Passada mais de uma semana
após o ciclone, que provocou centenas de mortes e milhares de
desalojados, devido ao vento e às cheias, pouca gente sabe que foram
esses 40 homens, que na noite do ciclone iam substituindo o muro à
medida que caia, que impediram que andassem agora 26 mil crocodilos à
solta na zona da Beira. Mas Manuel Guimarães sabe, e a sua gratidão não
tem palavras.
Agora que a chuva parou e a quinta já não está cercada pelas águas Manuel
Guimarães voltou na segunda-feira ao local, Nhaugau, distrito da Beira,
emocionado por ver como uma noite de vento lhe destruiu 10 anos de
trabalho. Lá está Anísio Chinguvo e os outros "magníficos", cortando árvores, limpando a terra, repondo o que é possível repor.
Anísio,
natural de Maputo, a trabalhar para Manuel Guimarães há uma dezena de
anos, lembra-se bem do dia 14 de março, de quando "o patrão ligou a
informar" que tinham que se preparar para um vento muito forte. Anísio,
como conta agora, pensou que era brincadeira, que ventos fortes já ele
tinha visto em 2000, em 1977. E Manuel Guimarães do outro lado: "Anísio,
não brinca, hás de ver o que nunca viste".
Os
40 trabalhadores colocaram nesse dia chapas isotérmicas junto da cerca
dos crocodilos feita de tijolos e cimento, especialmente junto da cerca
dos maiores crocodilos, e aguardaram o Idai. Nenhum arredou pé, nenhum foi para junto das famílias.
E
na noite de quinta-feira, 14 de março, pelas 22h00, quando o Idai
chegou encontrou os 40 ali, sentados ou deitados por causa da força do
vento.
"Não
foi fácil, falar disto dói muito. Cada um pensava, eu vou perder a
minha família, os meus filhos, para defender um crocodilo. Doeu, porque
duas noites perdidas não e fácil
Foram duas noites sem dormir, mas especialmente difícil a noite do ciclone, como Anísio conta à Lusa, ao lado do muro dos grandes crocodilos, que o vento conseguiu derrubar e que agora está substituído por chapas.
Porque não
bastava estar ali, porque era preciso ir ver outros tanques, ver se as
árvores que caiam não derrubavam outros muros. Mas aquele muro, aquele
especialmente dos crocodilos grandes. "Não podíamos estar longe do muro".
"Sabíamos que se o muro desabasse era um desastre total, não era fácil controlar estes animais lá fora".
E
a verdade é que noite dentro, quando o muro cedeu eles ali estavam,
prontos a empurrar as chapas que tinham levado, cortando bambus para as
segurar. E às 5h00 de sexta-feira o vento amainava e os crocodilos
estavam nos seus tanques.
"Estávamos a fazer o nosso salário, para
próximos anos, não só deste mês de março mas para os próximos anos.
Imagina que todos os crocodilos se fossem embora, eu não estava aqui,
estava na minha casa porque não havia serviço", diz agora o chefe dos 40
heróis.
Já passou mais de uma semana e Manuel Guimarães, 63 anos, ainda se emociona quando fala dos seus "40 magníficos".
Se
os crocodilos tivessem saído, se tivessem galgado o perímetro da
quinta, os 10 quilómetros de valas que a rodeiam, "era grave", era "uma
situação de pânico total".
"Estaríamos
todos, uma cidade inteira, a apanhar crocodilos, a comunidade
internacional. Porque era impensável 26 mil crocodilos à solta,
especialmente os grandes".
O empresário lembra também a
prevenção com os painéis e emociona-se até às lágrimas quando fala dos
seus "40 bravios moçambicanos" que se sentaram ali perto dos muros, a
olhar de frente o ciclone e preparados para os substituir com chapas
quando eles caíssem.
"É graças a esses 40
homens, que nunca mais podemos esquecer, que não temos uma desgraça para
a empresa, porque 26 mil crocodilos são muitos milhares de dólares, e
uma desgraça para a população, porque já viram o que era 26 mil
crocodilos aí à solta? Seria terrível. Felizmente graças a eles estamos
aqui, podemos falar disto que aconteceu", diz à Lusa.
E
acrescenta: "Quando havia muito vento sentavam-se ou deitavam-se e na
hora em que os muros caiam eles repunham as chapas. É uma história que
precisa de ser contada para mostrar que na hora em que é preciso os
moçambicanos estão lá. Deixaram as suas casas, os filhos, as famílias,
perderam tudo, para estar aqui a defender a quinta, e isso não tem
valor".
Mas Manuel Guimarães ainda tem mais um herói no currículo, um que o faz chorar ainda mais. Chama-se João
e esteve ocupado a levar uma manada de vacas para locais altos, por
causa das águas, não estando lá quando os seus quatro filhos, o mais
novo de dois e o mais velho de 11 anos, foram levados na corrente.
"Quando
eu lhe perguntei 'como é que estão os animais' ele disse 'patrão, não
perdi os animais, mas por causa de estar lá perdi os meus quatro
filhos'"
João ficou na quinta a encaminhar os animais para
lugares altos, eram 2.000 e o lugar alto do costume não era
suficientemente alto desta vez. E a água chegou depressa. Na quinta de
Nhamatanda, relata citando os trabalhadores, "de manhã estava no sapato,
uma hora depois nos joelhos, meia hora a seguir na cintura e uma hora
mais e estavam a fugir para cima das árvores". "Eu nunca vi isto, estou
cá há 25 anos, nunca a água atingiu estes níveis".
Há 25 anos
Manuel Guimarães veio por três meses, para exportar camarão. Hoje é um
dos maiores criadores de gado de Moçambique, exporta camarão para
Portugal, as suas empresas foram distinguidas como as segundas maiores
Pequenas e Médias Empresas no âmbito da exportação e da exportação de
produtos de mar.
O projeto dos crocodilos foi pensado para
minimizar a perda de vidas humanas e mediante um acordo com o Governo
foram recolhidos ovos para desenvolver a quinta. As peles e os produtos
derivados são vendidos para Portugal, Itália, Coreia do Sul e Japão. Os
sapatos são feitos em Portugal e as malas em Itália.
A quinta dos
crocodilos foi crescendo, era agora também um restaurante e já estava a
começar um projeto de ecoturismo, com duas casas em madeira prontas. "Era uma quinta linda", crescendo devagarinho, "com gosto", um trabalho de 10 anos, "e um dia desapareceu tudo".
Mas
não só. No distrito de Buzi perdeu todos os animais e em Nhamatanda
calcula que meio milhar. E a quinta dos crocodilos está lá a mostrar as
suas desgraças, árvores caídas, casas destruídas, armazéns derrubados.
Acabou o restaurante, a piscina, o "paint ball", o ecoturismo. Tudo
feito com "tanto gosto".
Mas é o menos, porque o que não lhe sai
da cabeça é o empregado João. Tem andado a ajudar na procura dos corpos
dos filhos, mas até domingo ainda não os tinham encontrado.
Ao
"senhor João" vai fazer-lhe uma casa, vai dar-lhe um terreno. Quando o
diz emociona-se de novo. E acrescenta depois: "mas nunca lhe posso
devolver os filhos".
A Manuel Guimarães faltam palavras para agradecer, ao empregado João e aos "40 magníficos" da quinta dos crocodilos. E por causa deles, com a ajuda deles, não tem dúvidas. Não é "um
ciclonezito de 280 quilómetros por hora" que os vai fazer parar.
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