Quanto mais conhecermos as causas da violência
social, mais capazes seremos de a prevenir. A violência social combate-se com o
conhecimento das infra-estruturas sociais e mentais que a ela conduzem ou podem
conduzir. De nada serve mostrar continuamente em inúmeras instâncias de debate
e persuasão que a violência é desnecessária e nociva, se não forem
continuamente desarmadas as condições sociais que continuamente armam as
mentes. [Carlos Serra/2010]
1. Atacando
ou defendendo-se, um jovem esfaqueou outro em luta ocorrida há dias em luta
ocorrida num dos corredores da Escola Secundária Josina Machel, cidade de
Maputo. Uma faca e um vídeo tornaram o fenómeno rapidamente viral, nas redes
sociais físicas e digitais. Tratou-se de um episódio isolado? Iterativo? O
estudante estava drogado? Foi um fenómeno de natureza patológica? Ou de
violência momentânea, produto de um con- flito banal com a vítima? Ou exercício
corrente de luta pela preeminência no estilo dos “mabandido”? Foi um transtorno
de personalidade, um distúrbio psíquico vigoroso? Remete para o foro individual
ou, pelo contrário, tem uma base social que importa descobrir? É sintoma de
crise social? Sem uma investigação corremos o risco de cometer erros de vários
tipos. Na ausência dessa investiga- ção, restam as hipóteses. É o que aqui será
feito, com recurso a quatro tipos analíticos, sem que isso signifique
criminalizar A ou B.
2. Agredir um colega com uma faca no interior de
um estabelecimento escolar, em zona nobre do Bairro da Polana na cidade de
Maputo, não é, de imediato, um fenómeno normal no nosso país. Houve um
transtorno no agressor, um surto psicótico ou um mero exercício
de bullying: eis a visão mais clássica de uma certa psicologia
individualizada do senso comum, aquela que centra a sua atenção no indivíduo em
si, mesmo quando parece ter em conta o social que permanentemente,
multiplamente, o habita e fluidifica. A este nível, o agressor tanto pode ser
encarado como são ou como doente. O transtorno à retaguarda da agressão pode
ser ocasional ou recorrente, visível ou encoberto, remetendo quer para o foro
criminal, quer para o foro neuropatológico. Múltiplas causas podem ser
invocadas para explicar o acto do agressor: luta corrente pela preeminência
chefal, consumo de substâncias psicoactivas (droga, álcool), violência
parental, depressão, complexo de inferioridade, desejo de afirmação, trauma de
infância, deriva autoritária, etc. Porém, mesmo que o social seja invocado, o
individual será sempre o eixo fundamental de referência neste tipo de análise.
Preocupa-o mais a anormalidade do acto e do autor do que o tipo de sociedade
que contribuiu para o seu desencadeamento.
3. Aceitemos a hipótese de que as pessoas vivem em
várias teias de interdependência que dão origem a configurações de vária
índole, teias das quais muitas vezes não têm consciência. Uma investigação deve
tomar em conta essas teias e essas configurações.
A Escola Secundária Josina
Machel é contígua às chamadas barracas do Museu e tem, num dos lados
[através de um dos passeios e do bulevar da Rua dos Lusíadas], grande
promiscuidade com chapas, desempregados e vendedores ambulantes de
produtos de todos os tipos. A interdependência entre esse mundo - do qual
provavelmente também fazem parte meliantes diversos - e os estudantes da Josina
Machel é permanente e múltipla. Pode acontecer que a extrema agressividade do
estudante da faca tenha raízes na interdependência zonal assinalada, tal como
parecem testemunhar algumas passagens de um texto divulgado pelo matutino
“Notícias” em sua versão digital de 29 de Julho deste ano: “A falta de
segurança no recinto da Escola Secundária Josina Machel, na cidade de Maputo,
está a criar um ambiente de pavor entre alunos e professores, que com
frequência são vítimas de assaltos e agressões por parte de marginais que
transpõem a vedação. [Aliado a este facto, o consumo de álcool e drogas por
parte de alguns estudantes está a tornar-se preocupante, o que tem concorrido
para o aumento da insegurança, pois não raras vezes os protagonistas, na sua
maioria adolescentes, depois de consumir estas substâncias são orientados à
indisciplina e chegam a violentar os seus colegas.[Recentemente a Polícia da
República de Moçambique (PRM) afecta à 2.ª esquadra foi solicitada pela
Direcção da escola para repor a ordem, após um grupo de quatro alunos terem-se
envolvido em cenas de pancadaria, paralisando literalmente o decurso normal das
aulas. [Soubemos que na circunstância um dos agentes da Polícia foi vítima de
agressões e sevícias quando tentava serenar os ânimos dos estudantes
desordeiros. Em consequência, os alunos envolvidos, todos da 10.ª Classe, foram
recolhidos para as celas da 2.ª esquadra.”
4. Quantos mais holofotes estiverem direccionados
para um determinado fenómeno, melhor será a sua visibilidade. A análise
nacional é mais um holofote no conjunto de hipóteses em jogo neste texto. O
jovem armado com uma faca na Escola Secundária Josina Machel na cidade de
Maputo não é o único caso de violência escolar que poderia ter sido
letal. É, apenas, um exemplo entre muitos outros. Poderá ter sido permeado por
uma cultura de agressividade e punição naturalizadas que, sob as mais diversas
formas, habita a vida do dia-a-dia, as redes sociais físicas e digitais, as
televisões e as rádios do país, tivesse disso consciência ou não. Ataques,
emboscadas, sequestros, assassinatos e destrui- ções variadas tornaram-se parte
integrante e banalizada do nosso quotidiano. Com uma faca ou com uma arma de
fogo, jovens há que se convencem de poder jogar o papel de heróis, determinando
com crueldade - e quantas vezes com letalidade - o destino de pessoas, grupos e
locais. Em seu percurso, em sua acção punitiva, em sua agressividade com uma
arma branca, o jovem da Josina Machel pode ter sido o repositório, o veículo
inconsciente de uma quádrupla e interligada cultura em curso no país: cultura
da violência, cultura da punição, cultura do medo e cultura da impunidade. A
este nível há o drama de uma dupla determinação: os impulsos da violência
multilateral deixam raízes especiais, os aguilhões. Quando julgamos que os
impulsos desapareceram através de acções de profilaxia social, irrompem um dia,
veementes, os aguilhões. Este é um dilema à Jano que, geracionalmente, faz
parte da nossa história conflitual desde pelo menos o sé- culo XVII (aceleração
do tráfico de escravos). E que, afinal, espécie de peristalto social, parece
habitar por inteiro a atitude do jovem da Josina Machel, atitude que é
unicamente a ponta do iceberg.
5. A
extrema agressividade do jovem da Escola Secundária Josina Machel faz parte de
um conjunto de círculos sociais concêntricos. Um desses círculos tem características
internacionais. Por outras palavras: o jovem é, ao mesmo tempo, ele, a zona, a
nação e a humanidade. Hoje, em segundos, do celular à televisão passando pelo
computador, sabemos o que se passa no mundo dos riscos crescentes de todos os
tipos, da violência, da precariedade e da exclusão sociais, dos atentados a
trouxe-mouxe, das guerras a esmo, das carnificinas em cafés e escolas, da morte
banalizada, dos medos que se espalham como que liquidamente, dos símbolos
trágicos das rixas e das batalhas. O modesto estudante que agrediu um colega
com uma faca na Josina Machel – defendendo-se ou atacando - não é estrangeiro a
esse mundo, ele - como qualquer um de nós, por mais paroquiais que sejamos -
é-lhe parte integrante, esteja ou não consciente disso. Esse mundo de risco
variado não consiste apenas de informação, mas também de formação, de modelo,
de proposta. Na verdade, mundo que ao mesmo tempo informa, forma, molda,
comanda e formata. A faca do jovem era, afinal, uma faca mundial, uma bandeira
da extensa modernidade problemática que vivemos.
6. Procurei mostrar que o jovem da Josina Machel é
bem mais do que ele e do que o seu acto (excluí patologizá-lo ou vê-lo como
tóxicodependente), bem mais do que a consequência de um excesso numa luta
normal entre adolescentes de uma escola, bem mais do que um exercício banal
pela preeminência chefal. É, por hipótese e enquanto paradigma de um fenómeno,
imperativamente, uma figura dialéctica, habitada por várias círculos sociais
concêntricos, interdependentes. É, no pequeno local que é a Escola Secundária
Josina Machel, a expressão de uma configuração planetária. Vivemos, a nível
mundial, um período de transição, entalados neste presente entre um passado que
continua a ser o nosso guia cognitivo e um futuro que julgamos distante mas que
já actua em nós. Neste mundo anfibológico, estamos ainda reféns das
categorias analíticas de ontem e por isso não vemos os indícios do futuro.
Mundo que se torna mais agreste, mais rapidamente propenso à turbulência
social com a velocidade das novas técnicas de comunicação. O modo capitalista
de produção militariza-se mais rapidamente, mais intensamente, mais
destrutivamente. À medida que o futuro se tornar pouco a pouco visível, a militariza-
ção dos países e das mentes gerará intranquilidade, medo e desespero. Procurar
abrigo e paz algures poderá tornar-se uma regra no planeta. Esse é apenas um
cenário. Há muitos outros a ter em conta. Um dos grandes riscos que
corremos é acharmos normal a violência, de tanto ela manifestar-se das mais
variadas formas. Acresce que, no caso da Josina Machel, pode haver outros
fenómenos por estudar. Finalmente: resta saber como introduzir a razão nos
instintos e evitar as múltiplas facas da vida. Talvez aqui resida, desde sempre
na história da humanidade, o centro e a aposta de todos os círculos sociais
concêntricos.
__________________ Nota: esta é uma versão
melhorada de um texto publicado sob forma de série em sete números no meu
blogue, aqui: http://oficinadesociologia.blogspot. com/
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