Para o Burkina
Faso, Thomas Sankara foi mais do que um presidente. Assassinado em 1987, o seu
túmulo continua a ser meta de peregrinações para multidões de admiradores. Todos os anos, a 15
de Outubro, uma grande multidão encaminha-se para a periferia oriental de
Ouagadougou. Cidadãos da capital, mas também gente vinda do Mali, do Gana, da
Costa do Marfim e de muitos outros países da África ocidental. A meta é um
simples paralelepípedo de cimento, tosco, com uma lista negra onde se lê:
«Capitaine Thomas Sankara Président du Faso.» O mínimo que Blaise Compaoré, o
actual Presidente do Burkina Faso, pudesse fazer pelo homem que abriu uma das
raras esperanças à África de hoje. O homem que, treze anos depois da sua morte,
atrai todos os anos, no aniversário do seu assassínio, multidões de fiéis, que
repetem: «Sankara permanece sempre entre nós.» Chamam-no Sankara e não Thomas;
não pelo nome, como é costume entre os habitantes do Burkina em relação aos
presidentes, porque Sankara não foi apenas um presidente.Jovem, belo, com a
grande força expressiva dos mestiços, este filho de mãe mossi e de pai peul
tornou-se rapidamente um espinho no pé da França e de muitos outros líderes
africanos. Sankara era da segunda geração, filho daqueles numerosos «pais da
pátria», enredados em independências fictícias, caindo em terríveis
contradições políticas e patéticas retóricas pan-africanistas.Mas há algo de
diferente nos burkinenses em relação aos habitantes dos países limítrofes:
exactamente o sentimento de serem burkinenses. Uma consciência nacional rara em
África, um orgulho convicto, embora cientes de viverem num país paupérrimo.
Para isso contribuiu muito a experiência de Sankara. Este jovem capitão, que
tomou o Poder com apenas 35 anos através de um golpe de Estado sem derramamento
de sangue, não teve tempo de resolver os inúmeros problemas do seu país e
talvez nem o conseguisse, mas seguramente abateu aquela incómoda capa de
frustração e desestima que oprimia e oprime muitos africanos, por se julgarem
inferiores ao homem branco.
«Eu venho
trazer-vos a saudação fraterna de um país com 274 mil quilómetros quadrados de
superfície, onde sete milhões de crianças, de mulheres e de homens se recusam
agora a morrer de ignorância, de fome e de sede», assim se exprimia Sankara a 4
de Outubro de 1984 diante da Assembleia Geral das Nações Unidas, consciente de
que representava uma terra que «é incontestavelmente um dos poucos países deste
planeta onde se concentram todos os males naturais que a humanidade ainda
conhece neste fim do século XX», mas que, ao mesmo tempo, reivindicava o
orgulho de fazer parte «daquela plêiade desprezada, o Terceiro Mundo, que
outros mundos inventaram. Nós queremos fazer parte dele, mas recusamo-nos a
justificar esta gigantesca burla da História. Ainda menos a aceitar ser o
“ventre” de um Ocidente glutão».
Entre as muitas
inovações promovidas por Sankara conta-se o novo figurino da carta
administrativa do país, fazendo coincidir os limites territoriais
administrativos com as fronteiras étnicas, restituindo à população, pelo menos
em parte, aqueles pontos de referência típicos da sua tradição. Com uma
ingenuidade por vezes desarmante, Sankara teve o mérito de lançar um desafio.
Mérito que temos de reconhecer, num continente onde a maioria dos esforços
foram gastos na cópia de uma ocidentalização e de um desenvolvimento importado.
A sua voz ainda
grita nas paredes da cidade: «Consommons burkinabe» («Consumamos produtos
burkinenses») ainda se pode ler nas inscrições já quase lavadas pelas chuvas.
Hoje a fábrica de têxteis Faso dan Faso fechou as portas. Já ninguém compra
aquela farda imposta aos funcionários públicos e que os cidadãos também eram
convidados a usar para dar trabalho aos camponeses do país.
«Não há dia em que
não falemos nele», disse-me um dia um homem de meia-idade em Ouagadougou.
«Viamo-lo frequentemente a andar de bicicleta, nas ruas. Um dia, teve um furo e
foi a uma oficina mandá-lo arranjar. O dono não o reconheceu. Quando terminou o
trabalho, o Presidente perguntou-lhe quanto era.
«500 francos CFA.»
«É muito caro.
Dou-te 200 e já vais com sorte.»
«Caro? É que, com
Sankara, encareceu tudo», respondeu-lhe o dono da oficina.
«Achas que sim?»,
perguntou-lhe o Presidente divertido, enquanto as pessoas que o reconheceram se
juntavam à roda deles para ver como tudo iria acabar.
«É tudo muito
difícil com Sankara, temos de trabalhar muito mais», respondeu. E prosseguiu:
«Sankara é duro, mas faz-nos sentir orgulhosos. Vai-se ao Togo, ao Benim, ao
Mali, mas nada se compara ao orgulho de sermos burkinenses. Estamos orgulhosos,
sim!»
Estive no Togo, no
Benim, no Mali, no Gana e todos confirmam as palavras do dono da oficina e
recordam-se de Sankara como de uma esperança. Encontra-se a sua imagem, aquele
rosto irónico e sisudo, belo como o dos mestiços, meio peul e meio mossi,
pintado nos camiões da Nigéria, do Gana, nos autocolantes, nas t-shirts,
nas paredes.
Uma noite,
projectava-se um documentário sobre Sankara na Maison du Peuple de Ouagadougou.
A sala estava a abarrotar de gente. Os militares controlavam as entradas, com
as metralhadoras aperradas. O documentário começou a ser projectado com grande
atraso. Imagens com pouca qualidade, mal montadas, por vezes a fita partia-se.
Mas quando aparecia o rosto do capitão, a multidão explodia em aplausos.
Era impossível compreender o que dizia, a ovação não parava. Até os
militares abandonaram aquele ar carrancudo e bateram palmas com os outros
quando os olhos de Sankara, sentado ao lado do impassível Mitterrand, se abriam
enormemente, com ar incrédulo, diante das perguntas dos jornalistas franceses.
O Governo de
Sankara durou apenas três anos, de 1984 a 1987. Poucos, muito poucos
para aquela planície de esperança, pouco favorecida pelos deuses, que é o
Burkina Faso. Muitos, muitos para aqueles camponeses do Sahel que viram ser
construída uma escola e um dispensário em quase todas as aldeias e puderam
começar a comer duas refeições por dia. Sankara foi uma gota de água naquele
mar de desolação que é a África dos nossos dias. Talvez seja verdade, como
afirmou Sennen Andiamirado, jornalista daJeune Afrique, que ele morreu cedo de
mais para evitar que cometesse erros. Mas não jovem de mais para se tornar um
sinal de esperança.
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