Foi logo pelas primeiras horas da manhã da última terça-feira que Iraê
Lundin abriu as portas do seu escritório, em Maputo, para falar ao SAVANA sobre
o último impasse que fecha os caminhos para a paz em Moçambique. Visivelmente
preocupada com a instabilidade que mata, destrói e força deslocações, a
académica diz que, apesar de vários doutoramentos que tem, não entende a
dificuldade de aceitar o que para ela nem é pré-condição, nomeadamente, a
mediação da Igreja Católica, do presidente sul-africano, Jacob Zuma, e da União
Europeia no diálogo Governo-Renamo como propõe o partido de Afonso Dhlakama.
Diz a docente universitária que tal postura não diminui a posição de um
presidente da República, pelo contrário, mostra que é magnânimo, humilde e não
arrogante. Diz que não sabe onde, mas em algum lugar o presidente Filipe Nyusi
perdeu essa postura, acrescentando que ele seria muito mais admirado se pudesse
reiniciar o processo de diálogo com a Renamo, com cujo presidente reuniu por
duas vezes em Fevereiro de 2015. E é esse caminho do diálogo e da paz que
encoraja o presidente Nyusi a seguir. Com experiências amargas do passado, diz
que não há nada pior que a guerra. Considera horrível quando alguém luta com
outrem para depois encontrar aquelas pessoas e ver que elas não têm rabos, não
têm chifres, elas são iguais a si, têm os mesmos sonhos, as crianças delas são
da idade das suas e aí pergunta então porquê lutamos. Assim, metaforiza a
professora, se o problema for que um gosta do vermelho e outro gosta do
amarelo, então, que se faça um vestido vermelho-amarelo para que os dois fiquem
felizes. Na entrevista a este semanário, Lundin começa por recordar o fim da
dé- cada de 1980 e inícios de 1990, quando esteve de pedra e cal nos esforços
de busca da paz para um Moçambique dilacerado pela guerra civil entre os mesmos
autores que, novamente, estão desavindos, designadamente, o Governo da Frelimo
e o maior partido da oposição, a Renamo. “Tive a honra de participar no processo
de paz. Os meus trabalhos trouxeram material para repensar o Estado e fazer uma
parte das reformas que era necessária para que a paz pudesse ser abraçada e
principalmente pudesse ser consolidada” anota, em introdução. Fá-lo com
nostalgia porque, diz ela, nessa época havia muita abertura e interesse para,
realmente, construir a paz. “Não havia empecilhos, não havia que isso pode,
isso não pode. Considerava-se: se isso vai trazer a paz, então, pode. Era uma
visão muito interessante e foram mudanças substanciais. Não foram mudanças
pequenas, foram mudanças em todo o sistema político, económico, administrativo,
até a percepção de cultura mudou. Foi realmente uma coisa muito substancial e
para a equipa do presidente Chissano, porque achava que a paz era um bem
importantíssimo, não havia o que não podia. Tudo podia se no final do dia
fôssemos ter paz”, lembra com saudades.
Mas diz que hoje sente falta dessa postura. “Primeiro sinto pena porque não
conseguimos mantê-la (a paz). Muitos sinais foram aparecendo, 2008, 2012, o
espaço para o diálogo foi fechando, dificultou até que chegamos a esta
situação”, diz. Na sua óptica, hoje fala-se muito e faz-se muito pouco. “Todos
os dias, quando a gente abre o rádio há alguém, um escritor, um director
nacional, uma pessoa de um distrito a dizer que queremos paz. É verdade que
todos nós queremos paz, mas depois não há acções concretas, como se via em 1988
a 1992”, exemplifica, ajuntando: “naquela altura a gente praticamente não
falava. Não tinha gente no rádio, na televisão, não. Fazia-se e fazia-se.
Tomava-se atitudes e acções governativas e ultrapassava- -se aquela questão e
eu sinto um pouco falta dessa postura hoje, de tomar acções, de fazer e não só
falar”. Frisa que, no passado, mudou-se a Constituição, fizeram-se leis, com as
reivindicações da Renamo contempladas, esvaziando assim as suas exigências.
Para além da Constitui- ção de 1990, que abriu o pluralismo político, a
entrevistada cita as leis para o respeito das autoridades tradicionais, das
privatizações em Janeiro de 1993, a lei de descentralização em 1994, apesar de
não ter sido seguida à letra, entre outras reformas feitas pela governação do
dia. É aqui onde a académica pergunta qual é o problema hoje de aceitar a
Igreja Católica, o presidente sul-africano e a União Europeia na mesa de
diálogo, acrescentando: “se eu me sinto confortável porque algumas pessoas me
vão dar esse conforto, se elas não me inibem, se elas não são inimigas, então,
deixa elas estarem lá”. Repete que não entende mesmo porque hoje é tão difícil
tomar passos pequenos para restabelecer a paz, quando no passado foram tomados
grandes passos que mudaram totalmente o rumo do país. “O país caminhava para o
socialismo e passámos a caminhar para a economia do mercado, o país era
totalmente centralizado e entrámos um pouco na descentralização.
A cultura era vista como folclórica e passou a ser vista como valorização
daquilo que é a consolidação da nossa personalidade. Não existia imprensa
privada, o sector privado, as organizações não governamentais, tudo isso não
existia antes”, cita algumas dessas reformas. Perguntamo-la que passos precisam
de ser tomados para que, tal como no passado, os moçambicanos se abra- çassem e
se sintam todos cidadãos no seu próprio país. Iraê Lundin dá exemplos e recorre
à metáfora. “Por exemplo, dialogar com mais gente dentro da sala. Qual é o
problema? É nossa tradição. Quando temos luta lá em casa há sempre um tio.
Quando o casamento não vai bem, há sempre uma madrinha. Essa é a nossa tradição
de ter alguém dentro da sala. Então, qual é o problema? Eu particularmente não
vejo nenhum se lá no fim do dia é para encontrar paz”, refere. Para a
objectividade, perguntamos a que pessoas se refere quando fala de tios e
madrinhas na sala do diá- logo e respondeu: “a Renamo quer que se ponha pessoas
( Jacob Zuma) e instituições (leia-se Igreja Católica e União Europeia) dentro
da sala. Qual é o problema? Eu nem vejo isso como uma condição. Eu sinto- -me
mais à vontade se vou com a minha madrinha. Então traga a sua madrinha, a sua
madrinha nem é nossa inimiga. A sua madrinha tem interesses na paz, então deixa
ela vir. Não consigo perceber. Com todos os doutoramentos que tenho, a minha
cabeça não consegue perceber qual é a dificuldade. Não consigo, com toda a
honestidade”. O que a docente entende é que, como se não bastasse, esses convidados
até são amigos de Moçambique. “África do Sul tem grande interesse neste
pipeline (a ligar Cabo Delgado e Gauteng) tudo o que eles não querem é que
tenha guerra aqui. Inclusive somos amigos. Eu até pergunto- -me porque a Renamo
vai buscar indivíduos que são tão amigas”, diz, reiterando que se há problemas
no casamento não é o casal sozinho que discute, vem a madrinha e se ela não
consegue vem mais gente para ajudar a ultrapassar o impasse. Até porque, para
ela, faz sentido que o partido de Afonso Dhlakama proponha a presença de
“madrinhas”, na mesa do diálogo. “Porque é que o presidente Nyusi começa um
diálogo e depois tudo fica assim?
Então, essa massa cinzenta que se criou entre o primeiro diálogo faz com
que a Renamo queira trazer as suas madrinhas dentro da sala. Eu não vejo, mas
não vejo nenhum mal. Nenhum”, destaca. As responsabilidades de um chefe de
Estado Para a nossa entrevistada, perante coisas muito fortes na nossa frente,
como o actual xadrez político-militar moçambicano, a cabeça tem de ser mais
inteligente e pragmática. Nestas situações, sublinha, os governantes têm de ser
mais inteligentes e, tal como no passado, é preciso que a cabeça seja usada
para mais do que só enfeitar o corpo. “Eu costumo dizer que é melhor você
entregar todos os anéis dos seus dedos, para manter os dedos porque anéis você
pode comprar de volta, mas dedos não”, assinala. Perante um cenário como o que
se vive no Moçambique de hoje, caracterizado por confrontações armadas, mortes
e destruição de bens e deslocação de homens, mulheres, crianças e velhos, a
académica entende que de um Chefe de Estado, no caso vertente, Filipe Nyusi,
exige-se que faça aquilo que ele disse que quer fazer e que começou a fazer há
cerca de um ano, quando se encontrou com o presidente da Renamo, Afonso
Dhlakama. “Ele entrou, encheu-nos de esperan- ça quando teve dois diálogos com
Dhlakama. Aí depois ataca-se a viatura do senhor (Dhlakama), tenta- -se matar.
Então, se puder resgatar o espírito daqueles diálogos que aconteceram no Indy
Village que o faça”, recomenda. Acrescenta que, mais do que resgatar o espírito
do diálogo, é preciso que o Chefe de Estado coloque alguma coisa em cima da
mesa. “A gente não convida alguém para ir lá para casa sem oferecer um chá. É
preciso pôr alguma coisa em cima da mesa. O presidente e a sua equipa podem
seguir exemplos, como fez Chissano que pôs em cima da mesa com Dhlakama, uma
nova Constituição, um conjunto enorme de leis, aquilo foi para cima da mesa e
também o senhor Dhlakama cedeu bastante. Houve cedências de parte a parte e é
isso que se chama negociação. Ninguém chega com a sua cesta vazia e sai com ela
totalmente cheia, não. Você chega com alguma coisa na sua cesta e o outro
também, até pode sair com o que chegou, mas mostrou que na sua cesta tinha alguma
coisa para oferecer”. Perante uma Renamo que está a reivindicar governar as
seis províncias do centro e norte de Moçambique onde reclama vitória nas
eleições de 2014, a entrevistada opina: “essa coisa de governar as províncias
seriam os dedos e, como sem dedos a gente não quer ficar, então, que se dê os
anéis que é pôr na sala a Igreja Cató- lica, Zuma e a União Europeia pelo menos
para iniciar o diálogo. Depois conversa, depois vamos ver o que se pode pôr na
cesta de parte a parte etirar”.
Avança que daí já se pode enveredar pelo menor denominador comum que não
crie problemas na governa- ção, um denominador comum que consistiria em aceitar
as “madrinhas” que, afinal, serão de parte a parte, ou seja, nem serão
advogados da Renamo. “Essa madrinha não é de um só, ela vai estar ali para
escrever o que foi acordado, etc., etc. É preciso que esteja alguém mais neutro
que não é nem de lado nenhum nem de outro, que quer a paz dos dois, tem esse
interesse”, explica. “Hoje a gente abre o rádio, está a falar, fala e fala.
Está bem, mas então, senhor, faz porque as pessoas estão a morrer. Há pessoas
deslocadas, casas queimadas, trânsito interrompido, então, é preciso olhar para
o bem maior”. Questionada se sentia que o presidente Nyusi estava a fazer algo
nesse sentido, respondeu que “ele pode fazer”. Tanto é que, na sua visão, aceitar
a presença da Igreja Católica, do Presidente sul-africano e da União Europeia
não diminuiu a milésima parte do Presidente da República. “Não vamos perder a
face se de repente aceitarmos que venha gente que não somos nós os dois. Isso
não diminuiu a posição do presidente da República, pelo contrário, mostra que é
magnânimo e ser magnânimo é uma excelente qualidade para um presidente da
República. Mostra que é humilde, também uma excelente qualidade, mostra que não
é arrogante, excelente qualidade. Então só ganha em postura”, apela, citando
Joaquim Chissano como aquele que pode ser, para Filipe Nyusi, um exemplo a
seguir. “O presidente Chissano hoje é um indivíduo respeitado no mundo inteiro.
Dentro das nossas comunidades aqui, quando ele passa parece um Deus, porque aos
nossos olhos ele é o homem da paz. Então, não diminui a um governante, só
aumenta a postura dele, porque ser chefe de Estado não lhe faz um Estadista, o
que lhe faz estadista são suas acções. Existem muitos chefes de Estado que não
são estadistas, mas Chissano saiu do poder como estadista e hoje é visto assim
dentro e fora por uma coisa que parece tão simples, mas que foi muito difícil
porque foi preciso muita humildade, foi preciso muita cedência, mas o bem maior
está aí e ganhamos todos e ganhou ele como estadista, nunca vai perder esse
rótulo dentro do nosso país e lá fora ganhou inclusive prémios internacionais”,
indica. Por isso, avança, “a postura do nosso presidente seria admirada muito
mais por todos nós, muito mais, e reiniciaria aquele processo que ele iniciou
há mais ou menos um ano e nos daria esse presente de Páscoa ou seja lá o que
for porque realmente estamos inquietos e intranquilos”. Diz que não sabe onde,
mas certamente que em algum lugar o presidente Nyusi perdeu essa postura que
iniciou em 2015, com encontros com a Renamo, mas diz ter uma sensação de que
ele quer recuperar.
0 comments:
Enviar um comentário