, a sua saída pacífica para que não saia aos atropelos, criando
mais problemas ao país.
Teme que a sua saída não seja pacífica? Os
ditadores gostam sempre de sair à força porque vêem-se sem avenidas para se
retirarem de forma pací- fica porque cometem tantos crimes e depois tem medo de
serem julgados. Então preferem sempre levar o poder até às últimas consequências
e José Eduardo dos Santos não é excepção, ele tem medo, ele sabe que cometeu
muitos crimes e tem medo que esses crimes venham persegui- -lo, mesmo dentro do
seu próprio partido.
No recente Comité Central do MPLA, um histórico do
partido, Ambrósio Lukoki, abandonou o órgão, afirmando que “cheguei à conclusão
de que estar no Comité Central já não faz sentido porque o Comité Central não
faz a sua função, é imposto posições que tem de aprovar sem discussão”. Dizia o
antigo nacionalista, ministro no pós independência e embaixador na Tanzânia que
“o presidente do partido e chefe de Estado regista uma impopularidade recorde
pelas suas desinteligências e arrasta, na sua queda, certos inocentes no MPLA.
A impopularidade que está granjeando o partido é o preço a pagar o MPLA
enquanto instrumento de trampolim do engenheiro José Eduardo dos Santos para o
seu absolutismo”. A pergunta é: será a ruptura? A crise económica e a
diminuição do bolo da corrupção terá mais impacto dentro do MPLA do que, por
exemplo, a saída do Lukoki ou outro porque os militantes do MPLA tornaram-se
obcecados pela corrupção. É preciso desestruturar os sistemas de corrupção para
as pessoas irem procurar outro modo de vida que não seja aquele de estar sempre
a roubar ao Estado e aos cidadãos. O que lhe parece a situação angolana no
concerto dos outros países da região e de um continente africano onde os
libertadores, regra geral, têm a tendência de encarar os Estados como se de
propriedades privadas se tratassem? O caso de Angola não é diferente, é a mesma
história. Os níveis da corrupção ultrapassam o bom senso. É a captura do
Estado, os indivíduos capturaram o Estado para si próprios. Libertaram-nos do
jugo colonial para aprisionarem-nos sob as suas botas tirânicas. Então,
substituiu-se apenas o opressor. Em vez de termos um opressor estrangeiro,
passamos a ter um opressor nacional.
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