terça-feira, fevereiro 28, 2012

"O branco que fintou a PIDE"

José Luís Cabaço foi ministro nos anos que se seguiram à independência, mas, antes, contribuíra clandestinamente para a sua conquista. Numa entrevista com várias declarações apaixonantes, conta que “fazia o relatório no qual dizia o quartel tal tem uma unidade ali, a estrutura é esta, e dei muitas informações sobre essas estruturas militares”.

JLC: Há várias maneiras de se ser clandestino. Há aquelas pessoas que trabalham de forma organizada dentro de uma estrutura organizativa e que trabalham fora do controlo dos órgãos de segurança, do sistema contra o qual eles trabalham. Quer dizer, é uma organização clandestina, como, por exemplo, foi o caso da Quarta Região, que, em 1964, tentou criar uma rede clandestina que fugisse ao controlo da PIDE, das autoridades portuguesas e etc. E, portanto, era para fazerem acções militares e de propaganda, de forma a fugir ao controlo do governo português. O meu trabalho clandestino foi de outra natureza, talvez, até, porque a Frelimo tivesse tido a experiência da Quarta Região. Eu, pessoalmente, não era clandestino. Estava na sociedade, como cidadão. Recordo-me que uma das primeiras recomendações que a Frelimo fez foi perguntar-me se tinha passaporte português. Eu disse que tinha, e disseram que não devia estragá-lo, que devia mantê-lo da melhor forma possível, e isso eu fiz. Quando acabei o meu curso universitário, na Itália, recebi instruções da Frelimo para vir para cá, ter uma vida social, arranjar uma casa, um emprego, enfim, fazer a vida como qualquer outro cidadão, mas a fazer um trabalho clandestino no sentido de recolher informações. E eu tinha canais para, depois, fazer chegar essa informação à Frelimo. Fui recolhendo informações de natureza social, económica e, principalmente, de natureza militar e fui canalizando com a regularidade que era possível, e a Frelimo foi usando no quadro da luta. Portanto, eu não era uma pessoa clandestina. O trabalho que eu fazia, para além do trabalho profissional que eu realizava, esse, sim, era um trabalho clandestino, um trabalho que as pessoas não conheciam, ninguém conhecia, nem a minha família. Era um trabalho que fugia ao controlo, digamos assim, do conhecimento das pessoas.

OPM - Como é que alguém que, naquela altura, fazia parte do grupo dos privilegiados decide combater o mesmo grupo de que fazia parte?

Isso é uma história muito longa, não é algo assim tão simples de se responder (...). Penso que, até aos 17 anos, era um jovem branco colono como os outros, quer dizer, tinha os mesmos defeitos, os mesmos condicionalismos que a maior parte dos jovens daquela época. Há algumas coisas que se passaram na minha infância e devo contar duas histórias que me marcaram muito. Impressionou-me, na altura, particularmente um senhor velhote que havia passado da rua onde eu estava a brincar, antes do julgamento, e disse qualquer coisa que já não me lembro, sorriu e manteve um contacto por uns 30 segundos, e depois foi-se embora. Achei-o simpático. E depois, à tarde, quando ouvi aqueles barulhos, fui lá espreitar e uma das pessoas que estava ser batida era ele. Isso nunca se apagou da minha cabeça. E, depois, outra coisa que não se apagou na minha cabeça, já em Lourenço Marques, no Bairro da Malhangalene, no limite da cidade do cimento, é que via passar, de manhã, em frente à casa onde estava - não era dos meus pais, vivia com uma família -, pessoas para o chibalo, segurando correntes na mão para poderem caminhar. Era uma fila de pessoas com as pernas amarradas, com os instrumentos de trabalho de um lado e segurando as correntes, marchando (...) aquilo magoou-me muito, percebe, ficou cá dentro. E depois cresci, fiz os meus disparates, as minhas arrogâncias de pequeno colono, mas, a partir de um certo momento, houve um outro problema que me marcou muito. Um dia, quando ia ao liceu, tinha três estudantes negros, de um universo de dois mil estudantes em todo o liceu, mais ou menos da minha idade, eu vinha da Malhangalene - onde morava com a minha tia, irmã da minha mãe, entre 1953 e 1954 - de bicicleta e vi um dos meus colegas negros correndo, na actual Eduardo Mondlane, porque o machimbombo tinha atrasado, era o no 16, não sei de onde vinha. Ele estava a correr para chegar a tempo à sala. Conhecíamo-nos, mas não éramos do grupo. Perguntei-lhe o que se passava e ele disse que estava atrasado, por causa do machimbombo, e dei-lhe boleia. Eu não dei boleia a um branco, a um preto, nem a um indiano, dei boleia a um colega do liceu. Na altura, não me passou pela cabeça qualquer outra coisa. Quando chego à casa, a minha tia bateu-me e eu não percebi, porque ela nunca me tinha batido, e até penso que nem tinha autorização dos meus país para me bater. Perguntei-lhe o que se tinha passado, e ela disse que já lhe haviam telefonado a dizerem que eu andei a carregar um preto por aí e ali foi um grande conflito para mim, porque tinha carregado um amigo, um colega da escola. Esta história marcou-me muito. E, então, nos últimos anos do liceu, começou uma certa agitação, também havia as eleições dos portugueses, uma certa agitação política, havia a independência do Gana, da Guiné-Conacri, estava a preparar-se a independência do Congo, começou uma certa efervescência e as pessoas começaram a pensar. Então, penso que todas estas pequenas feridas que tinham ficado no meu subconsciente ajudaram-me a compreender o quão injusta e criminosa era a sociedade colonial. E penso que não foi muito difícil, quer dizer, do ponto de vista intelectual, racional, perceber que não devia ser cúmplice daquela sociedade. Mas, depois, isto pôs um outro problema que não foi fácil: é que corresponder à sua racionalidade, ou seja, ser coerente com aquilo que era a lógica e a racionalidade da sua escolha colocava-te em conflito com o seu mundo de afectos, porque todo o meu mundo de afectos tinha sido construído naquele mundo que eu deixava. Por outro lado, ainda não tinha construído um mundo alternativo de afectos, ia construi-los depois, mas nesse momento da ruptura foi uma coisa muito difícil, do ponto de vista pessoal, porque todas as pessoas, os meus amigos, meus familiares, as minhas namoradas, tudo o que representava a minha vida afectiva estava ali e eu estava passando para aqui, portanto, passava despido das minhas relações afectivas. Tive de reconstruir e hoje o meu mundo de afectos está aqui. Mas não foi fácil, foi uma coisa sofrida.

Como é que foi o primeiro contacto entre José Luís Cabaço e esse movimento de libertação?

Há dois elementos fundamentais na minha formação. Talvez o momento mais importante, do ponto de vista da formação nacionalista, talvez seja importante explicar isso para as novas gerações. A independência do Congo, um grande país, foi feita por um grande líder, Patrice Lumumba, e por um grande traidor, Moises Tchombé. Moises Tchombéera, pago pelos belgas para declarar independência no Katanga, onde estavam as minas, que era o que interessava aos belgas, e o resto do país podia ir. E Moises Tchombé propunha uma sociedade em que ele é que era o presidente, negro, africano, mas com comparticipação dos colonos. Por outro lado, Lumumba tinha uma concepção mais nacionalista e radical do que era a independência. Há um golpe de Estado, com ajuda de Mobutu, e Lumumba foi preso e assassinado de forma mais humilhante possível.

Não era como a teoria do luso-tropicalismo...

Luso-tropicalismo, neocolonialismo total, mas, na altura, éramos criativos, tínhamos de 19 anos, numa sociedade desinformada, que era a sociedade colonial e, então, dividimo-nos. E é muito interessante que os lumumbistas, grupo do qual eu fazia parte, todos, de uma forma ou de outra, ficaram envolvidos no processo de libertação nacional. Os tchombistas, todos acabaram em Portugal (...). Depois houve uma outra coisa importante naquele período, de 1959 para 1960, com a independência do Congo: foi (também com) a revolução cubana, uma revolução romântica, feita por jovens com vinte e poucos anos, e teve assim uma auréola romântica muito grande. A nossa geração viveu aquele romantismo da revolução cubana e ajudou um pouco nas nossas opções pela via revolucionária. Mas, voltando à sua pergunta, naquela altura havia movimentos de libertação, o mais conhecido e operativo era o MPLA, de Angola, nós não tínhamos Frelimo ainda nesses anos. Sabíamos que haviam uns movimentos aqui nos países ao lado e tal, e nem conhecíamos os nomes deles bem, porque havia UDENAMO, MANO, mas o MANO era menos conhecido e a UDENAMO era mais conhecida, era aqui no Sul, sediada na Rodésia. Entretanto, pessoalmente, tenho conhecimento de que havia uma rádio da Tanzania que começava a falar, depois de 1962, a rádio da Frelimo. Começámos a ouvir de noite, ouvia-se muito barulho e pouca conversa, ouvia-se muito mal naquela altura, mas algumas coisas ouvíamos, ouvíamos meias notícias e depois inventávamos o resto. E quando nos encontrávamos, uns tinham entendido de uma maneira e outros de outra, e então, ficávamos atrapalhados, mas havia um grupo. Naquela altura, eu estava no serviço militar colonial, em Boane, mas já era inelutavelmente a favor da independência e da Frelimo. E, de repente, ficámos a saber da prisão da Quarta Região, os guerrilheiros tinham vindo da sede e trabalharam com uma rede clandestina já existente em Lourenço Marques onde militavam nomes sonantes como Amaral Matos, os Sumbanes, Chichava, etc, ao lado dos Craveirinha, Bernardo Honwana, Malangatana, e muitos outros.

Esses nomes eram dominantes na sociedade nessa altura?

Toda a sociedade sabia que era gente que alimentava um sentimento nacionalista, não sabia que era um perigo à sociedade, que estavam organizados do ponto vista político. Mas sabia-se que, individualmente, tinham a expressão de uma identidade moçambicana. Então, naquela altura, ficou claro, e logo que terminei o serviço militar, tinha dinheiro, saí daqui para Europa, para procurar um contacto, porque aqui era muito difícil, principalmente depois de se ter detectado a Quarta Região, estava cheio de informadores da PIDE. Você não tinha a possibilidade de passar a barreira aqui e procurar contactos, você era preso imediatamente. Então, eu tentei, fui à Europa e escrevi para um camarada, um colega aqui e em Coimbra, etc., que havíamos crescido juntos praticamente, que era o José Júlio Andrade, que depois foi Secretário de Estado de Desporto. Escrevi para ele, estava em Moscovo naquela altura e já fazia parte da Frelimo, tinha fugido em 1961. Estou a falar de 1966 (...) a carta chegou-lhe às mãos, não sei como, mas acho que por sorte chegou-lhe às mãos e ele respondeu-me e, portanto, comecei o contacto. E depois o camarada Marcelino dos Santos foi a Moscovo e o José Júlio fez chegar a minha pretensão de colaborar com o movimento de libertação. Marcelino dos Santos foi e passou por Itália. Estava a estudar em Itália naquele momento, mandou-me ir à Roma. Conversámos, longamente, e depois recebi a comunicação, em Setembro de 1967, que tinha sido admitido como membro da Frelimo. A partir dali, comecei a receber instruções para fazer diversas tarefas. Uma das tarefas que recebi foi ‘fica aí, estuda e acaba o curso o mais rápido possível’. Cumpri a tarefa e acabei o curso em 1971.

Mas, num momento em que todos queriam ser guerrilheiros, não sentiu isso como um afastamento?

Senti, senti. De facto, quando o camarada Marcelino dos Santos mandou-me ir à Roma, ainda não conhecia as vicissitudes da Frelimo, fui para lá com uma mala, disposto a seguir viagem, mas ele disse que devia estudar. Fiquei desiludido, porque, naquela altura, com aquela idade, ser guerrilheiro era o máximo que me podia ter acontecido na vida. Mas ele mandou-me para atrás, voltei, e depois soube, mais tarde, que foi naquele momento que na Tanzania houve problema com os brancos, alguns camaradas tiveram que sair (...).Mantiveram-me fora por causa disso, mas também porque, sendo branco, vindo da sociedade dos colonos, tinha uma grande camada de insuspeição, quer dizer, não era suspeito, porque, como você disse no princípio, toda a gente fazia esse raciocínio, ‘se ele é privilegiado, se ele tem um bom emprego, se ele tem uma casa, se a barriga está a crescer, etc., por que é que se vai meter nessas confusões?’ E isso era a melhor cobertura que eu tinha para fazer o meu trabalho clandestino, porque eles andavam à procura de agentes da Frelimo em toda a parte, menos na minha casa, porque não pensavam que eu fizesse esse trabalho. Recebia as missões directamente do camarada Óscar Monteiro, mas as ordens vinham do camarada Chissano, porque ele é que era o chefe dos Serviços de Segurança, ele é que era, digamos, o meu (...)chefe nas operações, no trabalho que fazia. As instruções que recebi apontavam que não devia montar nenhuma organização. Devia fazer o meu trabalho individualmente, recolher informação e fazer os respectivos relatórios, e tinha este e aquele canal para fazer chegar a informação. Igualmente, não devia tentar organizar células (...). Depois, soube que havia mais moçambicanos, mais companheiros que estavam nesta perspectiva, camaradas que trabalhavam em vários locais de Moçambique. Individualmente, a gente não se conheceu, só nos conhecemos depois da independência. E assim manteve-se uma rede que não era propriamente uma rede, mas também teve uma estrutura de informação de apoio, digamos assim, à luta armada, luta nacionalista, sem baixas. Ou melhor, com o mínimo de baixas possíveis, porque a estrutura organizada aqui na cidade era muito difícil, as baixas foram pesadas.

Será que esse individualismo é que fez com que escapassem à forte pressão da PIDE?

Devo dizer que tinha consciência de duas coisas. Primeiro, de que a minha impunidade era muito alta, ou seja, era preciso ser muito estúpido e muito exposto para que a PIDE desconfiasse de mim. Eles podiam desconfiar de um branco do Alto-Maé, de um branco da Mafalala, mas de um branco da Polana não desconfiavam, porque era parte deles. E isso deu-me uma grande vantagem. Comigo, eles falavam e contavam coisas, segredos. Eu falei com pessoas da PIDE, com militares, e eles contavam-me. Trabalhava numa empresa de construção, de obras públicas, e era director de pessoal e director de publicidade dessa empresa. Percorria o país, sobretudo onde houvesse acampamentos. A minha empresa estava a trabalhar para o exército em muitos sítios. Abrimos estradas, aeroportos, enfim, fazíamos vários trabalhos. Então, percorria o país, às vezes, por ano, fazia duas, três, quatro viagens e em zonas de guerra, que era onde se estava a trabalhar. Ali, eu chegava e ia falar com o comandante e dizia: “Olha, sou tal fulano, sou director da empresa tal, eu venho cá para falar consigo...” e depois Whisky e gelo. De seguida, colocava a questão da segurança dos trabalhadores e dizia quero saber como é que eles são defendidos e ele, depois, punha o mapa e explicava como é que era a defesa do quartel, eu tomava apontamento de cabeça e quando ia para o quarto escrevia notas, que era para não me esquecer. Depois fazia o relatório no qual dizia o quartel tal tem uma unidade ali, a estrutura é esta, e dei muitas informações sobre essas estruturas militares. Uma delas foi sobre um aeroporto, em que, depois, o camarada Mabote, quando me viu, depois da independência, me disse. Como sabe, o Mabote era uma personagem mítica para mim, mas eu não o conhecia pessoalmente, e quando a gente se encontrou, fiquei todo emocionado e ele deu-me um grande abraço. Fiquei atrapalhado, questionei como é que ele me conhecia, ao que me disse: “Tu mandaste uns desenhos e aquele ataque fiz com os teus desenhos”. Fiquei muito emocionado com aquilo, porque não sabia para que é que servia o meu trabalho.

E nessa altura já haviam falado de algumas figuras da Frelimo, falou concretamente de Samora Machel e de Eduardo Mondlane?

Eduardo Mondlane, sim.

0 comments: